Opinião

Em pauta a legítima defesa da honra

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11 de março de 2021, 6h33

Qual a relação entre o julgamento da ADPF 779 relatada pelo ministro Dias Toffoli [1] e o assassinato de Ângela Diniz, praticado por Raul Fernando do Amaral Street no dia 30 de dezembro de 1976?

A resposta é simples: a discussão jurídica acerca da tese da "legítima defesa da honra", porém em pleno século 21 e pós-Constituição Federal de 1988.

Este pequeno ensaio não tem a função de adentrar no âmago da tese "legítima defesa da honra" julgada em 1976, e agora de volta ao cenário jurídico, em 2021, mas simplesmente propor questionamentos formais sobre o tema, bem como expor algumas reflexões sobre o papel do STF e do próprio Judiciário, fazendo um paralelo entre o que se tinha no passado e o que se tem agora, tanto nos aspectos jurídicos quanto extrajurídicos.

No julgamento de Doca Street, defendido por Evandro Lins e Silva no Tribunal do Júri de Cabo Frio-RJ em 18 de outubro de 1979, os jurados condenaram o acusado a 18 meses de prisão por assassinato, e mais seis meses por ter se furtado à ação da Justiça, com o placar de cinco votos a dois, concedendo-lhe suspensão da pena.

A tese utilizada pela defesa foi a legítima defesa da honra, a qual esmiuçou a vida pregressa da vítima, abordando diversas questões pessoais como sua sexualidade, sua moral e uso de drogas, o que, infelizmente, é muito comum em defesas criminais, principalmente no Tribunal do Júri.

Tais argumentos estão diretamente ligados ao que denominamos na Criminologia de vitimização, que se divide em primária (danos sofridos diretamente pela vítima em razão da ação criminal), secundária (danos sofridos pela vítima em contato com os órgãos de Justiça), terciária (danos sofridos pela vítima em seu meio social, familiar etc.) e vitimização quaternária (influência da mídia no processo penal). Cum grano salis, todas as hipóteses ocorreram no processo de Ângela Diniz.

Além disso, técnicas de neutralização também foram utilizadas no caso Doca Street.

Gresham M.Sykes e David Matza desenvolveram a teoria da delinquência, chamada "técnicas de neutralização", para trazer algumas correções à teoria da subcultura e explicar a delinquência juvenil, mas, ainda que fosse esse o objetivo, ela pode ser perfeitamente aplicada ao processo de Doca.

Segundo Molina, as técnicas de neutralização são [2]:

"a) Exclusão da própria responsabilidade; b) Negação da ilicitude do comportamento; c) Desqualificação de quem irá perseguir e condenar; d) Suposta justificativa de inexistência da vítima negação da vitimização a vítima como merecedora do tratamento a ela imputado; e) Apelo a instâncias superiores  justifica o comportamento porque feito para irmãos, amigos ou outros membros da gang".

Ora, com fulcro em argumentações extrajurídicas, sociológicas e morais, a defesa de Doca Street usou bem das técnicas de neutralização supracitadas, especialmente a negação da vitimização pela desqualificação da vítima.

Obviamente, surgiram vários movimentos feministas à época contra a decisão do Tribunal do Júri, sendo que a acusação recorreu da decisão e Doca foi julgado novamente em novembro de 1981, desta vez tendo como advogado Humberto Telles. O resultado foi uma condenação a 15 anos de reclusão, afastando a tese da legítima defesa da honra e reconhecendo o crime de homicídio qualificado.

Pela pressão popular encabeçada pelo movimento feminista, surge o famoso slogan "quem ama não mata". Sem dúvida, o processo de Doca Street demandaria uma profunda análise criminal, processual penal e criminológica que este espaço não permite, mas sua relação com a ADPF 779 é imprescindível.

A ADPF 779, ajuizada pelo PDT, tem por objeto o afastamento da tese da legítima defesa da honra, a fixação de entendimento acerca da soberania dos veredictos, bem como estabelecer uma interpretação conforme dos artigos 23, II, 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e, ainda, dos artigos 65 e 483, III, §2º, do Código de Processo Penal.

O preceito fundamental descumprido seria a violação dos artigos 1º, caput, I, 3º, § 4º, 5º, caput e o seu inciso LIV da Constituição Federal, ou seja, a partir da ideia de que a tese da legítima defesa da honra ofende tais preceitos, pede-se seu afastamento para adequação da soberania dos veredictos aos direitos fundamentais.

É importante lembrar que a legítima defesa é uma causa de justificação do crime que afasta o segundo elemento do seu conceito analítico, qual seja a ilicitude do fato, e por ser uma excludente exige alguns requisitos subjetivos e objetivos

Portanto, para que haja a presença da legítima defesa faz-se necessária a presença de alguns requisitos, com fulcro no que denominamos autotutela, ou seja, quando o Estado não pode socorrer o cidadão pelos meios comuns (tutela jurisdicional, por exemplo), permite que ele que "faça justiça com as próprias mãos", para que não tenha o perecimento de seu próprio direito ou de outrem.

No caso da legítima defesa, exige-se: estar em situação permissa da autotutela; repelir agressão injusta; agir com moderação; utilizar os meios necessários e suficientes para repelir a agressão, sob pena de responder pelo excesso; atualidade ou iminência da agressão, já que fatos passados ou futuros não geram legítima defesa.

Além disso, como já elucidado, a defesa deve ter como objetivo a proteção de direito próprio ou de terceiro, com a presença do animus defendendi.

Em suma, quando se coteja a vida com a honra, ou melhor, quando se sacrifica a vida em detrimento da honra não há, sob o aspecto técnico-jurídico, uso dos meios moderados e necessários para repelir e cessar injusta agressão, afastando de pronto o instituto da legítima defesa da honra, por ausência de requisitos definidos em lei.

Até aqui nenhum problema.

Todavia, a questão que se coloca é a possibilidade de um ministro do STF, em decisão monocrática, a ser confirmada pelo Plenário, dizer que tal tese não pode ser alegada no tribunal pelo advogado, embora sejam nobres os motivos trazidos pelo ministro Toffoli, como o fato de tolher o incentivo ao feminicídio e garantir os direitos das mulheres à dignidade da pessoa humana e à igualdade.

Não há discordância quanto a isso.

O cerne da questão é: os fins justificam os meios?

Já que o Tribunal do Júri é calcado no princípio da íntima convicção do jurado abstraindo-se de questões eminentemente técnicas, como afastar a possibilidade de argumentação em tribunal ex ante, se os jurados têm a possibilidade de decidir de acordo com a sua vontade soberana?

É correta uma decisão judicial limitar a ampla defesa, retirando o direito de fala do advogado e restringindo a defesa do réu ou caberia, em plenário, esclarecimento aos jurados de que a legítima defesa da honra não é legítima defesa sob o aspecto técnico, sob o manto do contraditório exercido pela acusação?

Teríamos que alterar o cerne do modelo do Tribunal do Júri previsto na nossa legislação, consignando que a decisão judicial não lhe retiraria a soberania dos veredictos no julgamento por íntima convicção e por pares?

É possível o Supremo Tribunal Federal afastar uma tese de defesa, ainda que ela seja incorreta ou não seja tecnicamente jurídica, sendo que os julgamentos do Tribunal do Júri foram criados justamente para permitir a apresentação de argumentos extrajurídicos?

Por outro lado, e se a alegação da legítima defesa da honra é para que haja reconhecimento de um relevante valor moral ou social a permitir a aplicação da causa de diminuição do homicídio para privilegiado, também não poderia ser alegada?

A discussão em torno da decisão proferida pelo ministro Toffoli é importante, não só porque reforça os requisitos da legítima defesa, esclarecendo que repelir agressão à honra com a retirada da vida, em regra, não é tecnicamente legitima defesa, mas também promove a contracultura moralista da submissão da mulher ao homem , bem como tenta frear o elevado número de feminicídios no país.

Mas, para além disso, tem-se os aspectos formais, os quais fazem parte do devido processo legal, do contraditório, da defesa ampla e plena, da indispensabilidade do advogado à administração da Justiça, da liberdade do exercício da profissão de advogado, do uso da palavra em juízo, da liberdade de teses e estratégias de defesa, enfim, de todo ordenamento jurídico em uma análise sistêmica.

Logo, o STF deve perscrutar todos esses elementos em sua decisão na ADPF 779, para se buscar a justiça, sem olvidar as normas que regem o sistema, mas a primeira pergunta a se fazer é: sou competente para vedar tese argumentativa da defesa de maneira geral e abstrata ex ante ou isso é competência do Tribunal do Júri no julgamento do caso concreto?

Aguardemos o julgamento, com a advertência de Leon Tolstói: "Não é possível ser bom pela metade".

 


[1] Ver decisão em Medida Cautelar na Ação de Descumprimento de Direito Fundamental 779-DF . Disponível em http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=461297&ori=1. Acesso em 03.03.2021.

[2] GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Criminologia: uma introdução a seus fundamentos teóricos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992.

Autores

  • Brave

    é procurador Federal da AGU, palestrante, mestre em Ciências Penais e doutor em Direito Constitucional pela UFMG, professor da PUC-MG, autor dos livros "Direito Constitucional Fraterno", "Do Princípio da Coculpabilidade" e em coautoria o livro "Criminologia da Não-cidade" todos da Editora D’Plácido, conselheiro seccional da OAB-MG e ex-diretor nacional da Escola da AGU.

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