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O Fisco é serviço público prioritário e exige vinculação de receita

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

10 de março de 2021, 10h20

Spacca
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 186/2019, com acréscimos das PEC nº 187/2019 (extinção dos fundos) e 188/2019 (pacto federativo), a pretexto de atender às demandas de auxílio emergencial, avança para mudanças severas das finanças públicas em nosso País. Em alguns aspectos, porém, com graves retrocessos, como se verifica com a desvinculação de recursos orçamentários das administrações tributárias, mediante alteração do art. 167, inciso IV, da Constituição Federal, que excepciona a vinculação dos impostos em relação aos gastos de gestão e de eficiência do Fisco.

A PEC nº 186/2019 simplesmente desmonta o serviço público brasileiro, com evidente precarização das despesas com gastos de pessoal e engessamentos do custeio de serviços essenciais, notadamente como se verifica no art. 167-A, no art. 167-G e no art. 109 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). De congelamento de salários no serviço público à proibição de novas contratações, tudo leva a ruínas o modelo de Administrações Tributárias que hoje conhecemos.

No âmbito federal, a PEC nº 186/2019 excluiu da vinculação de receitas o Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização (FUNDAF), em vigor desde o Decreto-lei nº 1.437, de 17 de dezembro de 1975. Neste, não são estão recursos destinados a proveito dos servidores, mas, sim, para gastos com desempenho e qualificação da prestação dos serviços de arrecadação ou de informatização da Receita Federal. E o mesmo efeito dar-se-á nos estados e municípios, nos quais existem fundos equivalentes, para financiar a execução de atividades do Fisco, pela essencialidade e continuidade das funções, a exigir recursos estáveis e suficientes.

A Constituição de 1988 traz um conjunto de regras jurídicas que deixa clara a necessidade de diferenciação do custeio dos serviços das administrações tributárias, em todos os níveis federativos, da União, dos estados e dos municípios.

Dentre outros, o art. 37, inciso XXII da CF estabelece que “as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.” Ora, ao tempo que destaca a exigência de recursos prioritários para a realização de suas atividades, este comando impõe a adoção de meios hábeis a fomentar a disponibilidade de recursos de modo vinculante.

O art. 237 da CF, por sua vez, prescreve que “a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior, essenciais à defesa dos interesses fazendários nacionais, serão exercidos pelo Ministério da Fazenda.” Portanto, em linha com o art. 37, XXII da CF, estatui a essencialidade dos serviços de fiscalização, controle e arrecadação de tributos no comércio exterior. A aduana brasileira, mediante a eficiente cobrança de tributos, é meio de proteção da indústria e do comércio brasileiros, logo, de interesse do mercado, por servir à proteção da economia nacional no controle do comércio exterior e nas fronteiras, no combate à sonegação, contrabando e outras práticas lesivas.

Ao mesmo tempo, o art. 52, XV da CF determina que compete privativamente ao Senado Federal “avaliar periodicamente a funcionalidade do Sistema Tributário Nacional, em sua estrutura e seus componentes, e o desempenho das administrações tributárias da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios.” Destarte, cabe ao Senado a missão de acompanhar o desempenho das administrações tributárias, o que pode justificar propostas de mudanças, mas desde que ao amparo de motivação fundada nas avaliações realizadas. Nunca de forma abrupta e desprovida de cuidados ante às eventuais repercussões sobre perdas de receitas.

Atualmente, a vinculação de receitas está assegurada pelo art. 167, IV da CF, ao tempo que este prescreve ser vedada: “a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas (…) e para realização de atividades da administração tributária, como determinado, respectivamente, pelos arts. (…) e 37, XXII (…)”. Este artigo afirma, pois, uma necessária reserva de recursos para garantir o funcionamento permanente e eficiente da atividade tributária.

A PEC nº 186/2019, porém, altera substancialmente esta vinculação. Deixa de falar de vinculação de “impostos”, para abarcar “receitas públicas”. Mas não só. O Relator do Substitutivo, Senador Márcio Bittar, destaca ter recebido “diversos pedidos para a ampliação da relação de exceções à desvinculação generalizada de receitas que promovemos em nosso Substitutivo”. E, nas suas palavras, sem qualquer critério de mérito, alega: “consideramos a maior parte não merecedora dessa salvaguarda, mas acolhemos os pleitos relacionados à defesa nacional e à segurança, áreas fundamentais de atuação do Estado e que devem poder contar com um fluxo estável de recursos.” Pois bem. E o que dizer das funções de poder de polícia da Receita Federal em fronteiras? Do auxílio do Fisco às forças de ordem no combate a tráfico de drogas ou outros ilícitos?

A Redação proposta pelo Art. 1º da PEC 186 ao Art. 167, IV da CF e, simplesmente, uma estarrecedora confusão de fins e meios, a saber:

Art. 167. São vedados:

IV – a vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas:

a) as receitas oriundas da arrecadação de taxas, contribuições, doações empréstimos compulsórios, de atividades de fornecimento de bens ou serviços facultativos e da exploração econômica do patrimônio próprio dos órgãos e entidades da administração, remunerados por preço público, bem como o produto da aplicação financeira desses recursos, transferências recebidas para o atendimento de finalidades determinadas e as receitas de capital;

b) a repartição entre os entes federados do produto da arrecadação das receitas a que se referem o § 1º do art. 20 [participação ou compensação financeira pela exploração de recursos minerais], o inciso III do parágrafo único do art. 146 [regime único de arrecadação dos impostos e contribuições de micro e pequenas empresas para União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios] e os arts. 157 [pertencem a estados e Distrito Federal],158 [pertencem a municípios] e 159 [a União entregará], bem como a destinação a que se referem o § 5º do art. 153 [imposto sobre operações financeiras sobre ouro] e a alínea “c” do inciso I do art. 159 [3% de impostos de renda e sobre produtos industrializados para Fundos do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste;

c) a repartição com Estados e Municípios dos recursos financeiros oriundos da concessão florestal;

d) a repartição com Municípios e o Distrito Federal dos recursos provenientes de taxa de ocupação, foro e laudêmio;

e) a prestação de garantias na contratação de operações de crédito por antecipação de receita, previstas no art. 165, § 8º [autorizadas pela lei orçamentária anual];

f) a vinculação permitida pelo § 4º deste artigo [garantia e pagamento de dívida com a União];

g) a receita destinada por legislação específica ao pagamento de dívida pública;

h) as receitas destinadas ao Fundo do Regime Geral de Previdência Social;

i) as receitas destinadas ao Fundo de Amparo ao Trabalhador;

j) as restituições de benefícios assistenciais e previdenciários;

k) a destinação de recursos para as ações e serviços públicos de saúde e para manutenção e desenvolvimento do ensino, como determinado, respectivamente, pelos arts. 198, § 2º [piso da saúde], e 212 [piso da educação];

l) a destinação de recursos e as receitas vinculadas a programas instituídos por lei para financiamento a estudantes de cursos superiores não gratuitos e com avaliação positiva nos processos conduzidos pela União com essa finalidade;

m) os recursos destinados aos fundos:

1. previstos nas Constituições e Leis Orgânicas de cada ente federativo, inclusive no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;

2. criados para operacionalizar vinculações de receitas estabelecidas nas Constituições e Leis Orgânicas de cada ente federativo;

3. destinados à prestação de garantias e avais;

4. previstos no art. 76-A, parágrafo único, inciso V, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias [fundos instituídos pelo Poder Judiciário, pelos Tribunais de Contas, pelo Ministério Público, pelas Defensorias Públicas e pelas Procuradorias-Gerais dos Estados e do Distrito Federal];

5. Fundo Nacional de Segurança Pública, Fundo Penitenciário Nacional, Fundo Nacional Antidrogas, Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Fundo de Defesa da Economia Cafeeira, Fundo para Aparelhamento e Operacionalização das Atividades-fim da Polícia Federal, Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente e Fundo Nacional da Cultura;

n) as receitas de interesse à defesa nacional e as destinadas à atuação das Forças Armadas. […]

XIV – a criação de fundo público, quando seus objetivos puderem ser alcançados mediante a vinculação de receitas orçamentárias específicas ou mediante a execução direta por programação orçamentária e financeira de órgão ou entidade da Administração Pública; […]

§ 4º É permitida a vinculação das receitas a que se referem os arts. 155 [impostos estaduais e distrital], 156 [impostos municipais], 157 [participações estaduais e distrital],158 [participações municipais] e 159, I, “a” [21,5% de impostos de renda e sobre produtos industrializados para estados e Distrito Federal], “b” [22,5% para municípios], “d” [1% para municípios] e “e” [1% para municípios], e II [10% do imposto sobre produtos industrializados proporcionalmente à exportação desses produtos], para pagamento de débitos com a União e para prestar-lhe garantia ou contragarantia.

A mudança pretendida é uma temeridade. Os gastos públicos com a manutenção e gestão dos fiscos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios são prioritários, como consagra o inciso XXII do art. 37 da Constituição. E isto porque, cumprem funções essenciais ao funcionamento do Estado, porquanto sem estes gastos nenhum outro direito ou serviço público pode subsistir.

A Administração Tributária é uma típica carreira de Estado, exige garantias de essencialidade, continuidade e dever de eficiência. De acordo com o Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado (FONACATE), as “carreiras típicas de Estado são aquelas que exercem atribuições relacionadas à expressão do Poder Estatal, não possuindo, portanto, correspondência no setor privado. Integram o núcleo estratégico do Estado, requerendo, por isso, maior capacitação e responsabilidade. Estão previstas no artigo 247 da Constituição Federal e no artigo 4º, inciso III, da Lei nº 11.079, de 2004.”

Verifica-se que o tratamento diferenciado da Administração Tributária justifica-se constitucionalmente ante à especificidade das importantes funções que desempenham, as quais são indispensáveis à regular arrecadação e administração dos valores necessários à escorreita manutenção do Estado.

Dinheiro público não nasce em árvore, precisa ser arrecadado. Somente assim pode-se pagar remuneração de servidor público, financiar a previdência social, custear gastos com a máquina pública, construir infraestrutura, realizar investimentos, prover os cidadãos com bons serviços prestados pelo Estado, dentre outros.

Nada impede que se possa efetuar reformas, todas serão sempre bem-vindas. O problema está unicamente em pretender retirar receitas necessárias ao desempenho das administrações tributárias sem prévio estudo da situação dos entes federativos. Isto pode levar a riscos de uma espécie de laissez faire, laissez passer da ilicitude, em virtude da redução dos gastos com despachos aduaneiros em fronteiras com países envolvidos na produção e tráfico de drogas, por exemplo. E pode agravar nossos limitados instrumentos de combate ao terrorismo, contrabando de armas, munição e outros crimes.

Todos os direitos exigem gastos públicos para serem efetivados: saúde, educação, segurança etc. Para tanto, os serviços públicos, em todos os seus níveis, apresentam-se como exclusivos centros de gastos para atender às demandas da sociedade. Da Presidência da República às forças armadas, passando pelo Poder Judiciário ou pelo Poder Legislativo, do Ministério Público à Previdência Social, do Tribunal de Contas aos Ministérios, todos são puros centro de gastos, organizados e distribuídos conforme a lei do orçamento público. E somente um destes serviços reclama gastos para arrecadar receitas suficientes a viabilizar o funcionamento de todos os demais órgãos ou à concretização dos direitos: a administração tributária.

Em todas as nações civilizadas, a instituição do Fisco é considerada fundamental e dotada de preferencial atribuição de recursos para bem cumprir suas missões na arrecadação dos tributos. Sem estes, nenhum outro órgão estatal pode atuar na sociedade.

O orçamento público perfaz-se com despesas certas e receitas estimadas, ainda por serem coletadas. Entretanto, na falta de arrecadação suficiente, o destino do Estado é a letargia e perda de eficiência na prestação dos seus serviços públicos.

Nunca as administrações tributárias foram tão desprestigiadas e nossa sociedade pagará um alto preço por esta desastrosa escolha. O descalabro como tem sido geridas as contas públicas é algo nunca dantes vistas em nossas terras brasileiras.

No âmbito da União, os concursos públicos para suprir as demandas de auditores foram suspensos, sem prazo para serem retomados. Os gastos com pessoal não têm projeção de aumento real até 2023. As fiscalizações e órgãos de atendimento ao contribuinte simplesmente foram reduzidos ou transferidos para unidades especializadas, dispersos entre vários estados. Com isso, agrava-se a dificuldade no atendimento aos contribuintes, nas respostas a consultas, nos atos de combate à sonegação e no cumprimento dos misteres de controle das obrigações de todos os contribuintes.

Como escusas de crise fiscal e danos decorrentes da pandemia, há um galopante processo de deterioração das instituições em curso em nosso País. A crise fiscal, porém, não pode obstar o tratamento diferenciado de financiamento da Administração Tributária, na forma prevista nos art. 37, XXII e 167, IV da CF.

Fisco forte, cidadania garantida. Só com gastos públicos um Estado pode atender às demandas da sociedade. E só há gastos onde houver arrecadação. Esta é a síntese de toda e qualquer sociedade que prestigia o fortalecimento da arrecadação de tributos, o combate à sonegação e a garantia de que todos cumpram com suas obrigações tributárias.

A evidência que a falta de recursos prejudica a qualidade de atendimento dos órgãos da Receita Federal, no âmbito da União, e, por conseguinte, toda a sociedade, foi constatado pelo Tribunal de Contas da União – TCU, no TC 026.156/2011-3, Acórdão nº 1449/2012, ao “recomendar à Secretaria da Receita Federal do Brasil que: (…) 9.3.1 reveja o quantitativo e o perfil etário dos servidores alocados nos aeroportos internacionais, especialmente no Galeão/RJ e Guarulhos/SP, para torná-los compatíveis com a natureza e a intensidade das atividades executadas, garantindo, assim, maior eficácia e celeridade aos procedimentos de controle aduaneiro nesses locais (§ 212)”. Em sentido equivalente, os Acórdãos nº 598/2018 e nº 1095/2019.

No Acórdão nº 2133/2017, o TCU assim se manifestou sobre a SRFB:

7. De modo geral, constatou-se, a partir da base de dados de pessoal e nas entrevistas com delegados, chefes de serviços, auditores, analistas, administrativos do Serpro e da carreira do Plano Especial de Cargos do Ministério da Fazenda (Pecfaz), que o número de servidores da RFB tem diminuído ano a ano em todas as carreiras, mantendo uma tendência de redução ao longo do tempo (peça 60, p. 33). (…)

9. A respeito dessas constatações, a equipe de auditoria concluiu que a força de trabalho da RFB não está bem dimensionada, o que pode gerar reflexos em sua capacidade operacional e, consequentemente, resultar em queda de arrecadação tributária e em mau atendimento à sociedade.”

De modo equivalente, com conclusões do TCU por melhoria de atendimento da SRFB, veja-se o Acórdão nº 1105/2019:

VISTOS, relatados e discutidos estes autos de relatório de levantamento de auditoria realizado com o objetivo de identificar os principais gargalos e riscos envolvidos nos procedimentos necessários para cumprimento das obrigações tributárias, compreendendo as atividades de preparação, declaração e pagamento de tributos federais, com ênfase na atuação da Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB); (…)

9.1. recomendar à Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), nos termos do art. 250, inciso III, do RITCU que (…):

9.1.2. implemente sistemática de avaliação qualitativa de satisfação dos contribuintes com os serviços por ela prestados, nos termos do que estabelece o art. 20 do Decreto 9.094/2017; (…)”.

A mudança da PEC nº 186/2019 vai contra todas estas recomendações, porquanto o TCU exige da SRFB ampliação de gastos públicos para melhorias no atendimento e funcionalidade dos seus serviços internos de fiscalização e controle das obrigações tributárias, devoluções de créditos, acompanhamento de processos fiscais e outros.

Impõe-se, assim, o destaque supressivo da modificação do art. 167, IV da CF, quanto aos fundos de destinação dos recursos vinculados à atuação das Administrações Tributárias. Estes fundos permitem a necessária diferenciação de financiamento, para custear os gastos com o funcionamento do Fisco, único meio para que as unidades federativas possam ampliar as receitas a serem arrecadadas para fazer face aos gastos públicos emergenciais e de custeio dos entes públicos em favor de toda a sociedade.

Difícil imaginar que, sem vinculação de receitas compatíveis, a Administração Tributária possa operar com plena independência funcional no exercício das suas funções, com autonomia para organizar suas atividades, capacidade de gerir seus meios materiais e humanos para sua produtividade, com governança, transparência e eficiência. A redução do financiamento da Receita Federal ou dos fiscos estaduais ou municipais somente interessa a quem pretende ver a degradação do estado brasileiro, pela redução da arrecadação tributária, deterioração do ambiente de negócios, pelo aumento de sonegação, e impunidade para crimes tributários, de tráficos de drogas ou de descaminho.

 

Autores

  • Brave

    é advogado, professor titular de Direito Financeiro e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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