Opinião

A necessidade de participação dos delatados na homologação da delação

Autor

  • Matheus da Silva Sanches

    é advogado criminalista mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru (SP) pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal (Toledo Prudente) pós-graduado em Direito Penal Econômico (Coimbra-Portugal) professor de Prática Jurídica Penal no Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente e membro da Associação Brasileira dos Advogado Criminalistas (Abracrim).

10 de março de 2021, 21h32

Considerando a estrutura da Constituição Federal que impõe a existência e vigência do modelo acusatório em todas as etapas da persecução, além de resoluções em que preveem expressamente a vigência desse sistema, como a Resolução do CNJ nº63/09, resta inquestionável que o sistema acusatório possui vigência no processo penal brasileiro, independentemente do artigo 3º-A do Código de Processo Penal, recentemente incluído pela Lei nº 13.964/2019 e com eficácia suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal.

A partir dessas e outras razões que evidenciam a existência do sistema acusatório no ordenamento jurídico, é manifesto que tal modelo deve prevalecer sobre os acordos de delação premiada.

Veja-se que não se pretende adentrar às questões doutrinárias quanto a natureza jurídica desse instituto, mas, sim, discorrer acerca dos diversos obstáculos legais e jurisprudenciais para a fiel produção dos elementos extraídos do acordo à luz do sistema acusatório.

No mesmo raciocínio, não se busca defender a inconstitucionalidade dos acordos de colaboração premiada, pois é um reflexo do protagonismo das partes no âmbito instrutório, sendo compatível com o modelo acusatório e eficaz no combate da criminalidade de alta complexidade.

Antonio Milton de Barros (2002, p. 170) traça as diretrizes da atuação das partes no modelo acusatório, as quais serão utilizadas como parâmetros para as reflexões e críticas no presente momento:

"A escolha e o desenvolvimento do processo por iniciativa das partes e do impulso oficial deve pautar-se por esse enfoque publicista do processo, ou seja, tendo em conta sua função social, devendo o juiz, nesse contexto, ser necessariamente ativo: estimulando o contraditório, para torná-lo efetivo; suprindo as deficiências dos litigantes, para superar as desigualdades e não se satisfazendo com a plena disponibilidade das partes em matéria de prova" (Barros, 2002, p. 170).

Por tal ideia, os acordos de delação premiada ganham destaque quanto à sua admissibilidade no modelo acusatório adotado pela Constituição Federal, pois acabam assim pautados: 1) apresentam voluntariedade das partes (delator e Ministério Público); 2) possibilitam um protagonismo das partes para apuração dos fatos; e 3) sofrem controle de legalidade pelo juízo.

Sobre a última premissa (controle de legalidade), será o ponto central desta crítica, pois os acordos de delação premiada são impulsionados pelo órgão acusatório e fiscalizados pelo juízo para fins de que tais elementos sejam válidos e que nenhuma garantia constitucional do delator ou do delatado seja violada para a sua existência e formalização.

Por conseguinte, ainda que inerte e imparcial em todas as etapas da persecução, o magistrado exercerá papel fundamental quanto à admissibilidade do acordo de delação, não se limitando a uma análise perfunctória ou rasa do instrumento, pois será o responsável por monitorar os limites da atuação da acusação para a fiel observância da lei para a sua formalização. Eis o raciocínio do pof. Nefi Cordeiro (2020, p. 93) sobre o tema:

"É o controle judicial sustentáculo de validade e do modelo acusatório, para que não se encerre o processo criminal na atuação de único órgão — o Ministério Público —, exigindo-se para o aperfeiçoamento processual que órgão externo ao acusador atua na solução do caso penal. Soluciona o juiz a lide penal negociada impondo os limites da lei, controlando critérios de negociação (inclusive com a revisão discricionária interna do órgão negociador) e homologando enfim a negociação plenamente válida" (Cordeiro, 2020, p. 93).

Ademais, o mesmo autor reforça que o controle judicial aplicado deve ir além da redação genérica e precária do artigo 4º, §8º, da Lei 12.850/13, sendo objeto de análise os princípios constitucionais e processuais norteadores da persecução, as regras dos negócios jurídicos e, por último, a forma prevista em lei do acordo de colaboração:

"Já se indicou no capítulo passado (Limites da negociação) ser o alcance judicial muito mais amplo do que o simples exame do atendimento formal ao regramento da colaboração premial. Examina o magistrado dentro da legalidade também a obediência aos princípios constitucionais e processuais, às regras dos negócios jurídicos — privados e públicos — e, enfim, ao procedimento legal da colaboração.
Trata-se de controle necessários dos excessos, seja de favores ou exigências, e de limitação às autorizações legais de agir correto e justo em um processo criminal" (Cordeiro, 2020, p.92).

Eis o ponto central da discussão aqui levantada: conferir a participação única e exclusiva da autoridade judicial para validar, na perspectiva acima discorrida, o acordo de delação ou não. Não se discute o ato de validação, esse é necessário, mas sim da postura proativa do magistrado singular para o seu desempenho.

Para isso, à luz do sistema acusatório e das demais garantias do cidadão na persecução, enxerga-se como melhor alternativa conferir a intimação dos delatores para se manifestarem sobre o acordo de delação antes do processo de homologação pelas razões a seguir expostas.

Primeiramente, chama-se atenção à imparcialidade do magistrado que valida o acordo de delação premiada nos atuais moldes. Ora, se a autoridade judicial, no sistema acusatório, exerce uma posição inerte, se limitando à análise do que é requerido pelas partes, conferir uma postura proativa em analisar amplamente o acordo de delação com apenas a opinião da acusação, com a devida vênia, seria um retrocesso ao sistema inquisitivo.

Nesse sentido, não se deve ignorar o fato de que o ato de analisar o acordo de delação apenas sob a perspectiva da acusação seria criar uma pré-disposição do juízo para acreditar que as razões ali expostas são verídicas e criar uma pré-disposição para a procedência da ação penal, ainda mais na atualidade em que o artigo 3º-B do Código de Processo Penal encontra-se suspenso por decisão do Supremo Tribunal Federal, impedindo a instituição do juízo de garantias.

Portanto, gera preocupação conferir uma postura proativa ao Judiciário em analisar amplamente o acordo de delação premiada.

E ainda que há defensores do atual modelo, justificando a validade com a atuação do Ministério Público como fiscal da lei, antes da homologação, veja-se que tal raciocínio não merece ser considerado.

Ora, se o órgão acusatório instruirá sua pretensão a partir dos elementos extraídos e esquematizados no acordo de delação, não aparenta ser possível esperar um parecer ministerial requerendo a sua não homologação por nulidades, vícios, entre outras causas. Seria o Ministério Público apontar que falhou em seu trabalho.

Sobre tal crítica, expõe Víctor Gabriel Rodriguez:

"Aqui reside mais uma peculiaridade do processo de negociação: em um processo de homologação entre as partes privadas, o juiz contaria com a opinião do Ministério Público, que seria fiscal da lei. Mas, no caso, este ocupa a posição de parte negociante, que guarda o interesse direto em, ao menos naquele momento processual, perseguir a parte não representada, ou seja, os delatados" (Rodriguez, 2018, p. 237).

A imparcialidade e a inércia do juízo, impostas pelo sistema acusatório, portanto, são colocadas em xeque com a atuação parcial do Ministério Público. Essa a maior razão pela qual os delatados deveriam antes ser intimados para apresentar suas razões, limitada tal manifestação ao que será objeto do processo de homologação. Tudo isso, como antecedente lógico para se atingir uma decisão judicial lógica, técnica e imparcial:

"O que significa que o juiz deve começar seu processo de homologação notando, grosso modo, que se substitui ao custos legis, ao fiscal da lei, porque este deixou de sê-lo quando sentou à mesa como parte, agraciado que está pelo princípio da oportunidade. O MP agora pode transigir, o que, ainda que signifique cumprir a lei, implica que ele seja também vigiado. Ele negocia diretamente com direito alheio do delatado, e tem um interesse parcial, o da acusação" (Rodriguez, 2018, p.237).

Por consequência lógica, chama-se atenção ao maior norte do sistema acusatório: o devido processo legal e, naturalmente, aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Conferir a intimação do delatado antes da análise judicial do acordo de delação premiada seria uma forma de concretizar tais premissas e, consequentemente, conferir maior segurança e credibilidade à decisão judicial.

Veja-se que a postura aqui defendida, sob esse argumento, prescinde de qualquer previsão legal, pois encontra fundamento no artigo 5º, LV, da Constituição Federal:

"Mas a grande aplicação da cláusula due process of law na jurisdição penal dá-se com relação aos princípios do contraditório e da ampla defesa anteriormente previstos no artigo 153, §§15 e 16, da Carta de 1969, que corporificam no Direito Constitucional brasileiro o postulado do devido processo legalante a lacuna do texto constitucional anterior acerca desse indispensável instituto protetor das liberdades públicas. Tem-se, aí, a imposição em mandamento constitucional do caráter dialético e isonômico da relação processual que vincula a persecutio criminis" (Castro, 2010, p. 279).

A necessidade de intimação da defesa antes da pretensa homologação do acordo é uma forma de concretizar o contraditório pelo fato lógico que toda decisão (relevante ou não) prolatada no âmbito da persecução carece da manifestação das partes.

Torna-se uma obrigação e uma forma de aprimorar o convencimento judicial pela ciência de pretensões conflitantes (acusação e defesa), além de limitar sua análise aos argumentos apresentados, evitando-se qualquer postura proativa do magistrado. Afirmam Dinamarco, Badaró e Lopes na nova edição da consagrada "Teria Geral do Processo":

"A garantia constitucional do contraditório não se dirige somente às partes, mas também ao juiz que comenda o processo. Ao seu dever de franquear às partes o efetivo exercício das faculdades e poderes inerentes à ação e à defesa (…). Tais normas também se aplicam ao contraditório no processo penal. Não há por que considerar que no processo civil deva ser mais intenso que no processo penal. Independentemente da natureza do processo, o juiz deve sempre dar oportunidade às partes para se manifestarem, antes de decidir sobre fundamento que não tenha sido submetido ao contraditório" (Badaró, Dinamarco; e Lopes, 2020, p. 90).

Naturalmente, a ampla defesa encontra-se comprometida com o atual cenário, pois considerando-a como um exercício "focado nos argumentos jurídicos (normativos) a serem invocados pela parte no intuito de rebater as imputações formuladas" (Távora, 2021, p. 83), restando assim prejudicada com o "efeito surpresa" do acordo de delação premiada.

Oportunizar a intimação do delatado para se manifestar demonstra-se uma forma de dar ciência prévia a este sobre a acusação que está-lhe sendo imposta, evitando uma "hipertrofia" nos momentos legais em que oferecerá suas razões e contradizer o mérito da ação penal.

Imagine-se a hipótese em que se homologa um acordo de delação premiada ao final da investigação criminal. O Ministério Público oferece a denúncia, instruindo-a com o referido acordo e demais elementos colhidos no inquérito policial.

Ato contínuo, o denunciado será citado para ofertar resposta à acusação, nos termos dos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal, em dez dias. Esse será o momento e prazo para contraditar os termos da denúncia e do acordo de colaboração premiada, além de indicar todos os meios de prova a serem produzidos em juízo, sendo o acordo de delação uma espécie de "efeito surpresa", pois o acusado terá um prazo legal para rebater a acusação institucional (denúncia) e uma contratual (delator), nas mesmas condições das ações penais em que não houve a celebração do acordo.

Prescinde de maiores esclarecimentos que estará diante de nítida violação à paridade de armas, até porque, por estarem relacionados a crimes de alta complexidade, os acordos de delação reúnem muito mais informações do que a própria inicial acusatória, onde deverá o réu se debruçar para (tentar) exercer o seu direito de defesa, garantido pela lei e obstaculizado por tal postura.

A prévia intimação do delatado antes da homologação do acordo de delação premiada guarda respaldo jurídico (contraditório, ampla defesa e compatibilidade com o modelo acusatório) e proporciona diversos reflexos benéficos para a credibilidade do controle judicial sobre o acordo, impedindo posturas proativas da autoridade judicial, além de conferir conhecimento prévio sobre o conteúdo do contrato a fim de ofertar meios ao deletado de exercer suas garantias em juízo.

Desse modo, a tese arguida demonstra-se uma das diversas alterações as serem feitas em matéria de delação premiada para equilibrar a relação processual entre as partes, haja vista da dupla acusação imposta (a institucional representada pelo Ministério Público e a contratual desempenhada pelo delator), com vistas de concretizar a garantia do devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, tutelando não somente o direito do delatado em manifestar-se nos autos como da imparcialidade e inércia do juiz como garantia constitucional inerente ao modelo acusatório.

 

Referências bibliográficas
— ALENCAR, Rosmar Rodrigues Alencar; TÁVORA, Nestor. Curso de Processo Penal e Execução Penal. Salvador, BA: Ed. JusPodivm, 2021.

— BARROS, Antonio Milton de Barros. Processo Penal segundo o Sistema Acusatório: os limites da atividade instrutória judicial. Leme/SP: Editora de Direito, 2002.

— CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O devido processo legal e os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.

— CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada: caracteres, limites e controles. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

— DINAMARCO, Candido Rangel; BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria geral do processo. 32ª ed., ver. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2020.

— FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; GRINOVER, Ada Pellegrini. As nulidades no processo penal. 8 ed, ver, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.

 LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. 1ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.

— MEDEIROS, Osmar Fernando de. Devido processo legal e indevido processo penal. Curitiba: Juruá, 2000.

— RODRIGUEZ, Victor Gabriel. Delação premiada: limites éticos ao Estado. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

Autores

  • é advogado criminalista, mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino (ITE) de Bauru/SP, pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal) em parceria com o IBCCRIM, especialista (pós-graduação lato sensu) em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente/SP e professor de Prática Jurídica Penal no Centro Universitário “Antônio Eufrásio de Toledo” de Presidente Prudente.

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