Opinião

Impactos da LGPD na atividade executiva de pesquisa e investigação patrimonial

Autores

  • Rafael Guimarães

    é juiz do Trabalho coordenador do Programa SOS EXECUÇÃO no TRT da 2ª Região professor convidado em Escolas Judiciais e em cursos jurídicos especialista em Direito e Processo do Trabalho e coautor da obra Execução Trabalhista na Prática.

  • Richard Wilson Jamberg

    é juiz do Trabalho professor de Direito Processual do Trabalho na Unisuz e da pós-graduação da FMU professor convidado em Escolas Judiciais da ESA e em cursos jurídicos especialista em Direitos Sociais e em Direito Processual do Trabalho e coautor da obra Execução Trabalhista na Prática.

9 de março de 2021, 6h04

Com o advento da Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), passou-se a questionar, no âmbito da Justiça do Trabalho, se a LGPD, de algum modo, limitaria a atividade jurisdicional executiva voltada à pesquisa e investigação patrimonial na execução trabalhista, mormente através do uso das ferramentas eletrônicas de acesso restrito ao Poder Judiciário [1], tais como Infojud (obtenção dos dados fiscais, por exemplo DIRPF e DOI), Infoseg (fornece dados cadastrais constantes da base de dados da Receita Federal, v.g.), CCS (apresenta os relacionamentos financeiros de qualquer pessoa mantidos nas instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional) e Simba (permite a quebra do sigilo bancário, fornecendo relatórios detalhados de movimentação financeira).

A resposta está nos artigos 7º, VI e X, e 11, II, alínea "d", da LGPD, os quais permitem o tratamento de dados pessoais, inclusive os dados sensíveis [2], para o exercício regular de direitos em processo judicial, bem como para a proteção do crédito, na qual se inclui a recuperação judicial desse crédito, por força de interpretação teleológica [3] da norma.

Com efeito, ao permitir o tratamento de dados em processo judicial e na proteção do crédito (e por consequência na sua recuperação judicial), o legislador ordinário, em juízo ex ante de ponderação, tendo como referência, inclusive, os vetores do artigo 6º da LGPD da finalidade (realização do tratamento para propósitos legítimos, in casu, no interesse da Justiça) e necessidade (tratamento necessário para a realização de suas finalidades), optou por prestigiar os princípios constitucionais do amplo acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, da CF/88), que envolve a entrega da prestação jurisdicional de forma rápida e efetiva, incluída a atividade satisfativa, bem como da ampla defesa do direito tutelado (artigo 5º, LV, da CF/88), em detrimento dos direitos constitucionais à privacidade e à intimidade (artigo 5º, incisos X e XII, da CF/88) [4].

Ademais, as disposições da LGPD em destaque estão em plena consonância com o princípio da publicidade dos atos processuais (artigo 93, inciso IX, CF/88), que só pode ser mitigado quando, no caso concreto, a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

Portanto, os direitos à privacidade e à intimidade do cidadão não possuem caráter absoluto, de modo que não podem se sobrepor ao legítimo interesse do Estado-juiz em realizar o tratamento de dados pessoais, por meio do acesso de informações dos jurisdicionados com finalidade exclusiva do regular exercício da atividade jurisdicional, em especial do desenvolvimento da jurisdição executiva, implementada, dentre outros meios, através da investigação patrimonial e localização de bens do executado mediante utilização das ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial, as quais conferem amplo acesso a dados cadastrais, bancários, financeiros e fiscais.

Bem por isso que defendemos que flerta com a inconstitucionalidade qualquer interpretação da LGPD que leve ao tolhimento do juiz da execução de proceder ao tratamento de dados do executado na difícil tarefa de localização de bens capazes de garantir a execução e conferir efetividade ao título judicial exequendo, sob pena, outrossim, de provocar derrogação por via transversa da Lei Complementar nº 105/2001 (dispõe sobre o sigilo das operações de instituições financeiras) que, em seu artigo 1º, §4º e incisos, permite a quebra do sigilo quando necessária para apuração de ocorrência de qualquer ilícito e, entre outras, na hipótese de ocultação de bens, direitos e valores.

Não é novo o embate entre o direito à privacidade e à intimidade do cidadão, agora instrumentalizado pela LGPD, e a tutela do interesse público em geral, em especial do interesse da Justiça, encontrando-se a questão pacificada pelo STF, conforme exposto com maestria pelo ministro Celso de Mello, em seu voto proferido no julgamento do RE 389.808/PR, Tribunal Pleno, data de julgamento 15/12/2010:

"[…] O regime das liberdades públicas – ostenta, como precedentemente enfatizado, caráter meramente relativo. Não assume nem se reveste de natureza absoluta. Cede, por isso mesmo, e sempre em caráter excepcional, às exigências impostas pela preponderância axiológica e jurídico-social do interesse público, tal como acentuado, em diversos julgamentos, por esta Suprema Corte (AI 528.539/PR, Rel. Min. Cezar Peluso – AI 655.298-AgR/SP, Rel. Min. EROS GRAU, v.g.): […]
A tutela do valor pertinente ao sigilo bancário não significa qualquer restrição ao poder de investigar e /ou de fiscalizar do Estado, eis que o Ministério Público, as corporações policiais e os órgãos incumbidos da administração tributária e previdenciária do Poder Público sempre poderão requerer aos juízes e Tribunais que ordenem as instituições financeiras o fornecimento das informações reputadas essenciais à apuração dos fatos".

Em que pese a clareza normativa da LGPD, que se harmoniza com os demais valores e princípios constitucionais, bem como a LC 105/2001 e jurisprudência pacificada do STF, parcela da doutrina defende a restrição da atividade judicial na recuperação do crédito exequendo por meio das ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial, quando o devedor não possuir bens, conforme bem ilustra o seguinte excerto doutrinário [5]:

"[…] A fim de materializar o direito à efetividade da execução, o Poder Judiciário tem à sua disposição diversas ferramentas que lhe possibilitam o acesso a informações sobre patrimônio e relacionamento dos devedores, a fim de se encontrar bens passíveis de penhora.
[…] O simples acesso a tais dados, protegidos por sigilo bancário e fiscal, pode importar em invasão da vida privada e da intimidade do devedor.
[…] De outro lado, a utilização de tais convênios pode se mostrar desnecessária, quando, por exemplo, não forem utilizadas previamente outras medidas menos invasivas da intimidade e vida privada do devedor, como a tentativa de bloqueio de ativos financeiros nas contas bancárias do devedor.
De igual modo, a medida pode ser inadequada e não ter vocação para atingir a sua finalidade, quando se tratar, por exemplo, de devedor que sabidamente não possui patrimônio algum e sem renda capaz de pagar a dívida em execução.
Imagine-se, a título ilustrativo, o sócio de empresa falida, que deixou de ser empresário e vive de sua renda como empregado de outra empresa, com renda pouco superior a um salário-mínimo. É evidente que esse devedor não paga a dívida em execução em razão de sua situação financeira precária, de modo que a utilização de convênios que acessam seus dados pessoais sigilosos tão somente exporá a sua situação de penúria, em notória invasão indevida de sua vida privada, de sua intimidade e da sua própria honra.
Nessa situação específica, parece não ser o caso de se utilizar os convênios anteriormente referidos, pois haverá interferência indevida na sua vida privada, sem que isso proporcione algum benefício à efetividade da execução.
A utilização do convênio não passaria pelo 'teste de proporcionalidade', na medida em que não há nenhuma expectativa de que a diligência eletrônica será frutífera.
Também não encontraria amparo na 'lei da ponderação', pois a interferência no direito do devedor não é justificada pelo princípio oposto, a efetividade da execução".

Essa linha de raciocínio defendida por parcela da doutrina ignora o fenômeno da blindagem patrimonial e os inúmeros mecanismos de ocultação de bens, a exemplo da interposição de pessoas. Consoante assevera a doutrina contemporânea.

"Para frustrar o princípio da responsabilidade patrimonial, percebe-se cada vez mais o crescimento do fenômeno da blindagem patrimonial, que constitui um dos principais óbices à efetividade da execução trabalhista, sendo considerada como mecanismo de proteção e de ocultação de bens do devedor.
Através da blindagem patrimonial é criado um envoltório protetivo em torno de bens, direitos e valores do devedor, de modo a inviabilizar a respectiva identificação e consequente constrição judicial, frustrando, assim, a justa satisfação do crédito exequendo.
[…]

A blindagem patrimonial como fenômeno ilícito é dividida em várias tipologias, sendo que, para o propósito desta obra, selecionamos as quatro tipologias com maior incidência na execução trabalhista, quais sejam: (1) interposição de pessoas; (2) negócios jurídicos fraudulentos; (3) estruturas societárias fraudulentas; e (4) instrumentos de blindagem patrimonial de natureza financeira" [6].

É bastante comum a prática de muitos empresários, titulares de sociedades empresariais falidas, de ocultação dos seus bens pessoais, v.g., em holdings patrimoniais [7] e/ou em nome de familiares [8]. Em tal situação, na aparência, o Judiciário estará diante de um executado sem qualquer patrimônio e supostamente desprovido de renda para seu próprio sustento e de sua família.

Dessa maneira, seguindo a lógica da doutrina em questão, seria a hipótese de cessar a atividade executiva, deixando o juiz da execução de prosseguir na persecução patrimonial em face desse devedor, remetendo o processo ao arquivo provisório.

Sucede que este tipo de fraude patrimonial somente será possível de ser desnudada com base no uso efetivo das ferramentas eletrônicas de acesso restrito ao Poder Judiciário, vindo à tona todo o seu acervo de bens, direitos e valores do devedor passível de constrição judicial.

Acaso o resultado das pesquisas realizadas venha a revelar que o executado não possui patrimônio, não haverá exposição pública de situação de penúria econômica diversa daquela já apurada nos autos pelas pesquisas patrimoniais básicas, além do que, na maior parte das vezes, tal situação de escassez de recursos é autodeclarada pelo próprio devedor no processo, no intento de se escusar ao cumprimento da obrigação reconhecida no título executivo.

De outro lado, localizados bens ou identificado o fenômeno da blindagem patrimonial, virá a público apenas os atos ilícitos praticados pelo devedor, os quais não são tolerados pelo Direito e que caracteriza ato atentatório à dignidade da jurisdição (artigo 774, V, do CPC), colidindo com o interesse público da efetividade da jurisdição, que deve prevalecer sobre a intimidade do devedor, diante dos princípios constitucionais do acesso à jurisdição, ampla defesa e publicidade dos atos processuais.

Acreditamos que, por olvidar o fenômeno da blindagem patrimonial, a doutrina defensora da restrição do uso profícuo das ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial, tendo por base a LGPD, adota uma premissa equivocada no sentido de que, se não localizados bens do devedor por meio de uso das ferramentas eletrônicas de pesquisa patrimonial básicas (exemplo: Sisbajud, Renajud e Arisp), não resta outra opção ao juiz e ao credor senão ficar à deriva no processo executivo, pois "não há nenhuma expectativa de que a diligência eletrônica será frutífera" [9].

Para ilustrar, destacamos recente notícia veiculada no sítio eletrônico do TRT da 2ª Região [10]:

"OCULTAÇÃO DE PATRIMÔNIO EM EMPRESAS DE FAMILIARES ENSEJA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Decisão da Vara do Trabalho de Arujá deferiu um incidente de desconsideração de pessoa jurídica, na modalidade inversa, para penhorar os bens de uma holding familiar utilizada para ocultar patrimônio. A execução reúne processos de diversos reclamantes, ajuizados entre 2012 e 2015, que somam mais de R$ 7 milhões.
[…]
Para chegar à decisão, o juiz Rafael Vitor de Macedo Guimarães se baseou em ferramentas eletrônicas avançadas de pesquisa patrimonial. O cruzamento de informações revelou um esquema de blindagem patrimonial que se valeu de transferências patrimoniais sucessivas de todos os imóveis do grupo empresarial familiar para duas holdings, também em nome de familiares.
Dentre os elementos que comprovam a fraude, chama a atenção o fato de que o executado transferiu propriedades para a empresa em nome de familiar, mas manteve controle total sobre a pessoa jurídica e seus bens. Com isso, detinha controle da gestão patrimonial e a capacidade de vender ou onerar os bens. Segundo o magistrado, 'trata-se da pejotização do patrimônio do sócio devedor'.
Além disso, as pesquisas realizadas pela vara mostraram que não há registro de transações imobiliárias e financeiras em relação aos imóveis, o que reforça a tese de transferências patrimoniais fraudulentas. […]"

Nessa ordem de ideias, concluímos que não há espaço na Constituição da República, tampouco na LGPD, para subjugar o interesse público à tutela jurisdicional justa, efetiva e célere em benefício do direito à privacidade do devedor, tolhendo a Justiça do Trabalho da sua atividade executiva de pesquisa e investigação patrimonial para satisfação do crédito trabalhista exequendo de natureza alimentar e caráter superprivilegiado (artigos 100, §1º-A, da CF/88, e 186 do CTN). Entendimento em sentido diverso, transformar-se-á a LGPD em porto seguro ao devedor trabalhista para a prática de blindagem patrimonial, solapando a própria legitimidade da jurisdição especializada.

 


[2] Definição legal de dado pessoal: informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável (art. 5º, inciso I, da LGPD).
Definição legal de dado pessoal sensível: dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural (art. 5º, inciso II, da LGPD).

[3] Consiste no método de interpretação legal que tem por critério os fins da norma.

[4] No mesmo sentido, a doutrina especializada: MALDONADO, Viviane Nóbrega (coord.); BLUM, Renato Opice (coord.). LGPD: Lei Geral de Proteção de Dados comentada, 2ª ed. São Paulo: RT, 2019 (E-book).

[5] MIZIARA, Raphael (coord.); PESSOA, André (coord.); MOLLICONE, Bianca (coord.). Reflexos da LGPD no direito e no processo do trabalho, São Paulo: RT, 2020 (E-book).

[6] GUIMARÃES, Rafael; CALCINI, Ricardo; JAMBERG, Richard Wilson. Execução trabalhista na prática, Leme: Mizuno, 2021, pp. 508/509.

[7] “A holding patrimonial tem sido constantemente associada à prática de blindagem patrimonial. Isso porque, considerando que a pessoa jurídica é a titular dos bens a ela incorporados, eventual dívida dos sócios não teria o condão de alcançar o patrimônio da holding, emergindo daí como mais um instrumento de blindagem patrimonial, na medida em que dificulta que os ativos patrimoniais sejam objeto de constrição pelos credores do(s) fundador(es) da holding”. (GUIMARÃES, Rafael; CALCINI, Ricardo; JAMBERG, Richard Wilson. Execução trabalhista na prática, Leme: Mizuno, 2021, p. 623)

[8] “As pessoas interpostas podem ser os familiares que não contribuíram para a aquisição do patrimônio, sendo destinatários do aporte patrimonial a fim de proteger o devedor dos efeitos de eventual execução. A dissipação patrimonial ao círculo familiar é bastante corriqueira na praxe forense, e pode abranger cônjuge, filhos maiores e menores, os pais e irmãos do investigado”. (GUIMARÃES, Rafael; CALCINI, Ricardo; JAMBERG, Richard Wilson. Execução trabalhista na prática, Leme: Mizuno, 2021, p. 585)

[9] MIZIARA, Raphael (coord.); PESSOA, André (coord.); MOLLICONE, Bianca (coord.). Reflexos da LGPD no direito e no processo do trabalho, São Paulo: RT, 2020 (E-book).

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!