Opinião

Moro tem idoneidade moral para advogar?

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10 de março de 2021, 16h11

"You know that it would be untrue (Você sabe que isso seria falso)
You know that I would be a liar (Você sabe que eu seria um mentiroso)
[…]
The time to hesitate is through (O tempo de hesitar acabou)
No time to wallow in the mire (Não há tempo para chafurdar na lama)
Try now we can only lose (Tente agora e nós só podemos perder)"
(Jim Morrison)

Em sua obra "O Mal-Estar na Civilização", Sigmund Freud nos brinda com a seguinte frase: "Quanto mais virtuoso o indivíduo, mais severa e desconfiadamente ela (a consciência moral) se comporta" [1].

O apontamento deixa claro que, para o pai da psicanálise, não é possível estabelecer um regramento sólido e estanque para o campo da moral. Tal parece ser a razão pela qual o conhecimento de uma mesma conduta tende a nos causar reações variadas, que vão da indiferença ao mais acentuado horror, a depender da pessoa que a pratica.

A comprovar a natureza líquida das expectativas e exigências morais, basta a consciência de que dificilmente tomamos conhecimento da situação quando nos deparamos com um morador de rua em estado de embriaguez pública, irrelevância essa que certamente seria convertida em escândalo caso o andarilho embriagado fosse pessoa investida no cargo de ministro da Suprema Corte.

É com base na maximização das expectativas sociais que determinadas carreiras, sobretudo as públicas ligadas à segurança, estabeleceram imperativos categóricos relativamente rígidos como condicio sine qua non para a aceitação/manutenção de membros em seus quadros. Nesse sentido a magistratura, o MPF, a Polícia Federal etc.

O mesmo se dá com a advocacia, tida pela Constituição da República como atividade essencial à Justiça e que exige, para o ingresso/manutenção de profissionais em seus quadros, a posse de idoneidade moral (artigo 8º, inciso VI, artigo 34, inciso XXVII, Lei 8.906/94).

O termo é vago, mas passível de determinação caso a caso, pelo Conselho Seccional da OAB, com base na análise de fatos e, conforme acreditamos, também sobre o posicionamento do indivíduo em sua vida profissional a respeito de questões moralmente caras à advocacia.

Diante dessa perspectiva, rememora-se que na noite do dia 21 de maio de 2017 um grupo composto por grandes personalidades da advocacia reuniu-se em um restaurante em São Paulo a fim de promover um ato de desagravo e solidariedade aos advogados Cristiano Zanin, Valeska Zanin Martins e Fernando Fernandes, os quais haviam sido afrontados em uma audiência presidida pelo então juiz federal Sérgio Moro.

Àquela época, a condução do processo pelo magistrado era no mínimo questionável, sendo evidente a existência de indicativos de um mal querer do julgador a parcela dos advogados com atuação na operação "lava jato", o que inequivocamente refletia em menoscabo ao próprio exercício da advocacia criminal como um todo.

O certo é que fora os memoráveis discursos e abraços encorajadores entre os pares ali presentes, o aludido jantar passou longe de causar uma indigestão no então juiz federal, dada a popularidade de que sua figura gozava àquela época.

O tempo passou, o prato esfriou, o juiz virou ministro e, alguns meses depois, o ministro se tornou advogado.

Em que pese a irresignação de muitos, sua inscrição foi deferida à míngua de apontamentos sólidos sobre seu impedimento.

Mas eis que o advogado, outrora ministro e juiz, tornou-se manchete nacional por algo que não pode receber outro nome que não o de escândalo. Em linhas gerais, vazamentos de mensagens tidas como suas com procuradores da República revelam atitudes que, segundo o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, são indicativos de uma conduta "chocante" e "constrangedora" quando de sua "chefia" da "lava jato". O ministro falou ainda da utilização do processo penal como instrumento de "tortura" e "interferência política", tendo o cuidado de destacar que o fato tem causado "repercussão mundial" [2].

Diante de tudo isso, é de se questionar: alguém reportado em tom de suspeita intimidade em conversas de procuradores da república sob vulgo que nada fica a dever em criatividade àqueles da famosa lista da Odebrecht (no caso, "Russo"), possui idoneidade moral para o atendimento às expectativas da OAB?

Alguém flagrado em atos aptos a equipará-lo a "chefe da Stasi brasileira", conforme palavras de ministro do STF, possui idoneidade moral para o atendimento às expectativas da OAB?

Alguém que quando de sua atuação como condutor de processos colocou em xeque o valor da advocacia criminal por repetidas e inúmeras vezes possui idoneidade moral para o atendimento às expectativas da OAB?

É bom que se diga que (o advogado) Sérgio Moro, embora tenha ofertado dupla contestação às mensagens publicadas com a operação "spoofing" (vedação à prova ilícita e negativa de autoria sem entrega de seu aparelho para contraprova), avalizou, por diversas vezes, os fatos desvendados com os textos, ao argumento de que as mensagens "não revelariam qualquer ilegalidade" [3].

Sem embargo da vedação ao uso da prova ilícita contra o réu, a chancela de Moro ao terror revelado com a "spoofing", bem como a natureza ampla e independente do processo de inidoneidade moral perante a OAB [4], parecem caracterizar um prato cheio para a abertura de uma investigação e potencial cancelamento da inscrição do advogado em questão por erro inicial quanto ao atendimento do requisito da idoneidade profissional.

Indo um pouco mais a fundo na análise do que os fatos delatam sobre a condição humana, o teor das mensagens parece revelar um farto material para um estudo de psicanálise em tempos de Telegram.

Para esse trabalho último, livre das peias da ilicitude da prova, talvez fosse válido iniciar o texto com outro famoso apontamento de Sigmund Freud, o de que "nenhum ser humano é capaz de esconder um segredo. Se a boca se cala, falam as pontas dos dedos".

 


[1] FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Maurice Editorial: 2020, p. 79.

[3] Nesse sentido: No Senado, Moro nega ilegalidade em mensagens com procurador da Lava Jato. In: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48690823

[4] Sobre a independência do processo perante a OAB: STF, Rcl 11809-MT, Dec. Monocrática do Min. Ricardo Lewandowski, de 18.08.2011, DJe de 19.08.2011.

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