Garantias do Consumo

O Dia Internacional do Consumidor: diálogo entre o internacional e o nacional

Autor

  • André de Carvalho Ramos

    é professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (largo São Francisco) professor titular e coordenador de mestrado em Direito stricto sensu da Escola Alfa Educação e procurador regional da República.

10 de março de 2021, 18h48

A data de 15 de março foi adotada como o Dia Internacional do Consumidor pelo movimento global organizado de associações de consumidores. Trata-se de homenagem ao dia no qual, em 1962, o presidente John Kennedy encaminhou mensagem ao Congresso dos Estados Unidos abordando a temática dos direitos dos consumidores.

A consagração de um dia internacional é ativista e militante: visa a chamar a atenção para uma situação de fato ou de direito que merece esforço protetivo por parte do poder público e de toda a sociedade. Ao longo dos anos, os temas adotados pela Consumers International (confederação global que reúne associações de defesa de direitos dos consumidores em mais de cem países) para discussão neste dia 15 de março mostram os desafios ao direito do consumidor no século 21: vida digital, alimentos saudáveis, consumo sustentável e, em 2021, o enfrentamento da "poluição plástica" que gera desequilíbrios ambientais tanto na sua produção, eventual reutilização e descarte.

No plano internacional, a Organização das Nações Unidas, por meio de sua Assembleia Geral, adotou as Diretrizes das Nações Unidas de Proteção do Consumidor em 1985 (resolução 39/248), posteriormente ampliadas pelo Conselho Econômico e Social (em 1999) e revistas pela Assembleia Geral na Resolução 70/186 de 2015, como forma de criar um marco internacional de orientação aos Estados [1].

Aproveitando, então, essa data "internacional", o objetivo central deste artigo é gerar reflexão sobre os principais temas envolvendo direitos dos consumidores na era da globalização e em um momento crítico da pandemia da Covid-19, à luz do diálogo entre o plano internacional e o plano doméstico, com foco na promoção de um consumo: 1) seguro; 2) sustentável; e 3) socialmente justo.

Entre as legítimas necessidades dos consumidores discutidas no plano internacional na revisão das diretrizes da ONU feita em 2015, destaco, pelo impacto que possuem na desigual realidade brasileira, as seguintes: 1) o acesso a bens e serviços essenciais; 2) a proteção aos consumidores em situações de vulnerabilidade; 3) a proteção à saúde e à segurança dos consumidores; 4) a proteção da privacidade; 5) a proteção dos consumidores no comércio eletrônico; 6) o estímulo ao consumo sustentável; e 7) o acesso à meios rápidos e eficientes de solução de litígios [2].

O acesso a bens e serviços essenciais e à proteção dos consumidores em situação de vulnerabilidade exigem medidas que tanto viabilizem a oferta a preços adequados, quanto assegurem renda mínima aos que dela necessitem. Vivemos um ambiente de forte desemprego e informalidade crescente ("uberização" de diversos setores sociais), com desigualdades resilientes. A regulação de determinadas atividades empresariais no Brasil, especialmente em ambientes pouco competitivos e oligopolizados, deveria resultar em ações proativas em benefício dos consumidores, para não gerar uma excessiva judicialização, como se vê em ações em massa em face de empresas de planos de saúde. Essas medidas mostram-se urgentes no atual momento de pandemia no Brasil, que atinge mais severamente aqueles em situação de vulnerabilidade.

A proteção à saúde e à segurança dos consumidores é tema que também reverbera no Brasil. A defesa da saúde dos consumidores foi espelhada no "caso do amianto" no STF, no qual a proteção à saúde e ao meio ambiente justificaram à adoção de lei estadual de banimento do uso do amianto, ao contrário do disposto na lei federal. O STF reconheceu a inconstitucionalidade material superveniente da lei geral federal (Lei nº 9.055/95) por ofensa ao direito à saúde. Com a inconstitucionalidade da norma geral federal, os Estados-membros passaram a ter competência legislativa plena sobre a matéria, até a adoção de nova lei federal (ADI 3.937, rel. p/ o ac. Min Dias Toffoli, j. 24-8-2017, P,Informativo 874, e também ADI 3.406 e ADI 3.470, rel. Minº Rosa Weber, j. 29-11-2017,P, Informativo 886 [3]).

Por sua vez, a proteção da privacidade é um dos grandes temas do Direito do Consumidor no mundo. A "digitalização da vida" resulta em práticas invasivas e com potencial discriminatório a consumidores (selecionando os "bons" e os "indesejáveis", pelo uso de seus dados pessoais), devendo ser reforçada a atuação do Estado em temas como comercialização de dados, imposição de cláusulas abusivas em contratos de adesão, entre outros. Urge o respeito ao direito à autodeterminação informativa, devolvendo ao titular (o consumidor) o controle do acesso, uso e eventual supressão de seus dados pessoais nos mais diversos bancos de dados de consumo. O risco de diversos "pequenos irmãos" da era digital (invasivos como o Grande Irmão orweliano [4]) é real, como se vê nas discussões da Lei Geral de Proteção de Dados brasileira e no General Data Protection Regulation da União Europeia[5].

Ainda no mundo digital, a proteção dos consumidores no mercado eletrônico é também tema da atualidade em face do incontornável e-commerce e das facilidades de contratação global, com fornecedores buscando leis e jurisdições lenientes. Cláusulas contratuais abusivas, escolha de lei mais favorável ao fornecedor, imposição de foro inalcançável ao consumidor para solução de litígios podem tornar diversas outras lesões aos direitos do consumidor difíceis de serem reparadas. O CPC de 2015 merece destaque, em especial por ter fixado a jurisdição internacional brasileira em casos decorrentes de relações de consumo transnacionais [6], quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil (artigo 22, "b", II).

Quanto ao consumo sustentável, o Direito do Consumidor do século 21 deve reforçar seus laços com o Direito do meio ambiente. Além da diretriz adotada internacionalmente nas Nações Unidas, há simultaneamente uma centralidade ecocêntrica da Constituição [7], a qual exige práticas sustentáveis dos fornecedores, consagrando, por exemplo, o princípio do poluidor-pagador e exigindo a internalização das externalidades ambientais negativas. A "socialização" dos danos ambientais gera degradação e destruição dos recursos naturais que terão inevitavelmente impactos negativos sobre as relações de consumo.

Finalmente, não é possível celebrar o Dia Internacional do Consumidor sem chamar a atenção à necessidade de se preservar o acesso à justiça rápido e eficiente como forma de implementação dos direitos consumeristas. No Brasil, o processo civil coletivo viabilizou a tutela coletiva dos direitos do consumidor, evitando a impunidade trazida pelas barreiras de acesso à Justiça. No plano nacional, a preservação da abrangência nacional ou regional das ações civis públicas e coletivas por meio da declaração de inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública (redação dada pela Lei 9.494/97) foi uma recente conquista a favor da tutela dos interesses do consumidor (Rel. Ministro Alexandre de Moraes, R.E, 1.101.937/SP, Tema 1.075 da repercussão geral julgamento interrompido por pedido de vista, mas já com maioria a favor da tese proposta pelo relator, pela inconstitucionalidade do artigo 16 [8]).

Assim, tais facetas da promoção dos direitos do consumidor consagrados internacionalmente e apoiadas pelo movimento transnacional de associações de consumidores mostram-se também tópicos essenciais da defesa nacional da matéria, comprovando a existência de uma proteção multinível e um diálogo entre as fontes, bem como forjando um "consumerismo global". Com a pandemia da Covid-19, o cenário de exclusão e vulnerabilidade realça a importância do avanço da proteção nacional e internacional dos consumidores. A partir da defesa de direitos, as relações complexas de consumo do século 21 cumprirão o anseio de justiça social e promoção da dignidade humana estabelecido na nossa Constituição e também na normatividade internacional.

 


[1] Ver os artigos anteriores nesta coluna na ConJur, de Ana Cândida Muniz Cipriano (https://www.conjur.com.br/2019-jul-31/garantias-consumo-defesa-consumidor-ganha-importancia-ambito-internacional) e de Claudia Lima Marques, Amanda Flávio de Oliveira e Ana Cândida Muniz Cipriano (https://www.conjur.com.br/2016-out-26/garantias-consumo-onu-acompanha-evolucao-relacoes-consumo-nivel-transnacional)

[2] Resolução nº 70/186 da Assembleia Geral da ONU, adotada em 22 de dezembro de 2015. Disponível em: https://unctad.org/system/files/official-document/ares70d186_enºpdf.

[3] CARVALHO RAMOS, André de. Curso de direitos humanos. 8a ed., São Paulo: Saraiva, 2021, p. 974.

[4] CARVALHO RAMOS, André de. O pequeno irmão que nos observa: os direitos dos consumidores e os bancos de dados de consumo no Brasil. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo – SP, v. 53, p. 39-53, 2005.

[5] Ver o anterior artigo de Diógenes Faria de Carvalho e Vitor Hugo do Amaral Ferreira na Conjur. https://www.conjur.com.br/2018-ago-15/garantias-consumo-defesa-consumidor-ganha-lei-protecao-dados.

[6] CARVALHO RAMOS, André de. Jurisdição internacional sobre relações de consumo no novo Código de Processo Civil: avanços e desafios. Revista de Direito do Consumidor, v. 100, p. 473-499, 2015.

[7] BENJAMIN, Antônio Hermanº O Meio Ambiente na Constituição Federal de 1988. Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, v. 19, nº 1, janº/junº 2008, pp. 37-80.

Autores

  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professor de mestrado e doutorado da Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp), procurador regional da República e membro e antigo diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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