Opinião

A dupla nacionalidade e o risco surreal de virar estrangeiro no Brasil

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9 de março de 2021, 17h33

O fechamento de fronteiras e as restrições às viagens internacionais reduziram drasticamente a liberdade de circulação de pessoas durante a pandemia global da Covid-19. A aquisição de outra nacionalidade, com a consequente obtenção de um segundo passaporte, tornou-se possibilidade considerada por quem deseja expandir a sua mobilidade global e garantir a reunião familiar no exterior. Atualmente, contudo, é imperioso proceder com cautela, para que o sonho da dupla nacionalidade não se transforme no pesadelo de virar estrangeiro no Brasil.

Quando a aquisição da outra nacionalidade ocorre de forma originária, a acumulação é autorizada, sem controvérsias. Há insegurança jurídica, entretanto, quando o nacional brasileiro adquire voluntariamente nacionalidade de forma derivada, em razão de casamento com pessoa estrangeira, residência no exterior, investimentos em determinado país, entre outras hipóteses legalmente previstas. Poderá ser instaurado, de ofício, procedimento administrativo de perda de nacionalidade, no âmbito do Ministério da Justiça. O interessado será instado a demonstrar que a aquisição da nova nacionalidade foi imposta pelo Estado estrangeiro como condição para permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis. Se não lograr êxito, uma vez publicada a portaria declaratória da perda de nacionalidade, será considerado estrangeiro no Brasil, com efeitos retroativos à data de sua naturalização.

Há cerca de três anos, informações divulgadas no site do Ministério de Relações Exteriores descartavam, categoricamente, qualquer espécie de perda automática de nacionalidade. A orientação consular estabelecia que seria instaurado processo administrativo para esse fim quando o cidadão brasileiro manifestasse, de forma inequívoca e por escrito, vontade de abrir mão da nacionalidade originária. Na mesma toada, o posicionamento interno do MJ era no sentido da imprescindibilidade de manifestação explícita.

O ponto de inflexão foi o "caso Claudia Sobral", brasileira nata que obteve a cidadania norte-americana em 1999 e refugiou-se no Brasil, logo após o homicídio qualificado de seu marido, Karl Hoerig, nos EUA. O encaminhamento do pedido de extradição de Claudia foi inicialmente denegado pelo governo brasileiro, em razão da vedação constitucional expressa à extradição de brasileiros natos, cláusula pétrea que não comporta exceção e não está sujeita a processo de alteração, nem mesmo por emenda constitucional. O Itamaraty ofereceu cooperação jurídica internacional através da persecução penal da acusada no Brasil.

A chancelaria estadunidense apresentou pedido de reconsideração e no curso de vários anos, se reuniu com autoridades brasileiras de alto escalão, de vários setores governamentais, para discutir a possibilidade de releitura do texto constitucional. A solução encontrada para contornar o privilégio constitucional conferido ao brasileiro nato foi desnacionalizá-lo, com efeitos retroativos à data de sua naturalização no exterior, e assim abrir caminho para a sua extradição. Documentos comprobatórios da aquisição de nacionalidade norte-americana pela acusada foram encaminhados ao MJ, onde foi aberto procedimento administrativo de perda de nacionalidade brasileira.

Foram anexados aos autos virtuais do procedimento em desfavor de Claudia Sobral no MJ, disponíveis na internet [1], e-mails enviados à presidente Dilma Rousseff em favor da extradição, expedientes internos de tratativas da missão diplomática brasileira em Washington e atualizações sobre providencias adotadas no âmbito do Congresso dos EUA pelo deputado federal Tim Ryan, com objetivo de forçar o Brasil mudar a sua legislação para permitir a extradição de Claudia.

Em 22 maio de 2013, Tim Ryan conseguiu aprovar, no Comitê de Finanças da Câmara dos Representantes dos EUA, emenda impeditiva de emissão de visto de residência permanente para cidadãos brasileiros, até que o Brasil modificasse a regra constitucional que veda a extradição de brasileiros natos [2]. Informações prestadas pelo chefe da Divisão de Cooperação Jurídica Internacional ao diretor do Departamento de Estrangeiros do MJ [3] revelam que a referida emenda foi aprovada por meio de voice vote: o presidente da sessão perguntou quem estava a favor e quem estava contra, e pelo volume das respostas "sim" ou "não" determinou o resultado. Não houve voto nominal, nem debate substantivo da proposição. "A emenda foi submetida ao final da sessão, sem conhecimento prévio dos demais membros, beneficiando-se do fator surpresa para ser aprovada. O Presidente da sessão chegou a expressar dúvida sobre suas implicações, mas isso não foi suficiente para evitar a aprovação".

O projeto de lei em apreço estava programado para ser submetido ao plenário da Câmara em junho de 2013, e, se aprovado pelas duas casas do Congresso norte-americano, comprometeria gravemente o relacionamento entre os dois países. A ameaça de punição coletiva e indiscriminada dos brasileiros interessados em imigrar para os EUA causou impasse diplomático espinhoso. Poucas semanas depois, portaria do ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo [4], declarou a perda da nacionalidade brasileira de Claudia, o que pavimentou a via de sua extradição.

O Superior Tribunal de Justiça concedeu medida de urgência para suspender, provisoriamente, a eficácia da aludida portaria. O Ministério Público Federal opinou que o caso se enquadrava nas exceções constitucionalmente previstas para a aquisição de outra nacionalidade, sem perda da originária, e acrescentou que na impossibilidade de manutenção da dupla nacionalidade, seria necessário oportunizar ao cidadão brasileiro optar por uma das duas; jamais declarar a perda da nacionalidade brasileira pelo simples fato de a estrangeira ter sido adquirida posteriormente [5]. O processo foi remetido ao Supremo Tribunal Federal, cuja competência foi reconhecida em razão da controvérsia envolver matéria extradicional e a portaria ministerial impugnada ter sido exarada por delegação da presidente da República.

Em 2017, a 1ª Turma do STF, por maioria apertada de três votos a dois, referendou a aludida portaria ministerial, no julgamento do leading case [6] que autorizou, pela primeira vez na história, a desnacionalização de brasileira nata para fins extradicionais. A tese vencedora conferiu interpretação ultra restritiva à expressão "exercício de direitos civis", constante do artigo 12, §4º, II, "b", do texto constitucional, reduzida ao direito de permanência e de trabalho legal no exterior. Determinou-se, em apertada síntese, que a interessada perdera automaticamente a condição de brasileira nata em razão do procedimento de naturalização nos EUA incluir compromisso de "renunciar à fidelidade a qualquer Estado ou soberania". O juramento à bandeira de outro país equivaleria a uma declaração implícita de renúncia à nacionalidade brasileira. No caso concreto, a naturalização para o exercício, sem quaisquer restrições, do ofício de contadora, foi considerada desnecessária, em razão da interessada ser detentora de visto de residência, o que lhe assegurava direito de moradia e trabalho legal nos EUA.

Impende ressaltar que o pano de fundo do leading case foi a questão, de caráter ético-jurídico, de não se compactuar com práticas delituosas supostamente cometidas por brasileiros foragidos da Justiça norte-americana. Não houve, contudo, ponderação sobre a repercussão jurídica que o novo entendimento teria na vida de milhares de brasileiros que não praticaram ilícitos no exterior, adotaram voluntariamente outra nacionalidade sem intenção de renunciar à brasileira e passaram a não saber mais, de forma clara, se perderam ou não o seu vínculo jurídico-político com o Brasil.

De acordo com o STF, a perda da nacionalidade de quem adquiriu voluntariamente outra não decorre da portaria declaratória, mas, sim, da naturalização que a antecedeu. Os efeitos retroativos do cancelamento da nacionalidade geram uma série de situações problemáticas consolidadas pelo tempo e pendentes de solução que são merecedoras da proteção dos princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da confiança legítima.

Se for cancelada a nacionalidade brasileira de um agente público, como, por exemplo, um parlamentar, um juiz ou membro do Ministério Público, deverá o interessado ser imediatamente exonerado de suas funções ou lhe será oportunizada a possibilidade de suprir o vício na investidura mediante reaquisição de nacionalidade? Os atos praticados após a naturalização serão nulos, por se tratar de pessoa estrangeira?

Como proceder na hipótese de indivíduos que adquiriram voluntariamente outra nacionalidade e atualmente exercem cargos privativos de brasileiros natos, como os da carreira diplomática, de oficial das Forças Armadas, entre outros elencados no artigo 12, §3º, do texto constitucional? Eventual reaquisição de nacionalidade lhes devolverá o status original de brasileiro nato ou serão reputados naturalizados e, consequentemente, impedidos de permanecer nos cargos que ocupam?

Como ficará o caso de atletas brasileiros como, por exemplo, jogadores de futebol, que fazem juramento à bandeira de outro país e adotam outra nacionalidade para obter benefícios no exterior? Se forem desnacionalizados com efeitos retroativos, as competições internacionais em que representaram o Brasil após a naturalização devem ser consideradas irregulares, por se tratar, tecnicamente, de atletas estrangeiros?

Deve ser pontuado que a verificação de perda de nacionalidade, no âmbito do MJ, também se afigura problemática, pois não está livre de arbitrariedades e viés político. Inexiste conduta oficial proativa de coleta permanente de informações pelo MJ sobre naturalizações no exterior, junto a embaixadas e consulados, de forma transparente e sistematizada. O procedimento administrativo não está sujeito a prazo decadencial e tramita no Sistema Eletrônico de Informações, que não possui, em sua configuração, funcionalidade para extração de dados pormenorizados e específicos. Não há, portanto, jurisprudência administrativa a ser consultada, nem clareza nos critérios discricionários utilizados para interpretar a subjetividade da previsão constitucional em cada caso concreto.

O processo administrativo tem publicidade restrita e é instaurado mediante representação fundamentada ou de ofício, quando a Administração afirma que se deparou, acidentalmente, com nacional brasileiro que adquiriu voluntariamente outra nacionalidade. O tratamento dispensado aos brasileiros naturalizados é seletivo e desigual. Apenas uma pequena fração dentro de um universo de dezenas de milhares de naturalizados no exterior é intimada, de forma casuística, a apresentar defesa administrativa, sob pena de ter a sua nacionalidade brasileira cancelada de ofício.

Para acalmar os brasileiros que correm o risco surreal de virar estrangeiros no Brasil contra a sua vontade, o senador Antônio Anastasia apresentou projeto de emenda constitucional (PEC 6/2018) que altera a normativa constitucional sobre a perda da nacionalidade originária brasileira, restringindo-a a duas possibilidades: pedido expresso do nacional brasileiro ou cancelamento de naturalização por decisão judicial. A denominada "PEC da nacionalidade" está pronta para deliberação em primeiro turno do plenário do Senado Federal, desde outubro de 2019.

Em 2020, a maioria da 2ª Turma do STF aderiu à tese do leading case Claudia Sobral [7] ao julgar o caso de Carlos Wanzeler, brasileiro acusado criminalmente, no Brasil e nos EUA, por envolvimento em esquema de pirâmide financeira bilionária, por meio da empresa Telexfree. Wanzeler alegou que se naturalizou norte-americano em 2009 [8] para obter o visto de residência permanente de sua filha nos EUA, onde residia com o restante da família. A justificativa foi rejeitada, Wanzeler foi desnacionalizado e perdeu o status de brasileiro nato, o que possibilitou o encaminhamento de seu pedido de extradição, cujo curso foi suspenso até decisão final na AR 2.800/DF.

No julgamento da ação rescisória, o STF terá a oportunidade de reexaminar a controvérsia jurídica com o calibrado senso de justiça de sua composição plena, que detém o monopólio da última palavra em matéria constitucional. O tema ainda não foi debatido pelo colegiado fora do contexto extradicional com profundidade, pela ótica dos princípios fundamentais da soberania nacional e da prevalência dos direitos humanos.

O Brasil é livre e soberano para determinar quem são os seus nacionais, sem submissão ao que dispõe a legislação estrangeira. A Constituição da República constitui a única fonte normativa das hipóteses legais de aquisição e perda da nacionalidade brasileira. Juramento de fidelidade realizado pelo cerimonial de solenidade de naturalização no exterior é uma mera formalidade, desprovida de eficácia jurídica para desconstituir o vínculo político-jurídico de um nacional em face do Estado brasileiro.

Não se pode perder de perspectiva que o direito à nacionalidade é direito fundamental de primeira geração, reconhecido no artigo 15 da Declaração Universal de Direitos do Homem e no artigo 20 da Convenção Americana de Direitos Humanos, e deve ser protegido ao máximo. Diante de várias leituras possíveis das exceções previstas no texto constitucional para acumulação da nacionalidade brasileira com outra, primazia deve ser atribuída à interpretação que se revelar mais ampla, extensiva e favorável à dignidade da pessoa humana. Nessa ordem de ideias, impende considerar que se o brasileiro adotou voluntariamente outra nacionalidade para exercer quaisquer direitos civis não usufruídos em sua plenitude por estrangeiros, a naturalização deve ser reputada uma imposição, ainda que tácita, pela norma estrangeira.

 


[1] MS 33.864/DF, site stf.jus.br.

[3] Oficio n. 111 DCJI/DAC/AIG/DEUC/JUST BRAS EUA, 27/05/2013, disponível nos autos virtuais do MS 33.864/DF.

[4] Portaria MJ n. 2.465, de 03/07/2013, publicada no DOU de 04/07/2013.

[5] MANDADO DE SEGURANÇA N.º 20.439/DF – PRIMEIRA SEÇÃO.

[6] MS 33.864/DF e PPE 694.

[7] MS 36.359/DF.

[8] Portaria 90, de 14/02/2018, MJ 08018.006758/2017-21.

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