Opinião

Locação de ativos pela Administração: contratação simplificada e racionalizada

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9 de março de 2021, 7h13

Muitos municípios brasileiros vêm encontrando enormes dificuldades para resolver os desafios que as competências constitucionais e legais lhes impõem. A desigualdade em relação à distribuição das receitas entre os entes federativos é algo que já foi objeto de muitos artigos e de eventos, em especial de entidades que congregam municípios, cujos prefeitos acabam recebendo a pressão direta de cidadãos por serviços públicos que repercutem nas suas vidas. Ocorre que, para alguns serviços, não raras vezes, a solução não passa por dinheiro, já que as fontes de recursos estão muitas vezes na sua mão, seja porque o custo vem de incentivos ou transferências da União ou dos Estados, seja porque o serviço tem o seu custo integralmente pago pelo próprio cidadão.

Nesse cenário, a simplicidade da solução jurídica pode ser elemento fundamental para que se consiga realizar os instrumentos que viabilizem a realização do serviço público de forma mais eficiente, rápida e segura, já que muitas vezes os mecanismos mais complexos exigem projetos e assistência jurídica mais custosos que põem os municípios em uma situação de possível captura por ausência de possibilidade de criação de estruturas de controle e de agências regulatórias que viabilizem a adequada prestação dos serviços.

Neste artigo, valer-se-á de dois exemplos que demonstram o tamanho do desafio regulatório para os gestores municipais: iluminação pública e saneamento. Trata-se de dois serviços que exigem grande expertise técnica e demandam significativa capacidade regulatória. Ocorre que, ainda que desejassem, poucos municípios brasileiros conseguiriam criar e manter duas agências regulatórias especializadas nesses serviços, por mais que pudessem distribuir o custo da regulação entre os cidadãos. Uma das dificuldades é a baixa atratividade da remuneração que pode o município pagar para membros, diretores e técnicos de uma agência, quer pelo teto remuneratório do prefeito, que em pequenos municípios tem remuneração baixa para não inviabilizar orçamentária e financeiramente a comuna, quer pelas limitações de gastos com pessoal estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal. A criação de uma agência meramente formal traz o risco de captura em detrimento da eficiente realização do serviço público.

Se para municípios de grande porte ou para municípios que conseguiram se organizar com a criação de consórcios públicos ou que foram organizados pelo respectivo estado em regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões, ex vi do artigo 25, §3º, da CRFB, em que fica mais viável a organização de uma estrutura regulatória para a execução dos serviços de interesse comum, o ideal é a utilização de instrumentos jurídicos mais complexos e de longo prazo, como o das parcerias público-privadas (PPPs). Nesse último caso, há uma atuação conjunta entre particulares e o poder público que gera como consequência a desburocratização, diminuição de custos da Administração, promoção da eficientização dos serviços públicos prestados, uso de tecnologias e implementação de investimentos pelo particular que muitas vezes não poderiam ser arcados pelo poder público.

O mesmo não se diga para pequenos e médios municípios que não tiveram a possibilidade de inserção em uma estrutura de maior porte. Para estes, o uso da locação de ativos se apresenta como uma solução ágil, prática e segura para a implementação de melhorias na prestação de serviços, tais como o de iluminação pública e de saneamento básico.

A locação de ativos é, presentemente, admitida de forma expressa na Lei nº 12.462, de 04 de agosto de 2011, a partir da introdução do artigo 47-A pela Lei nº 13.190, de 19 de novembro de 2015 [1]. Deve-se ressaltar que a Lei nº 13.190, de 19 de novembro de 2015, decorre de conversão da Medida Provisória nº 678/2015, e o referido dispositivo não estava contemplado no texto original e foi inserido através de emenda. Conforme justificativa apresentada na emenda, a locação de ativos é uma "modelagem que vem sendo cada vez mais usual na prática das Administrações", sendo "juridicamente viável a formalização de estruturas contratuais desse tipo pelas Administrações" [2]. Assim, admitiu-se a inserção desse importante dispositivo que, como será visto adiante, se trata de forma de contratação relevante e que muitas vezes pode ser mais vantajosa para a Administração Pública.

A partir da inserção desse dispositivo, inspirado no modelo de contrato buit to suit [3], passou a locação de ativos a ser contrato típico com a Administração Pública, rompendo o ranço resistente de formalistas extremos que entendiam que o fato de ser até então contrato atípico impediria a sua realização pela Administração Pública. A presença da regra trouxe conforto aos gestores e aos órgãos de controle na análise de questões que envolvam esse tipo de contratação.

Uma outra crítica já feita em relação à utilização desse contrato, e que já foi objeto de diversos estudos [4], é a de que a locação de ativos seria uma disfarçada forma de financiamento do poder público e que, como tal, deveria obedecer aos limites, requisitos e restrições da Lei Complementar nº 101/2000 (LRF), nos diversos dispositivos em que faz referência expressa ao tema. Ocorre que, em especial nos casos de saneamento e de iluminação pública, como se verá, não se trata de qualquer contrato de financiamento. A remuneração do contratado ou vem da tarifa do serviço ou da contribuição paga pelo cidadão pela iluminação pública.

No caso do saneamento, a locação de ativos é modalidade comumente utilizada e admitida, inclusive, encontrando fontes especiais de financiamento. Esse financiamento não é pago pelo poder público, já que o custo é integralmente pago pela tarifa ou por parte da tarifa, sem que o poder público tenha que fazer qualquer desembolso. Aliás, a forma de pagamento por tarifa é a indicada na Lei nº 11.445, de 2007, que trata do saneamento básico no Brasil.

Exemplifica-se nesse caso o programa Saneamento para Todos, da Caixa Econômica Federal, cujo objetivo é promover o investimento em saneamento através da disponibilização de financiamento ao setor público e privado por meio de recursos do FGTS e contrapartida do interessado. No setor privado, existe a possibilidade das empresas se utilizarem do modelo de locação de ativos através de sociedades de propósito específico (SPEs). Conforme manual de fomento do FGTS ("Saneamento para Todos") [5], as SPEs podem viabilizar investimentos em saneamento para "locar empreendimentos de saneamento a prestador de serviços de saneamento básico do município ou do Distrito Federal ou, à entidade pública e privada regularmente contratada por qualquer destes Entes da Federação para a prestação dos serviços, os quais atuam como patrocinadores".

Destaca-se também como exemplo prático a utilização dessa modalidade pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) nos municípios de Campo Limpo Paulista e Várzea Paulista (Contrato CP Intern. CSS 31.041/07), Franca (Contratos CPI CSS 1.057/11 e CP Intern. CSS 21.074/08) e Campos do Jordão (Contrato CP Intern. CSS 11.948/09), entre outros. Nesses casos, o parceiro deveria constituir uma SPE para executar as obras de implantação de estações elevatórias de esgotos, interligações das redes existentes aos coletores troncos, ligações domiciliares de esgotos, entre outros, e quando do término e recebimento provisório das obras, deveria locá-las à Sabesp por um determinado prazo.

Relativamente à iluminação pública, é necessário ressaltar preliminarmente que esse setor possui uma conjuntura constitucional ligada à prestação pelos municípios de serviços públicos de interesse local, conforme artigo 30, V, da Constituição Federal, e uma conjuntura histórica ligada às distribuidoras exercendo a manutenção e operação de ativos de iluminação pública, bem como contabilizando-os em seus balanços patrimoniais como ativo imobilizado em serviço (AIS). Após a alteração feita pela Resolução Normativa da Aneel nº 479/2012 na Resolução Normativa Aneel nº 414/2010, que trata sobre o fornecimento de energia elétrica, foi dado um prazo para as distribuidoras transferirem os ativos de iluminação pública aos municípios. Assim, esses entes federativos passaram a ter que custear as despesas necessárias para conservação e manutenção da rede de iluminação pública, ou então buscar alternativas de gestão desses ativos, como com a criação de consórcios públicos, realização de PPPs, ou então a locação de ativos.

Nesse setor, a inexistência de qualquer contrato de financiamento do município ao contratado é patente. Os contratos de locação de ativos serão remunerados com base na contribuição paga pelo usuário da energia elétrica, que tem na sua conta incluída o pagamento relacionado à iluminação pública, conforme admite o artigo 149-A da Constituição [6]. Muitos desses contratos têm sua remuneração relacionada a parte dessa contribuição, cuja cobrança pode ser feita pelas concessionárias de energia elétrica, outros, em face da eficiência energética têm a remuneração lastreada na diminuição no custo de energia que os novos equipamentos trazem. Trata-se de contrato baseado na performance de eficiência energética do contratado. O município não tem custo adicional qualquer. Recebe ao final novos equipamentos e tem a possibilidade de melhorar e ampliar a malha de iluminação pública. Não são raros os casos de municípios limítrofes em que o grau de eficiência dessa contratação é tão significativo que se sabe onde está o limite municipal pela iluminação do que a adotou contrastando com a escuridão do município vizinho.

Como exemplo prático recente, destaca-se o Pregão Eletrônico nº 22/2020, promovido pela Prefeitura Municipal de Ubatuba, que teve por objeto a contratação de empresa para a prestação de serviço de reordenação luminotécnica do sistema de iluminação pública do município, com a locação de equipamentos pelo período de 60 meses. Durante o certame, foram apresentadas representações perante o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (Processos nº 6387.989.20, 16429.989.20, 16451.989.20 e 16848.989.20) por supostas irregularidades do edital. Em resposta ao questionamento formulado por licitante acerca da "licitação no modelo de locação de ativos com desequilíbrio entre cronograma físico e financeiro", o conselheiro relator Antônio Roque Citadini reconheceu a validade dessa modalidade, e que a locação de ativos é um modelo adotado por muitos órgãos da Administração Pública, devendo estar amparado na "demonstração da viabilidade econômico-financeira e de sua vantajosidade frente às demais modalidades" [7]. Após suspensão do certame entre junho e novembro de 2020, a licitação se deu de forma efetiva, e foi firmado o Contrato nº 96/2020 com a SPE Luzbatuba Iluminação SPE Ltda.

Como se vê, a locação de ativos é um contrato do tipo "ganha-ganha", que tem na simplicidade a sua grande virtude. Facilita com isso o controle e a regulação do serviço e diminui custos aos municípios e diminui o espaço para a corrupção. Mentes saneadas e iluminadas compreenderão.

 


[1] "Art. 47-A. A administração pública poderá firmar contratos de locação de bens móveis e imóveis, nos quais o locador realiza prévia aquisição, construção ou reforma substancial, com ou sem aparelhamento de bens, por si mesmo ou por terceiros, do bem especificado pela administração. (Incluído pela Lei nº 13.190, de 2015)
1º A contratação referida no caput sujeita-se à mesma disciplina de dispensa e inexigibilidade de licitação aplicável às locações comuns. (Incluído pela Lei nº 13.190, de 2015)
2º A contratação referida no caput poderá prever a reversão dos bens à administração pública ao final da locação, desde que estabelecida no contrato. (Incluído pela Lei nº 13.190, de 2015)
3º O valor da locação a que se refere o caput não poderá exceder, ao mês, 1% (um por cento) do valor do bem locado. (Incluído pela Lei nº 13.190, de 2015)".

[2] Conforme Emenda nº 00059, apresentada pelo Deputado Federal Alfredo Kaefer durante a tramitação da MPV 678/2015. Disponível em: https://bit.ly/3k04vcm . Acesso em 18 fev. 2021.

[3] Sobre isto, leia-se FERRAZ, Luciano, in Nova regra do RDC consagra contratos built to suit. CONJUR, 2015. Disponível em https://www.conjur.com.br/2015-nov-26/interesse-publico-regra-rdc-consagra-contratos-built-to-suit.

[4] Destaca-se o PPJC 330/2013, do Ministério Público de Contas do Estado do Espírito Santo, da lavra do Procurador Especial de Contas Heron Carlos Gomes de Oliveira, que foi referência para diversos outros Pareceres e informes técnicos em muitos Tribunais de Contas de nossa Federação.

[5] Disponível em: https://bit.ly/3s6uamM. Acesso em 18 fev 2021.

[6] Art. 149-A Os Municípios e o Distrito Federal poderão instituir contribuição, na forma das respectivas leis, para o custeio do serviço de iluminação pública, observado o disposto no art. 150, I e III. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 39, de 2002)
Parágrafo
 único. É facultada a cobrança da contribuição a que se refere o caput, na fatura de consumo de energia elétrica. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 39, de 2002)

[7] Disponível em: https://bit.ly/2NySGhk. Acesso em 18 fev. 2021.

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