Opinião

Advocacia criminal e sigilo de defesa conjunta

Autor

10 de março de 2021, 7h11

O artigo 7º, II, da Lei nº 8.906/94 prevê, entre as prerrogativas profissionais do advogado, a inviolabilidade do seu escritório, instrumentos de trabalho e correspondência (escrita, eletrônica, telefônica e telemática), desde que relativa ao exercício da advocacia.

Spacca
O inciso subsequente protege a comunicação de cariz pessoal e reservado entre defensor e cliente, mesmo sem procuração, ou quando este estiver preso em estabelecimento civil ou militar, ainda que considerado incomunicável.

Já o artigo 7º, XIX, da Lei nº 8.906/94 impõe que o causídico se abstenha de depor como testemunha em processo no qual atuou, ou sobre fato relacionado à pessoa de quem seja (ou tenha sido) patrono, mesmo quando autorizado ou solicitado pelo constituinte, bem como sobre fato que constitua sigilo profissional.

As sobreditas normas legais são adensadas pelo Capítulo VII do Código de Ética e Disciplina da OAB.

Há previsão do dever de resguardar sigilo sobre fatos dos quais o advogado tomou conhecimento no exercício da profissão, inclusive funções desempenhadas perante a OAB (artigo 35).

Trata-se de matéria jurídica de ordem pública, independentemente de pedido do cliente, outorga de mandato, previsão em cláusula contratual etc. As comunicações de qualquer natureza entre defensor e cliente são presumidas confidenciais (artigo 36).

O sigilo em digressão não possui cariz absoluto ou ilimitado, sendo susceptível à restrição nas situações excepcionais configuradoras de justa causa. Por exemplo: grave ameaça aos direitos à vida e à honra, ou que envolvam defesa própria etc. (artigo 37).

O causídico não possui dever de depor, em processo judicial ou procedimento administrativo ou arbitral, sobre fatos em relação aos quais ele deve guardar o sigilo profissional (artigo 38).

Eventual descumprimento sem justa causa do dever em apreço constitui infração ético-disciplinar (artigo 34, VII da Lei nº 8.906/94), podendo caracterizar, em tese, crime de violação do segredo profissional (artigo 154 do Estatuto Repressivo).

O cotejo lógico-sistemático dos precitados dispositivos revela que o sigilo é um pressuposto da criação, consolidação e manutenção da relação advogado-cliente, além de uma das suas principais características distintivas (junto com a confiança).

A doutrina pátria leciona que a natureza jurídica do sigilo profissional é dever-garantia. Por um lado, ele constitui dever legal e ético do advogado de proteger os segredos confidenciados pelo cliente. Por outro flanco, ele também é garantia da ampla defesa, imunizando o defensor contra coações estatais para forçá-lo a revelar segredos do cliente [1].

O sigilo profissional tem hierarquia constitucional, estando implícito nas cláusulas da ampla defesa e da imprescindibilidade do causídico para o sistema de administração da justiça criminal (artigos 5º, LV, e 133 do texto magno). Também se trata de instituto tutelado pelo artigo 8.2.d da Convenção Americana de Direitos Humanos, que prevê o direito do acusado a "comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor".

Pierpaolo Bottini e Heloísa Estellita diferenciam a inviolabilidade advocatícia do sigilo profissional, estabelecendo relação de continente e conteúdo, na qual o sigilo está contido na inviolabilidade.

Nessa toada, esta última é prerrogativa profissional mais abrangente, pois ela protege não só os segredos do cliente de divulgação indevida pelo seu destinatário (o defensor), resguardando também esses segredos e as comunicações entre causídico e cliente de ingerências por parte de terceiros (v.g. autoridades públicas) [2].

Antonio Scarance Fernandes, por sua vez, diferencia os conceitos de segredo e sigilo [3].

Segredo é o objeto do conhecimento individual, ou restrito a círculo reduzido de pessoas. Ou seja, o segredo é aquilo que se deseja manter alheio ao conhecimento de terceiros.

Já o sigilo é o meio de proteção do segredo, devendo ser analisado com base nos seus três elementos estruturais: sujeito, conteúdo e objeto. O titular é o possuidor do segredo. O conteúdo é a faculdade jurídica de invocar a inviolabilidade desse segredo perante terceiros. O objeto é a proteção da dignidade da pessoa humana, na sua projeção sobre a liberdade.

Os fundamentos axiológicos do sigilo profissional são o princípio da confiança e o múnus público exercido pelo advogado [4].

Nesse sentido, o sigilo é contrapartida e pressuposto da confiança depositada no defensor pelo cliente, que leva este a compartilhar segredos imprescindíveis para sua defesa penal efetiva. O múnus público, por sua vez, decorre da natureza jurídica do causídico: órgão indispensável ao funcionamento do sistema de administração da Justiça Criminal.

Assim, o sigilo se presta a duas finalidades sociais relevantes: 1) manter a confiança da sociedade em integrantes de categorias profissionais que precisam conhecer segredos alheios, para poder prestar serviços adequadamente; 2) proteger esses profissionais (confidentes necessários) do risco de virarem delatores pois esse risco reduziria os atendimentos essenciais, causando esgarçamento danoso ao tecido social [5].

A questão do sigilo pode desafiar sérios dilemas éticos e morais para o advogado.

Por exemplo: 1) o cliente pode comunicar ao defensor sua intenção de praticar crime contra a vida ou integridade física alheia; 2) o cliente pode confessar a autoria de crime pelo qual terceiro inocente está sendo processado, ou foi condenado; 3) o causídico pode ter que compartilhar segredos do cliente com terceiros (v.g. assistente técnico, investigador particular etc.); 4) o advogado empregado (in-house lawyer) pode desempenhar funções heterogêneas (advocatícias e de consultoria/gestão empresarial); 5) o acordo de colaboração premiada ou leniência pode implicar renúncia ao sigilo, ante o compartilhamento de comunicações com autoridades públicas [6].

O ordenamento jurídico norte-americano protege o sigilo advogado-cliente (attorney-client privilege).

Grosso modo, esse sigilo se aplica se preenchidas as seguintes condições: 1) o seu titular é um atual ou potencial cliente; 2) o destinatário da comunicação é profissional habilitado na Ordem dos Advogados, agindo nessa qualidade; 3) a comunicação é relativa a fato naturalístico comunicado pelo cliente sem a presença de estranhos, e com o propósito principal de obter aconselhamento, serviço jurídico ou representação processual, e não de praticar crime ou ato ilícito; 4) o sigilo é invocado (e não renunciado) pelo cliente [7].

Não obstante, o recorte deste texto é focado em questão conexa ao sigilo advogado-cliente: o chamado sigilo de defesa conjunta (joint-defense privilege[8].

Sua origem é caso julgado nos Estados Unidos da América há exatos 150 anos [9].

Três pessoas foram acusadas de crime associativo, constituindo advogados distintos. Chahoon foi julgado separadamente. Em seu julgamento, um dos corréus depôs como testemunha de acusação, relatando conversa entre ele e Chahoon, durante reunião com a presença dos respectivos defensores. Chahoon alegou que esse relato era incorreto, arrolando o causídico dessa testemunha para depor. Não obstante, ele se recusou a depor, invocando o sigilo advogado-cliente.

A corte decidiu pela legalidade dessa recusa, com base no fundamento de que inexiste distinção entre o sigilo de comunicações entre corréus com advogados distintos ou advogado comum. Portanto, o sigilo se estende aos colóquios entre corréus, na presença dos seus defensores, com o propósito de facilitar sua defesa face a acusações comuns.

Essas conversações caracterizam exceção à regra geral de que a divulgação de segredos a pessoas estranhas à relação advogado-cliente enseja renúncia ao sigilo, desde que preenchidas as seguintes condições: 1) o objeto dos diálogos deve ser assunto de interesse comum dos interlocutores; 2) a extensão do sigilo abarca comunicações entre defensores, entre defensor e acusado (cliente seu ou não) e entre corréus, neste caso desde que na presença de um causídico; 3) o marco temporal independe de haver persecução penal iminente ou atual, bastando haver interesse comum em obter aconselhamento jurídico; 4) a duração do sigilo transcende o caso criminal, estendendo-se a quaisquer litígios subsequentes, inclusive entre os próprios interlocutores.

É possível a celebração de acordo de defesa conjunta (joint defense agreement) por corréus com advogados distintos, que concordam em conjugar esforços e compartilhar segredos de clientes, em prol de objetivo processual comum.

O acordo em exame serve fomentar a própria efetividade da defesa penal, via: 1) uniformização da teoria do caso, evitando defesas individuais contraditórias entre si; 2) coordenação de estratégias e táticas processuais; 3) compartilhamento de documentos e informações, prevenindo erros e omissões decorrentes de assimetria informacional; 4) divisão e otimização do trabalho de investigação defensiva, revisão documental, pesquisa jurídica etc.; 5) combinação de diferentes conhecimentos, experiências e habilidades dos defensores; 6) rateio de custos (v.g. honorários de assistente técnico, investigador particular etc.).

Portanto, esse acordo favorece a igualdade substancial entre as partes processuais. O Estado não pode impedir a coordenação de esforços e o compartilhamento de segredos entre defensores. Caso contrário, o acusador teria injusta vantagem tática, pois defesas individuais dissonantes prejudicam a efetividade do direito de defesa como um todo.

Caso um acusado se torne colaborador premiado ou leniente, os fluxos comunicacionais entre ele e demais corréus remanescem protegidos pelo sigilo, não podendo ser usados pelo acusador.

Não obstante, essa hipótese suscita dilemas éticos e morais para os demais defensores. Por um lado, há o dever de resguardar o sigilo de defesa conjunta. Por outro flanco, também há o dever de fazer defesa efetiva dos interesses do cliente, inclusive durante o exame cruzado do colaborador premiado ou leniente [10].

Como reconciliar, na prática, esses dois deveres conflitantes? Há automático impedimento do advogado, a ensejar renúncia ao mandato? O acusador pode aliciar corréu para celebrar acordo de colaboração premiada ou leniência, com o propósito de gerar impedimento do defensor constituído pelo acusado? Há violação ao direito fundamental do acusado à livre escolha do causídico [11]?

A doutrina defende que o sigilo de defesa conjunta (joint-defense privilege) possui fundamento e regime jurídico próprios, desvinculados do sigilo advogado-cliente.

Isso porque o fundamento do primeiro é fomentar a efetividade geral da defesa penal, fornecendo ao acusado a vantagem tática do acesso às informações na posse de corréus [12].

Para tanto, a melhor solução é a ressignificação do sigilo em exame, que deve ser considerado uma doutrina protetiva autônoma (independente do sigilo advogado-cliente).

Nesse contexto, as partes do acordo têm dever fiduciário: usar as conversas só para o objetivo comum de defender seus membros de acusações criminais (atuais ou potenciais). Por conseguinte, os advogados de corréus podem usar as comunicações prévias de colaborador premiado ou leniente, durante seu exame cruzado em juízo [13].

Entre nós, inexiste norma legal ou deontológica vedando acordos de defesa conjunta entre corréus, à luz do princípio da liberdade contratual (artigo 425 da codificação civil).

Tampouco existe vedação legal ou ética para colóquios entre defensores de corréus, com vistas à uniformização da teoria do caso, coordenação de estratégias e táticas processuais, compartilhamento de segredos etc. Essas condutas caracterizam legítimo exercício do direito fundamental à ampla defesa [14].

Assim, é importante a adoção entre nós de instituto similar ao joint-defense privilege norte-americano, para assegurar a devida proteção normativa ao sigilo dos fluxos comunicacionais entre defensores de corréus.

Por fim, como a medida cautelar de proibição de contato com coinvestigado ou corréu (artigo 319, III do Estatuto Processual Penal) põe em causa o direito fundamental à ampla defesa, ela deve ser objeto de interpretação e aplicação restritivas.

 


[1] MEDINA, Paulo Roberto de Gouvêa. Comentários ao Código de Ética e Disciplina da OAB, pp. 91 e ss. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

[2] BOTTINI, Pierpaolo Cruz; ESTELLITA, Heloísa. A confiança, o sigilo e a inviolabilidade, In: Revista dos Tribunais, São Paulo, n. 970, pp. 19-33, ago. 2016.

[3] FERNANDES, Antonio Scarance. O sigilo e a prova criminal, In: Ciências Penais, São Paulo, n. 04, pp. 153-160, jan. 2006.

[4] ARNAUT, António. Iniciação à advocacia: História, Deontologia, questões práticas, pp. 107 e ss. 11. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2014.

[5] SOBRINHO, Mário Sérgio; LACAVA, Thaís Aroca Datcho. O sigilo profissional e a produção da prova, In: FERNANDES, Antonio Scarance e outros (Coords.). Sigilo no processo penal: Eficiência e garantismo, pp. 171-202. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

[6] Nesses casos, é recomendável consulta ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB (artigo 71, II do Código de Ética e Disciplina da OAB), para saber se, no caso concreto, há justa causa para revelação dos segredos do cliente às autoridades públicas, ou particulares.

[7] THAMAN, Stephen. Confidentiality of attorney-client communications in the United States, In: WINTER, Lorena Bachmaier (Ed.). The right to counsel and the protection of attorney-client privilege in criminal proceedings: A comparative view, pp. 395-440. Chambersburg: Springer, 2020.

[8] WELLES, Patricia. A survey of attorney-client privilege in joint defense, In: University of Miami Law Review, v. 35, n. 02, pp. 321-344, 1981.

[9] Chahoon v. Commonwealth, 62 Va. (21 Gratt.) 822 (1871).

[10] Sobre esses dilemas éticos, ver: BOUTROS, Andrew; SCHLEPPENBACH, John. Defense agreements: An ounce of prevention can be worth a pound of cure, especially when careful planning avoids ethical pitfalls, In: Champion, sep./oct. 2020, p. 49.

[11] Defendendo uma concepção restritiva do impedimento do defensor nesses casos, ver: FORSGREN, Matthew. The outer edge of the envelope: Disqualification of white collar criminal defense attorneys under

the joint defense doctrine, In: Minnesota Law Review, v. 78, pp. 1.219-1.251, 1994.

[12] RUSHING, Susan. Separating the joint-defense doctrine from the attorney-client privilege, In: Texas Law Review, v. 68, pp. 1.273-1.302, 1989-1990.

[13] BARTEL, Deborah Stavile. Reconceptualizing the joint defense doctrine, In: Fordham Law Review, v. 65, n. 03, pp. 871-925, 1996.

[14] FELDENS, Luciano; TEIXEIRA, Adriano. O crime de obstrução de justiça, pp. 38-42. São Paulo: Marcial Pons, 2020.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!