Direto do Carf

Contagem de prazo decadencial de um velho (des)conhecido: o ITR

Autor

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

10 de março de 2021, 8h01

Antes de adentrarmos o objeto da coluna desta semana, me parece essencial traçar algumas poucas linhas para justificar a eleição de tema singular.

Spacca
Não é novidade que o ITR, previsto em nossa Carta Constitucional desde 1891, recebe pouca atenção dos juristas. Quiçá o motivo do silêncio esteja no fato de o imposto representar apenas cerca de 0,1% da arrecadação da União [1]. Entretanto, com a pandemia da Covid-19, a necessidade de promoção de um desenvolvimento que seja necessariamente sustentável vem recebendo destaque [2]. É dentro desse contexto que, sobre tributos de vocação extrafiscal, como é o caso do ITR, estão sendo lançadas luzes [3].

Um primeiro bom motivo para a escolha dessa temática, portanto, é reforçar não ter o ITR função primordialmente fiscal [4], pois em sua quintessência está desestimular a manutenção de latifúndios improdutivos para fomentar a utilização racional e profícua da propriedade rural [5]. O segundo impulso foi dado quando, no ano passado, a Receita Federal firmou parceria com associação civil sem fins lucrativos, visando implementar mecanismo para incrementar a sua arrecadação [6]. E, como não poderia deixar de ser, o terceiro pretexto repousa na constatação de que, no âmbito do Carf, existe pulsante debate acerca da contagem do prazo decadencial para a exigência do ITR.

A decadência não é tema novo na Direto do Carf (aqui e aqui); contudo, os debates travados na 2ª Seção ganham contornos diversos dos que já antes expostos nesta coluna [7].

O artigo 10 da Lei nº 9.393/96 trouxe modificação quanto à forma de lançamento do ITR: se antes era tributo sujeito ao lançamento por declaração, a partir 1997 passou a ser por homologação. Com arrimo nas teses firmadas no bojo do REsp nº 973733/SC, submetida à sistemática dos recursos repetitivos, cuja observância é obrigatória para os julgadores do Carf [8], a discussão podia ser assim sumarizada: 1) existente recolhimento do ITR, ainda que a menor, aplicada a regra prevista no § 4º do artigo 150 do CTN, desde que não comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação isto é, teriam as autoridades fazendárias cinco anos, contados a partir do fato gerador (1º de janeiro) para efetuar o lançamento; ou 2) constatada a prática de conduta para ludibriar a fiscalização ou ausente quaisquer recolhimentos, aplicável o disposto no inc. I do artigo 173 ou seja, o termo inicial passaria a ser o exercício seguinte daquele à ocorrência do fato gerador.

Em muitos casos, quando inexistem elementos nos autos capazes de assegurar ter havido (ou não) a antecipação de recolhimento para o exercício objeto da autuação, convertido o julgamento em diligência para que a unidade de origem preste os esclarecimentos imprescindíveis à aferição da decadência [9].

A questão, que com a manifestação do STJ parecia ter se descomplicado, começou a ser analisada sob nuances que acabaram por revelar novos antagonismos. Passou a ser tido como relevante o momento em que efetuado pagamento antecipado do crédito tributário (ainda que a menor). É sobre esse ponto que, caso preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso especial, terá de se manifestar a Câmara Superior de Recursos Fiscais [10].

Tendo a antecipação de pagamento sido feita no mesmo ano em que ocorrido o fato gerador, pacífica é a jurisprudência do Carf em aplicar o prazo decadencial do § 4º do artigo 150 do CTN (1º de janeiro do exercício objeto da autuação). A título exemplificativo, cf.: Acórdão nº 2402-009.490, Cons. Rel. Gregório Rechmann Junior, sessão de 4 de fev. de 2021 (unanimidade) [11]; Acórdão nº 2201-008.166, Cons. Rel. Rodrigo Monteiro Loureiro Amorim, sessão de 13 de jan. de 2021 (unanimidade) [12]; e Acórdão 2201-007.623, Cons. Rel. Douglas Kakazu Kushiyama, sessão de 7 de out. de 2020 (unanimidade) [13].

Noutro giro, quando a antecipação do pagamento ocorre a partir do exercício seguinte ao da ocorrência do fato gerador, duas são as vertentes que se formaram.

A primeira corrente sustenta que "no caso de falta de pagamento ou pagamento em atraso da quota única ou da 1ª quota do ITR, após o exercício de apuração do imposto, aplica-se a regra geral prevista no artigo 173, I, do CTN, para efeito de contagem do prazo decadencial" [14]A partir de uma interpretação literal do disposto no caput do artigo 150 do CTN afiram que a atividade a ser homologada seria o pagamento e não o procedimento de apuração, como defenderiam os que se filiam à segunda corrente [15]. Acrescentam que a mera leitura da ementa do precedente firmado pelo STJ, sob a sistemática dos recursos repetitivos, deixaria claro que "o prazo decadencial quinquenal para o Fisco constituir o crédito tributário (lançamento de ofício) conta-se do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, nos casos em que a lei não prevê o pagamento antecipado da exação ou quando, a despeito da previsão legal, o mesmo inocorre, sem a constatação de dolo, fraude ou simulação do contribuinte, inexistindo declaração prévia do débito" [16]. Por fim, asseveram que não poderia ser negligenciado que já teria iniciado o prazo decadencial quinquenal, nos moldes previstos pelo inc. I do artigo 173 do CTN, quando efetuado o recolhimento a destempo. Imaginemos a seguinte situação: o fato gerador ocorrido em 1º de janeiro de 2019, com prazo para pagamento em 30 de setembro daquele mesmo ano. Ausente qualquer recolhimento, o termo inicial começaria fluir em 1ª de janeiro de 2020. Caso efetuado o pagamento em setembro de 2022, por exemplo, poderia o termo a quo do prazo decadencial retroagir para o dia 1º de janeiro de 2019 [17]? É o que questionam os que se filiam à primeira corrente.

Os que aderem à segunda vertente igualmente partem das teses firmadas pelo STJ no REsp nº 973.733/SC. Por mandatória a observância do precedente consolidado sob o rito do artigo 543-C do CPC/73, sustentam que embora tenha o recolhimento ocorrido a destempo mas antes do início da ação fiscal, frise-se , deveria ser aplicada a regra do §4º do artigo 150 do CTN. Isso porque, não teria o STJ "fix[ado] como critério o pagamento no prazo legal para atrair a regra decadencial pelo fato gerador" [18]. Existiram, portanto, apenas três requisitos inarredáveis e cumulativos para a contagem do prazo decadencial, conforme previsto no §4º do artigo 150 do CTN: "i. o tributo deve ser sujeito a lançamento por homologação; ii. deve ocorrer pagamento antecipado do crédito tributário (ainda que inferior ao efetivamente devido); iii. o contribuinte não pode ter incorrido em fraude, dolo ou simulação" [19]. Assim, em colisão com que asseverado pelos que filiam à primeira vertente, sublinham que "não é o pagamento antecipado do tributo que configura o lançamento por homologação, mas sim o dever legal de o contribuinte verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável e calcular o montante devido" [20]. Por serem recentes os precedentes que travam essa discussão, certamente novas reflexões serão feitas, de modo a robustecer a linha argumentativa desenvolvida por ambas as partes.

Assim, seja pela sua primordial e imprescindível função extrafiscal, seja pelo potencial incremento arrecadatório almejado pela Receita Federal, seja pelos calorosos debates jurídicos que fomenta, o ITR precisa ser levado a sério!

 

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] Em audiência pública realizada, nos idos de 2019, na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados, foi ressaltado que “o ITR é quase insignificante do ponto de vista da arrecadação, o que não acontece em outros países, onde impostos desse tipo representam de 4% a 6% da arrecadação, enquanto no Brasil representa apenas 0,1% do total.” Disponível em: <https://www.camara.leg.br/noticias/577335-debatedores-defendem-reajuste-dos-valores-do-imposto-territorial-rural/>. Acesso em: 6 mar. 2021. Dados acerca da arrecadação do ITR por Município podem ser encontrados em: <http://receita.economia.gov.br/dados/receitadata/arrecadacao/copy_of_arrecadacao-das-receitas-administradas-pela-rfb-por-municipio/arrecadacao-do-itr-por-municipio>. Acesso em: 6 mar. 2021.

[2] Para um estudo abordando a crise econômico-sanitária da COVID-19, que alia desenvolvimento sustentável e direito tributário, cf. BARBOSA, Ana Carolina da Silva; BARRETO, Raphaela Pérez Mafra; SANTOS, Mariana Hartleben Diel. O sistema tributário como ferramenta no financiamento climático. 2021, no prelo.

[3] Recentemente, nesta mesma revista eletrônica, publicada coluna de opinião exaltando a utilização de outro imposto incidente sobre a propriedade para salvaguardar a preservação do meio ambiente: BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; ANDRADE, Aurélio Oliveira; GUIMARÃES, Giovannini Cruz. Considerações sobre o IPTU Verde. ConJur, 24 fev. 2021.

[4] Para a compreensão do poliédrico e multifacetado fenômeno tributário, que não se resume abastecer os cofres públicos, cf.: MARINHO, Marina Soares. As funções da tributação. Belo Horizonte: Letramento, 2019; AVI-YONAH, Reuven S. The three goals of taxation. NYU Tax Law Review, v. 60, n. 2, p. 1-28, 2006. Para um estudo conciso e didático que perpassa as funções da tributação e apresenta reflexão sobre obstáculos encontrados pelo Estado Tributário até a atualidade, cf. ROCHA, Sérgio André. Estado fiscal e tributação no contexto pós-pandêmico. In: SEGUNDO, Hugo de Brito Machado; GODOI, Marciano Seabra; BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; ROCHA, Sérgio André. (Org.). A Pandemia do Covid-19 no Brasil em sua Dimensão Financeira e Tributária. Belo Horizonte, São Paulo: D' Plácido, 2020, p. 383-414.

[5] A propósito, falando sobre tributos incidentes sobre a propriedade em tempos em que se (re)discute a ideia de renda básica, não poderíamos deixar de mencionar a clássica proposta de Thomas Paine de criação de um sistema de seguro universal para abolição da pobreza, financiado por um imposto sobre a herança, em seu Justiça Agrária, publicado no século XVIII.

[6] OLIVEIRA, Kelly. Plataforma ajuda a aumentar a arrecadação do Imposto Territorial Rural. Agência Brasil, 9 jun. 2020. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2020-06/plataforma-ajuda-aumentar-arrecadacao-do-imposto-territorial-rural>. Acesso em: 6 mar. 2021.

[7] Uma exceção está em precedente no qual se discute a possibilidade de aplicação do disposto no § 4º do artigo 150 do CTN quando, a despeito de ausência de recolhimento antecipado, há débito declarado em DITR transmitida, tendo sido realizado lançamento de ofício para exigência de diferenças apuradas, sem constatação de dolo, fraude ou simulação. (Acórdão nº 2202-005.964, Cons. Rel. LEONAM ROCHA DE MEDEIROS (voto vencido), Cons. RONNIE SOARES ANDERSON (redator designado), sessão de 4 de fev. de 2020 (por maioria).

[8] “Vide” § 2º do artigo 62 artigo do RICarf.

[9] Cf. Resolução nº 2301-000.855, Cons. Rel. CLEBER FERREIRA NUNES LEITE, sessão de 9 de jul. de 2020 (por maioria); Resolução nº 2402-000.845, Cons.ª Rel.ª ANA CLAUDIA BORGES DE OLIVEIRA, sessão de 7 de jul. de 2020 (unanimidade); Resolução nº 2201-000.412, Cons. Rel. RODRIGO MONTEIRO LOUREIRO AMORIM, sessão de 4 de jun. de 2020 (unanimidade). Registro que a Fazenda Nacional já interpôs recurso especial asseverando que “a prova do pagamento antecipado, apto a atrair a incidência do artigo 150, § 4º, do CTN, deve constar dos autos e ser apresentada pelo sujeito passivo”, tendo sido a tese rechaçada. (Acórdão nº 9202-008.472, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI, sessão de 18 de dez. de 2019 [por maioria]).

[10] A Fazenda Nacional interpôs recurso especial nos autos do processo de nº 10120.721556/2014-34, que versa, exclusivamente, sobre a matéria ora debatida. Não se desconhece já ter a eg. CSRF exarado manifestação acerca das teses firmadas no REsp nº 973.733/SC – “vide” Acórdão nº 9202-008.493, Cons.ª Rel.ª MARIA HELENA COTTA CARDOZO, sessão de 18 de dez. de 2019 (unanimidade) –; entretanto, há sinalização de a discussão ter ganhado novos contornos.

[11] “No caso presente caso, o órgão julgador de primeira instância destacou e confirmou que o imposto apurado pelo contribuinte na sua DITR/2014, de R$ 207.357,10, a ser pago em 4 parcelas de R$ 51.839,27, às fls. 29, foi pago parcialmente no exercício de 2014, pois a 1º parcela, com vencimento em 30.09.2014, foi paga em 23.12.2014, com os acréscimos legais, no valor total de R$ 63.653,43, conforme tela do sistema SIEF de fls. 311.” (f. 336)

[12] “Quando do cumprimento da diligência determinada pela Resolução no 2201- 000.411 (fls. 163/169) a unidade preparadora acostou aos autos o extrato consulta de pagamentos de fl. 172 e o despacho de fl. 173, comprovando que o ITR do exercício 2003, apurado pelo contribuinte no valor de R$ 418,50, foi pago em 30/09/2003, que era a respectiva data do vencimento.” (f. 183)

[13] “No presente caso, o imposto apurado pelo contribuinte em sua primeira DITR/2007, apresentada à RFB em 27/09/2007 (fls. 380), foi pago com atraso, em parcela única, porém dentro do exercício de 2007, em 30/11/2007, no valor total de R$ 1.463,16, que corresponde ao valor principal (R$ 1.200,00) mais encargos (R$ 263,16), conforme tela do sistema “SIEF” de fls. 379.” (f. 426)

[14] Acórdão nº 2301-007.612, Cons. Rel. CLEBER FERREIRA NUNES LEITE, sessão de 9 jul. de 2020 (unanimidade).

[15] Cf. voto divergente do Cons. JOÃO MAURÍCIO VITAL no acórdão nº 2301-007.894, Cons. Rel. CLEBER FERREIRA NUNES LEITE, sessão de 4 set. de 2020 (desempate pró-contribuinte, artigo 28 da Lei nº 13.988/2020).

[16] STJ. REsp nº 973.733/SC, Rel. Min. LUIZ FUX, julgado em 12/08/2009. Entendimento idêntico é encontrado em: Acórdão nº 2401-008.977, Cons. Rel. RODRIGO LOPES ARAÚJO, sessão de 12 jan. de 2021 (por maioria).

[17] Em igual sentido: voto divergente do Cons. JOÃO MAURÍCIO VITAL no acórdão nº 2301-007.894, Cons. Rel. CLEBER FERREIRA NUNES LEITE, sessão de 4 set. de 2020 (desempate pró-contribuinte, artigo 28 da Lei nº 13.988/2020).

[18] Voto de declaração do Cons. WESLEY ROCHA no acórdão nº 2301-007.894, Cons. Rel. CLEBER FERREIRA NUNES LEITE, sessão de 4 de set. de 2020 (desempate pró-contribuinte, artigo 28 da Lei nº 13.988/2020).

[19] Voto de declaração do Cons. MATHEUS SOARES LEITE no acórdão nº 2401-008.977, Cons. Rel. RODRIGO LOPES ARAÚJO, sessão de 12 de jan. de 2021 (por maioria). Em igual sentido: Acórdão nº 2402-009.488, Cons. Rel. FRANCISCO IBIPIANO LUZ, sessão de 4 de fev. de 2021 (unanimidade).

[20] Idem.

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG, com período de investigação na McGill University. Foi residente pós-doutoral na UFMG. Conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf; professora de Direito Tributário da graduação da UFMG e da pós-graduação da PUC-Minas.

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