Opinião

A ADI n° 6119 e generalização da posse de armas de fogo no Brasil

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9 de março de 2021, 16h11

A ADI n° 6119 encontra-se na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) desta quinta-feira (11/3). Por meio da ação, busca-se obter do STF interpretação conforme a Constituição do requisito da "efetiva necessidade" para a posse de armas de fogo, estabelecido no artigo 4, caput, da Lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003: "A posse de armas de fogo não pode ser autorizada à generalidade das pessoas, mas apenas, excepcionalmente, àquelas que demonstrem, por razões profissionais ou pessoais, possuir efetiva necessidade".

Além disso, por meio da ADI 6119, requer-se também ao STF a declaração de inconstitucionalidade, por "arrastamento", dos sucessivos decretos editados por Bolsonaro para disseminar a posse de armas de fogo no Brasil, entre os quais se encontra o Decreto nº 9.845/2019, que continua em plena vigência. Em seu artigo artigo 3º, inciso I e §1º, o decreto estabelece que se presumem verdadeiros os fatos e circunstâncias constantes da "declaração de efetiva necessidade", apresentada pelo interessado para obter autorização para adquirir arma de fogo. Confira-se:

"Artigo 3º — Para fins de aquisição de arma de fogo de uso permitido e de emissão do Certificado de Registro de Arma de Fogo, o interessado deverá:
I – apresentar declaração de efetiva necessidade; (…)

§ 1º Presume-se a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva necessidade a que se refere o inciso I do caput".

Os dados oficiais da Polícia Federal indicam que, recentemente, vem ocorrendo significativo aumento das vendas de armas de fogo no país. Em 2020, foram registradas 179.771 novas armas, o que significa um aumento de 91% em relação ao ano anterior [1]. A progressiva flexibilização das regras para a posse e o porte de armas de fogo, ocorrida desde o início de 2019, é responsável por esse amplo incremento das vendas desses artefatos [2]. Outro fator que se destaca é o aumento dos registros relacionados à categoria "cidadãos": cerca de 70% dos registros foi feita por cidadãos comuns.

Verifica-se, portanto, que as alterações ocorridas por ocasião da edição do Decreto nº 9.845/2019, e de seus congêneres, vem produzindo graves efeitos no volume de vendas e registros de armas no Brasil, nada obstante o contexto de quarentena e pandemia, que freou o ímpeto bolsonarista de fomentar o armamento da população brasileira. Em razão das gravíssimas implicações do decreto em questão, é imprescindível o julgamento da ADI n° 6119 pela Suprema Corte, o que será um freio decisivo no intento bolsonarista de armar a sociedade brasileira.

Examinadas à luz das pesquisas realizadas na área da segurança pública, as iniciativas do presidente da República em armar a população se mostram dramaticamente inconsequentes. As pesquisas ressaltam, em especial, que a adoção da Lei do Desarmamento, no final de 2003, freou a escalada das taxas de homicídios praticados por meio de arma de fogo no Brasil. Os dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e constam do "Atlas da Violência 2016". Entre 1980 e 2014, cerca de um milhão de pessoas morreram em decorrência de disparos de arma de fogo. Entre 1980 e 2003, o número de homicídios com emprego de arma de fogo cresceu 6,2% ao ano (já descontado o crescimento da população). A partir de 2004, após a aprovação do estatuto de desarmamento, num primeiro momento, o número de homicídios caiu, para voltar a subir em 2008, só que em ritmo bem inferior ao que tinha lugar anteriormente. Entre 2004 e 2014, o crescimento médio da taxa de homicídios foi de 0,3% ao ano (já descontado o crescimento populacional).

Em pesquisa realizada no âmbito da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, aferiu-se o impacto do desarmamento da população, decorrente da apreensão de armas pela polícia. No período compreendido entre janeiro de 2009 e agosto de 2012, foram correlacionados o total de armas apreendidas pela Polícia Militar na Região Metropolitana de São Paulo com o total de homicídios dolosos ocorridos (consumados e tentados). A pesquisa sustenta conclusão impressionante: a apreensão de cem armas, retiradas da posse de criminosos, tende a evitar que 23 homicídios sejam praticados [3].

Ainda que a arma seja adquirida por pessoa honesta e pacífica e seja regularmente registrada, é muito frequente que seja roubada ou furtada e utilizada na prática de crimes. Criminosos não compram armas em lojas: adquirem armas roubadas ou contrabandeadas. Em pesquisa realizada no Estado do Rio de Janeiro, constatou-se que do total de armas apreendidas entre 2003 e 2014, 39,1% eram fabricadas pela empresa nacional Taurus, e 13,1%, pela também nacional Rossi. Em seguida, estão a Smith & Wesson, americana, com 2,4%, e a Glock, austríaca, com 2,1%. Os outros 30% incluem diversos fabricantes estrangeiros e nacionais [4]. Armas produzidas no Brasil, em grande parte, abastecem o mercado ilegal [5].

Em pesquisa realizada considerando as armas apreendidas com criminosos, que constavam da base de dados do programa Delegacia Legal, também no Rio de Janeiro, constatou-se que 33% tinham origem no "estoque legal": "São as armas apreendidas em situação criminal que possuem registro legal". Já 39% tinham origem no "estoque informal": "São as armas apreendidas em situação criminal que pertenciam originalmente a cidadãos ordeiros, mas que não possuíam registro legal". Por fim, apenas 28% tinham origem em contrabando [6]. Em pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz, em 2014 e 2015, foram rastreadas cerca de 4,2 mil armas de fogo apreendidas pela polícia em 2011 e 2012, depois de terem sido empregadas em roubos e homicídios na cidade de São Paulo. Aproximadamente 38% tinham sido vendidas legalmente e depois desviadas para criminosos [7]. A aquisição lícita de armas de fogo abastece o mercado ilícito e acaba sendo empregada na prática de homicídios por criminosos.

A disponibilidade de armas aumenta a letalidade da violência que ocorre no ambiente doméstico. Armas dos pais, com frequência, causam acidentes fatais, muitos dos quais envolvem crianças. Pesquisa conduzida nos EUA demonstra que pessoas que tem armas em casa tem duas vezes mais chances de sofrer homicídio e 16 vezes mais chances de cometer suicídio [8]. Quando se reage, com arma de fogo, a um roubo realizado com arma de fogo, a chance de a vítima morrer é 180 vezes maior [9].

Em 50% dos massacres realizados em escolas brasileiras, o atirador não foi ao mercado ilegal adquirir a arma: já a dispunha [10]. Especificamente no que toca aos eventos, cada vez mais frequentes, de massacres em escolas e igrejas, perpetrados por atiradores, os dados relativos aos EUA são reveladores da relação direta entre a letalidade e a disponibilidade de armas de fogo. Em 75% dos casos, as armas empregadas foram adquiridas legalmente [11].

De acordo com dados de 2016, em números absolutos, o Brasil já é o líder mundial de mortes por armas de fogo, apesar de adotarmos política de controle, ainda que moderada. De acordo com dados divulgados pela American Medical Association [12], em 2016 morreram no Brasil 43,2 mil mil pessoas por armas de fogo. O país é seguido por Estados Unidos (37,2 mil), Índia (26,5 mil), México (15,4 mil), Colômbia (13,3 mil), Venezuela (12,8 mil), Filipinas (8,02 mil), Guatemala (5,09 mil), Rússia (4,38 mil) e Afeganistão (4,05 mil). No Brasil morrem, por dia, 116 pessoas vítimas de armas de fogo.           

Tendo em vista dados como esses, produzidos por entidades de pesquisa dedicadas a subsidiar as políticas públicas, o legislador, ao editar o artigo 4º, caput, da Lei n° 10.826/2003, estabeleceu o requisito da "efetiva necessidade". O legislador decidiu restringir a posse de armas de fogo com o propósito de conter a escalada de letalidade que se verificava nas cidades brasileiras, permitindo-a apenas a quem comprovasse "efetiva necessidade". A regra legal é a vedação à posse.

Não é possível, agora, se adotar interpretação do artigo 4º, caput, da Lei n° 10.826/2003, que produza justamente o resultado oposto ao perseguido pelo legislador. O Decreto nº 9.845/2019, de fato, incorre em grave inconstitucionalidade, ao estabelecer a presunção de veracidade da declaração, realizada pelo interessado, de que possui efetiva necessidade. O interessado em obter o registro de arma de fogo deve comprovar, perante a Polícia Federal, que preenche o requisito.

A proporcionalidade veda que os bens jurídicos constitucionalmente tutelados sejam objeto de proteção insuficiente. O legislador e o administrador têm o dever de adotar medidas protetivas dos direitos fundamentais [13]. Ao Poder Judiciário cabe declarar inconstitucional determinada interpretação de norma legal por não proteger suficientemente direitos positivados na Constituição. Se determinada conduta ou prática social põe em risco bens positivamente valorados pela Constituição, a legiferação, a administração e a jurisdição devem proibi-la, limitá-la ou regulá-la.

Em muitas de suas manifestações públicas, Bolsonaro evidencia que o seu intento de armar a população também serve a propósitos políticos. Em 26 de junho de 2015, Bolsonaro afirmava que "o cidadão armado é a primeira linha de defesa de um país" [14]. Já no governo, em 15 de junho de 2019, voltou a afirmá-lo: "Além das Forças Armadas, defendo o armamento individual para o nosso povo, para que tentações não passem na cabeça de governantes para assumir o poder de forma absoluta. Temos exemplo na América Latina. Não queremos repeti-los" [15]. Os sucessivos atos normativos editados por Bolsonaro para generalizar a posse e o porte de armas de fogo, dentre os quais se encontra o Decreto nº 9.845/2019, incorrem em ostensivo desvio de finalidade.

Bolsonaro pretende armar os "domiciliados em imóvel rural", "cuja posse seja justa" [16], ao passo que sustenta que os sem-terra são terroristas. Legitima, com isso, a formação de milícias privadas no campo. Nas cidades, com o advento do bolsonarismo, os clubes de tiro, caça e coleção de armas (CACs) se multiplicaram de modo exponencial. Sucessivos decretos para privilegiá-los confirmam a pertinência da preocupação de que os CACs se tornem embriões de milícias urbanas, postas a serviço da violência política. O receio decorre do juízo positivo que Bolsonaro sempre fez a respeito de milícias privadas, como os "esquadrões da morte[17].

Na distopia bolsonarista, o monopólio do uso legítimo da força, característica fundamental do Estado moderno, é substituído por uma sociedade armada. No campo, em especial, o impacto da política de armamento generalizado tende a ser devastador [18]. Ao propugnar pelo armamento generalizado da população, o bolsonarismo está em total contradição não só com a Constituição Federal de 1988 [19], mas também com nosso pacto pré-constitucional, que transcende a nossas constituições históricas [20]. Desde o contratualismo dos séculos 7 e 18, preservar a segurança é função primordial do Estado, a qual, no limite, justifica a sua própria instituição.

No horizonte do bolsonarismo, vigora a perspectiva da guerra civil.

 


[2] Os dados divulgados pela Polícia Federal podem ser verificados no seguinte website: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-07/aumenta-venda-de-armas-de-fogo-no-pais.

[3]. Nessa pesquisa, o enfoque recaiu sobre as armas apreendidas, não sobre as armas entregues voluntariamente, como as que foram recolhidas durante a campanha de desarmamento que se seguiu à aprovação do Estatuto. Evidentemente, o impacto é muito superior. (Felix SA. Armas versus vidas: análise de regressão sobre o impacto da apreensão de armas nos homicídios. Revista do Laboratório de Estudos da Violência da UNESP 2013; 11:119-129).

[4] De onde vêm as armas do crime apreendidas no Sudeste? Análise do perfil das armas de fogo apreendidas em 2014. Instituto Sou da Paz, 2016. http://soudapaz.org/upload/pdf/pesquisa_an_lise_de_armas_do_sudeste_online.pdf.

[5] Pablo Dreyfus, Marcelo Nascimento e Patrícia Rivero, ISER/Viva Rio, com dados da DFAE, julho, 2003

[6] Fontes de Abastecimento do Mercado Criminal de Armas. Programa Delegacia Legal, Set. 2005. https://docplayer.com.br/4934206-Fontes-de-abastecimento-do-mercado-criminal-de-armas.html.

[7] “DNA das Armas”, Instituto Sou da Paz e Ministério Público do Estado de São Paulo, Divulgação parcial dos resultados de pesquisa em andamento, 02 de março de 2015. Disponível em: http://migre.me/qWo8T.

[8] WIEBE, Douglas J.. Firearms in US homes as a risk factor for unintentional gunshot fatality. Accident Analysis & Prevention, Vol. 35, n° 5, Set. 2003.

[9] CANO, Ignácio. Pesquisa sobre Vitimização nos Roubos. Rio de Janeiro: ISER, 1999.

[11] LEMIEUX, Frederic. Effect of Gun Culture and Firearm Laws on Gun Violence and Mass Shootings in the United States: A Multi-Level Quantitative Analysis. International Journal of Criminal Justice Sciences, Vol. 9, Issue 1, January – June, 2014.

[13] MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017, p.226.

[14] O Tempo, 26 jun. 2015.

[15] Folha de São Paulo, 15 jun. 2019.

[16] De acordo com o Decreto n°º 9.797/2019, agora já revogado, devia se considerar cumprido o requisito da necessidade, previsto no inciso I do § 1.º do artigo 10 da Lei n.º 10.826, de 2003, quando o requerente fosse “colecionador ou caçador” ou quando fosse “domiciliado em imóvel rural” (artigo 20, § 4.º, I e II). O “imóvel rural” era definido como “aquele que se destina ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial, nos termos do disposto na Lei n.º 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, cuja posse seja justa, nos termos do disposto no artigo 1.200 da Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 Código Civil.”

[17] Em 2003, por exemplo, Bolsonaro fez, no Plenário da Câmara de Deputados, apologia aos que estavam em atuação na Bahia: Quero dizer aos companheiros da Bahia  há pouco ouvi um parlamentar criticar os grupos de extermínio que enquanto o Estado não tiver coragem de adotar a pena de morte, o crime de extermínio, no meu entender, será muito bem-vindo. Se não houver espaço para ele na Bahia, pode ir para o Rio de Janeiro. Se depender de mim, terão todo o meu apoio, porque no meu estado só as pessoas inocentes são dizimadas. Na Bahia, pelas informações que tenho lógico que são grupos ilegais , a marginalidade tem decrescido. Meus parabéns! (Congresso em Foco, 13 out. 2018).

[18] Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra – CPT –, 71 pessoas foram assassinadas no campo em 2017 em razão de envolvimento em conflitos pela posse da terra. Em todo o mundo, no mesmo ano, foram assassinados 197 defensores de direitos humanos. O Brasil liderou o ranking: daqueles, 46 morreram no país. Em diatribe de 15 de novembro de 2017, Bolsonaro não deixava espaço para dúvidas: “No que depender de mim, o agricultor, o homem do campo, vai apresentar como cartão de visita para o MST um cartucho (de) 762”. E concluía: “Àqueles que me questionam se eu quero que mate esses vagabundos, quero, sim. A propriedade privada numa democracia é sagrada. Invadiu, pau nele”. Em setembro de 2018, Bolsonaro retomava a hostilidade: “Toda ação do MST e do MTST devem ser tipificadas como terrorismo. A propriedade privada é sagrada”.

[19] O Estado tem o dever de proteger os direitos à vida (artigo 5.º da Constituição Federal) e à segurança pública (artigos 5.º e 144 da Constituição Federal). O artigo 5.º da Constituição Federal, em seu caput, classifica a segurança como direito fundamental. De acordo com o caput do artigo 144, a segurança pública é “dever do Estado” e “direito de todos”.

[20] Na fórmula clássica de Hobbes, para sair do estado de natureza – concebido como um estado de guerra de todos contra todos –, os indivíduos renunciam à liberdade natural, celebrando um contrato social, por meio do qual concedem ao Estado o monopólio do uso legítimo da força. (Hobbes, T., 1974).

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