Paradoxo da corte

Interpretação do STJ de cláusula penal no contrato de honorários

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

9 de março de 2021, 8h02

É direito do advogado, pelo serviço profissional contratado, receber honorários contratuais e honorários de sucumbência. Dispõe, com efeito, o artigo 22 do Estatuto da Advocacia: "A prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários convencionados, aos fixados por arbitramento judicial e aos de sucumbência".

Em relação aos honorários contratuais, não há regras legais pré-estabelecidas de ajuste entre cliente-advogado. A praxe revela que, normalmente, o constituinte obriga-se ao pagamento de um determinado valor de pro labore, acrescido de uma verba de sucesso. Com alguma frequência, a avença com o cliente também prevê o pagamento de parcelas condicionadas à ocorrência de eventos processuais, como, por exemplo, honorários para a fase recursal.

O importante é que o contrato oneroso, bilateral e comutativo seja celebrado contendo cláusulas revestidas de princípios éticos e, ainda, que as respectivas prestações guardem razoabilidade para ambas as partes.

A respeito dessa questão, já tive oportunidade de ressaltar nesta coluna, em vários artigos, que, de um modo geral, os nossos tribunais, em particular o Superior Tribunal de Justiça, reconhecem o direito de o advogado receber a integralidade de seus honorários, contratados e de sucumbência, quando, sem razão justificada, o cliente celebra acordo com a parte contrária, mesmo mantendo hígida a procuração que outorgara ao seu patrono.

Não é preciso salientar, ademais, que tanto o cliente pode destituir o advogado que contratou, quanto este pode renunciar aos poderes que lhe foram outorgados. Nesses casos, o acerto sobre a responsabilidade pelo pagamento dos honorários contratados, ou mesmo pela devolução de parcela do montante que o causídico já recebeu pela prestação do serviço, irá depender das circunstâncias que motivaram a atitude do cliente ou do advogado.

O que não se pode conceber, por certo, como ocorre em toda relação sinalagmática, é que uma parte se locuplete em prejuízo do outro contratante.

A esse respeito, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça teve de enfrentar interessante questão acerca da eficácia da inserção de cláusula penal no contrato de honorários, em benefício do advogado e em detrimento do direito do cliente que lhe havia contratado.

O caso se resumia na seguinte situação: o cliente revogou os poderes de seu patrono, no curso do processo, sem apresentar qualquer justificativa.

O advogado então ajuizou em face de seu ex-constituinte ação de execução, aparelhando-a com o contrato, que continha previsão de vencimento antecipado do valor integral dos honorários na hipótese de revogação unilateral do mandato pelo cliente.

Regularmente citado, o executado opôs embargos à execução, alegando, entre outras matérias, a inexigibilidade do título extrajudicial, uma vez que o respectivo serviço profissional não tinha sido integralmente realizado.

O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, negando provimento à apelação, prestigiou a sentença de primeiro grau, que reconhecera, com fundamento no supra transcrito artigo 22 da Lei n° 8.906/94, a improcedência do pedido deduzido pelo embargante, visto que o indigitado contrato trazia disposição expressa da exigibilidade do pagamento do valor integral dos honorários na hipótese de revogação antecipada, caracterizando-se como título líquido, certo e exigível.

Irresignado com o desfecho dos embargos, o cliente-executado interpôs recurso especial, alegando violação à função social dos contratos, ausência de certeza, liquidez e exigibilidade do título extrajudicial e, ainda, afronta ao princípio da confiança, que deve nortear a relação cliente-advogado, em decorrência da aludida cláusula abusiva, a qual, a rigor, acaba vinculando os contratantes de forma permanente.

Admitido o seu trânsito na origem, o Recurso Especial n° 1.882.117/MS foi então distribuído à relatoria da ministra Nancy Andrighi.

O voto condutor, secundado à unanimidade pelos demais ministros integrantes da 3ª Turma, ao prover o recurso especial, parte da premissa de que o artigo 16 do Código de Disciplina e Ética da OAB — em relação ao advogado — contempla a possibilidade de renúncia a patrocínio sem a necessidade de declinar os motivos, sendo o mesmo raciocínio aplicável em caso de revogação unilateral do mandato por parte do cliente (artigo 17), aduzindo, com precisa fundamentação, que:

"(…) A cláusula penal representa uma obrigação acessória ao contrato na qual se estipula — previamente — determinada pena ou multa dirigida a impedir o inadimplemento da obrigação principal ou eventual retardamento em seu cumprimento. Possui dupla função, sendo meio de coerção, de modo a obrigar o contratante ao cumprimento da obrigação, bem como sendo instrumento de prefixação de perdas e danos decorrentes do eventual inadimplemento.
Malgrado a cláusula penal ser oriunda de convenção entre as partes, a própria legislação prevê normas protetivas quanto a eventuais excessos.
Consoante o artigo 412 do CC/02, não é possível que a penalidade exceda o valor da obrigação principal. Por sua vez, o artigo 413 do CC/02 prevê a redução da penalidade de forma equitativa pelo juiz se a obrigação tiver sido cumprida em parte, bem como se o valor da penalidade for manifestamente excessivo.
Ao se levar em conta que a advocacia não é atividade mercantil e não vislumbra exclusivamente o lucro, bem como que a relação entre advogado e cliente é pautada na confiança de cunho recíproco, não é razoável — caso ocorra a ruptura do negócio jurídico por meio renúncia ou revogação unilateral do mandato — que as partes fiquem vinculadas ao que fora pactuado sob a ameaça de cominação de penalidade.
Dessa forma, a revogação unilateral, pelo cliente, do mandato outorgado ao advogado é causa lícita de rescisão do contrato de prestação de serviços advocatícios, não ensejando o pagamento de multa prevista em cláusula penal (AgInt no REsp 1.803.346/MT, 4ª Turma, DJe 11/09/2019; AgInt no AREsp 1.353.898/SP, 4ª Turma, DJe 12/03/2020). A mesma lógica pode e deve ser aplicada também quando ocorrer o inverso, na hipótese de renúncia do mandato pelo causídico.
Imperioso salientar que cláusula penal existirá nos contratos de prestação de serviços advocatícios, contudo adstrita às situações de mora e/ou inadimplemento, desde que respeitada a razoabilidade, sob pena de interferência judicial (REsp 1.376.171/PR, 4ª Turma, DJe 07/11/2016). Ademais, ocorrendo a revogação do mandato por parte do cliente, esse estará obrigado a pagar ao advogado a verba honorária de modo proporcional aos serviços então prestados (AgRg no REsp 886.504/MG, 3ª Turma, DJe 19/04/2011; AgRg no AREsp 118.143/PA, 4ª Turma, DJe 03/09/2012).
Na hipótese dos autos, o acórdão prolatado pelo TJ/MS reconheceu a viabilidade da presente execução, lastreada em contrato de prestação de serviços advocatícios (por força do artigo 24 da Lei 8.906/94), tendo em vista a presença dos requisitos da certeza, da liquidez e da exigibilidade, previstos no artigo 783 do CPC/15.
O acórdão recorrido versou que, em razão do teor da cláusula contratual referente ao preço, é manifestamente devido ao advogado o valor integral estabelecido a título de honorários, na hipótese de revogação do mandato unilateralmente pela recorrente, na condição de cliente, e sem culpa do advogado.
Sem razão o Tribunal de origem, pois, ao decidir pela validade da cobrança integral dos honorários advocatícios contratados, acabou por referendar a aplicação de uma cláusula penal na situação de exercício de um direito potestativo — o qual não admite contestação, sendo prerrogativa jurídica de impor a outrem a sujeição ao seu exercício — por parte da recorrente/cliente, materializado na revogação unilateral do mandato.
A incidência da penalidade constante na referida cláusula contratual criou a situação, inusitada e antijurídica, de vinculação da recorrente/cliente de maneira permanente a uma relação contratual — nos termos do que fora descrito anteriormente — regida pela confiança recíproca, ausente de natureza mercantil e que não vislumbra exclusivamente o lucro. Dessa forma, o acórdão recorrido merece reforma.
A título de esclarecimento, urge salientar que a hipótese em comento é ainda mais gravosa do que a decidida no REsp 1.376.171/PR (4ª Turma, DJe 07/11/2016), o qual fixou a tese de que que não se mostra possível a estipulação de multa para as hipóteses de renúncia ou revogação unilateral do mandato. Se a referida tese, no âmbito do julgado citado, foi aplicada para reconhecer impossibilidade de incidência de multa contratual no importe de R$ 20 mil (sendo — apenas — parte do valor do contrato) ante a revogação unilateral do mandato pelo cliente, com muito mais razão deve servir de embasamento para rechaçar a cláusula que prevê o vencimento antecipado da avença em montante vultoso (R$ 1.026.534,75), como é a questão em tela.
Nota-se, nessa senda, que o título de crédito objeto destes autos não detém força executiva, de modo a não preencher todos os requisitos constantes no artigo 783 do CPC/15, pois se fundamenta em um contrato com cláusula contratual inexigível que acarreta — via de consequência — a iliquidez do crédito cobrado"
.

Diante de tais fundamentos, o recurso especial foi provido, "para julgar procedentes os embargos à execução, de forma a declarar extinta a execução objeto destes autos, sem prejuízo do ajuizamento de eventual ação de conhecimento para arbitramento de honorários".

Cumpre-me observar que, pelas suas peculiaridades, este é um caso que realmente convida à reflexão.

A despeito da contundente e lúcida motivação expendida pela ministra Nancy Andrighi, entendo que o acórdão em tela não se prestará a formar um precedente na acepção que lhe empresta o artigo 927 do vigente Código de Processo Civil!

Na verdade, se o mencionado julgado for sufragado, de modo automático, como paradigma em subsequentes casos análogos, poderá haver extrema injustiça. Imaginemos, à guisa de exemplo, a seguinte situação: depois de o advogado estudar a questão que lhe foi submetida pelo cliente e desenvolver toda a tese construída na petição inicial ou mesmo em sede de contestação, o seu constituinte extrairia enorme vantagem se pudesse simplesmente revogar o mandato e se livrar das prestações vincendas, legitimamente contratadas, sem qualquer responsabilidade patrimonial, deixando tudo para ser apurado no âmbito de futura — custosa e demorada — ação de arbitramento de honorários, a ser aforada pelo advogado!

A vingar no futuro a tese sustentada no referido aresto, sem uma análise mais aprofundada do caso concreto a ser julgado, seria o mesmo que abonar o comportamento contraditório do contratante, imbuído de inarredável má-fé, prestigiando-se, com certeza, a proibição de non venire contra factum proprium!

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