Opinião

Deltan e a ficção do custus legis

Autor

  • Fernando Henrique Silva Cavalcante

    é advogado criminalista com especialização em crimes digitais pesquisador da área do Direito Penal Comparado e Direito Penal Constitucional possui publicações na área do Direito Penal Internacional Direito Internacional e Direito Constitucional Comparado e autor do livro "Guerra demográfica no contexto do Islã moderno" publicado em 2017 pela editora Nova.

9 de março de 2021, 6h36

O que mais me espanta na última rodada de conversas entre os procuradores do "Ministério de Curitiba" é a ausência de repercussão específica de uma das (várias) falas do Deltan que contrapõem frontalmente a posição do Ministério Público no Brasil.

"Deixe a burocracia e venha prender o Lula", disse o procurador, então coordenador da força-tarefa, a um colega que demonstrava discordâncias dos métodos utilizados pela então "lava jato" na investigação do ex-presidente Lula.

Apesar de não ser tão "suculento" quanto acobertar uma delegada no curso de um crime, ou ativamente coordenar a defesa com diversos magistrados, a fala de Deltan é extremamente reveladora acerca de como a "jurocracia de Curitiba" se enxerga a respeito de sua função no sistema jurídico nacional.

Quais seriam as burocracias mencionadas por Dalagnol? Ora, nada mais que Código Penal, de Processo Penal e, no fim das contas, a Constituição Federal.

Uma análise extensiva da Constituição Brasileira, principalmente em uma análise pareada com os modelos francês, espanhol, português, alemão e italiano, nos quais tanto nos inspiramos em nosso esforço legislativo e de construção de sistema jurídico, nos apontam um grave vício sistêmico na fala do ex-coordenador da "lava jato".

No Brasil, assim como em diversos outros países que adotam o modelo de lei civil (civil law), o Ministério Público detém uma função originária que qualifica e caracteriza toda a sua atuação, a de fiscal das leis, ou, no latim, custus legis.

Diferentemente de outros países, principalmente os de matrizes da lei comum (common law), a função acusatória do Parquet (não coincidentemente, palavra oriunda do francês) vem justamente da sua função de fiscalizar o devido cumprimento legal.

Justamente nesse sentido age o Ministério Público em todas ações e níveis do Judiciário, intervindo sempre que necessário para defender a correta aplicação das leis.

Conquanto a função acusatória seja a mais famosa e visível, é de interesse didático que se compreenda que essa é só mais uma face, uma verdadeira derivação do dever de guarda das leis. A legislação penal existe como proteção contra condutas que, por si só, tem o condão de afetar toda a coletividade de forma abstrata e homogênea. Os tipos penais representam condutas que possuem a capacidade de ferir a sociedade como abstração coletiva de direitos.

Sendo a sociedade e o Estado ficções político-jurisdicionais, não existem legitimados naturais específicos para guardar seus direitos quando violados, diferentemente das pessoas formalmente constituídas (sejam naturais ou jurídicas), que naturalmente podem (e devem) defender seus próprios direitos e interesses.

É preciso lembrar nesse momento aqui que, apesar dos entes federativos possuírem CNPJ e atuarem como pessoas jurídicas, o Estado como figura abstrata representativa de uma determinada coletividade de pessoas não se limita a uma figura constituída na legislação nacional.

Trata-se aqui do Estado que apresenta o suporte político, a legitimidade, para que existam leis para começo de conversa. Aquele Estado de que tratam os contratos sociais, perante o qual os primitivos humanos abdicaram da liberdade absoluta do estado de natureza, e que existe antes mesmo de existirem Constituições formais e escritas.

Esse Estado não possui representação direta por nenhum agente político nacional, sendo uma abstração política que sustenta toda a legislação, seja constitucional ou infraconstitucional, que proporciona o aparato estatal que, por sua vez, exerce os poderes conferidos a esse Estado abstrato pelo contrato social originário.

Tratando dessa coletividade abstrata social que é protegida pelo Direito Penal (e não o Estado como pessoa jurídica de direito público), que não se vê representado por nenhum ente da federação, é que se necessita de um ator que lhe defenda das violações graves o bastante para lhe ameaçar a integridade.

É justamente por isso que o Ministério Público existe como instituição suis generis, que não integra nenhum poder, e, igualmente, tem total autonomia para atuar inclusive contra os órgãos, agentes e pessoas jurídicas que agem em nome desse Estado abstrato.

Tendo a função precípua de "guardar o fiel cumprimento das leis", e sabendo-se que a lei penal tem como função a manutenção do sensível tecido social que fundamenta o estado abstrato, confere-se ao MP a defesa do direito deste, consubstanciado na persecução penal, na sua capacidade acusatória.

De igual forma, cabe ao Parquet defender os demais direitos abstratos da coletividade, como o meio ambiente, o direito coletivo dos consumidores, e também das populações sensíveis, como crianças, idosos, indígenas e incapazes.

Todas essas funções estão abarcadas justamente pela guarda deferida pela Constituição Federal aos Ministérios Públicos, para que guardassem com fidelidade o perfeito cumprimento das leis constituídas e outorgadas pelo povo, legitimo detentor do poder exercido pelo estado abstrato.

Ou, para Deltan Dalagnol, "burocracia".

Infelizmente a fala de Deltan não é uma situação isolada. Perdeu-se, há muito, a essência do Ministério Público em um afã punitivista e inquisitorial. Esqueceu-se que os promotores e procuradores de Justiça se sentam no mesmo nível dos juízes porque possuem a prerrogativa de proteção da coletividade abstrata (independentemente do quanto se possa discordar disso em um nível de discussão teórica no ramo da paridade de armas e igualdade entre partes).

Confundiram-se os promotores e procuradores, os brasileiros e brasileiras, os juízes e advogados desta tempestuosa nação. O Ministério Público não existe para acusar. Repito, a persecução penal não é a função precípua do Parquet. Trata-se de uma derivação, por mais hermenêutica e epistemológica que possa parecer, do dever de custus legis.

O mero nível de abstração da discussão não lhe afasta a importância, porque o entendimento das origens das coisas serve para levar a melhor compreensão de sua finalidade específica, e de como melhor lhe alcançar.

É nesse sentido que se defende uma atuação direta dos Ministérios Públicos de impedir a realização de provas ilegais pelas policias e, por si só, lhes denunciar pugnando por seu descarte. Trata-se de fazer cumprir a lei, e não de punir ou condenar.

Diferentemente do que ocorre em muitos países de common law, no Brasil a função acusatória não é política (como no caso dos Estados Unidos, em que os procuradores gerais são eleitos, e compõe uma equipe de advogados de sua escolha, podendo livremente contratar ou exonerar) ou então restrita a perseguição criminal (como é na Inglaterra, onde os procuradores da coroa tem como única função a acusação criminal e são indicações políticas do Poder Executivo).

A independência funcional garantida pela colocação do Ministério Público de forma suis generis na República brasileira, não pertencente a nenhum poder, e impermeável (em tese) a influências externas existem justamente para lhe garantir a tranquilidade de agir para fazer cumprir a lei, mesmo quando o resultado prático seja a perda da pretensão acusatória.

O Parquet acusa para proteger uma coletividade abstrata, e não porque é seu dever institucional de acusar. E é justamente dessa missão, pela qual lhe garante total autonomia e independência, que surge o dever de ser o maior exemplo do fiel cumprimento das leis.

Agora, se o fiscal das leis transforma seu papel em lhes distorcer, ignorar, burlar e vilipendiar, em prol de uma função derivada (persecução penal), resta a pergunta: "E quem vigia os vigilantes?".

Quando o Ministério Público passa a agir como ente político, com finalidades escusas e obscuras de atender a anseios populares e colocar o nome de seus membros na mídia, atrás de qualquer forma de prestígio como "heróis políticos da nação", para que tanta preocupação em lhes garantir tamanha independência e status constitucional?

Se é para termos um cão de guarda raivoso, um acusador implacável, deve-se abrir mão necessariamente da função de custus legis, abandonando de vez a farsa de que o Parquet existe para fazer cumprir as leis.

Se na sua própria atuação institucional parece incapaz de conter seus membros de serem levados pela mídia e sentimento popular à extrema banalização das leis, a ponto de lhes chamar desdenhosamente de "burocracia", atuando para conseguir uma condenação "a qualquer custo", para que sua posição suis generis e privilegiada na República?

Se lhe pode acusar "sem provas, mas com convicção", numa clara aberração das leis que supostamente existe para defender sem qualquer consequência para quem assim age, porque lhe destacar uma posição e status extra dentro do judiciário, influenciando diversos processos na posição de fiscal da lei?

Na inexistência de uma resposta aos questionamentos, cabe-nos novamente como jurisdicionados de todas as espécies a cobrança e lembrança do papel institucional dos Ministérios Públicos na República, e retomada da instituição com seus valores de origem.

Cabe-nos, como muito bem diz Lênio Streck em sua coluna aqui na ConJur [1], "sejamos chatos"! Lembremo-nos que o Direito e a República são muito mais que um momento passageiro e sentimentos populares efêmeros. A defesa dos valores republicanos, da Constituição Federal e da democracia são muito maiores e mais extensos, e, mais importante, são um trabalho em tempo integral, muitas vezes a contragosto de um sentimento popular momentâneo.

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  • é advogado criminalista, com especialização em crimes digitais, pesquisador da área do Direito Penal Comparado e Direito Penal Constitucional, possui publicações na área do Direito Penal Internacional, Direito Internacional e Direito Constitucional Comparado e autor do livro "Guerra demográfica no contexto do Islã moderno", publicado em 2017 pela editora Nova.

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