Opinião

A ultrapassada tese da legítima defesa da honra e o direito à defesa

Autor

  • Adriana Filizzola D'Urso

    é advogada criminalista professora mestre e doutoranda em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha) e membro do Instituto de Juristas Brasileiras e da Associação Brasileira das Mulheres de Carreiras Jurídicas.

9 de março de 2021, 15h10

Recentemente, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, decidiu, em caráter liminar, que a tese de legítima defesa da honra, utilizada para justificar feminicídios e aceita, especialmente no passado, pelos jurados no plenário do Tribunal do Júri, é inconstitucional.

Referida tese, que por muito tempo foi sustentada pelos advogados criminalistas, embora atualmente em franco desuso, objetivava um resultado favorável que levasse à absolvição de seus clientes ou à redução da pena, pois o homicídio praticado estaria justificado na proteção da honra daquele que o cometeu.

De fato, a sociedade machista e os Conselhos de Sentença normalmente formados por homens (pois as mulheres donas de casa, pelo que previa a legislação, podiam ser dispensadas), contribuíram para o sucesso da tese da legítima defesa da honra, absolvendo muitos acusados de feminicídio, quando sequer um tipo penal específico existia ou assim era denominado.

Destaca-se, nesse contexto, o caso do assassinato de Ângela Diniz por seu companheiro, Doca Street, ocorrido em 1976, no Rio de Janeiro. Ao tentar justificar o crime, Doca alegou ter ciúmes de Ângela, dizendo que, no fundo, havia matado por amor, o que ensejou a imediata reação do movimento feminista com o slogan "quem ama não mata". Seus advogados conseguiram, em um primeiro julgamento, o reconhecimento da legítima defesa da honra e Doca foi condenado a uma pena de dois anos de reclusão, com suspensão condicional da pena e, dessa forma, não foi preso.

Desde então, a tese da legítima defesa da honra vinha sendo utilizada para absolver acusados de feminicídio ou diminuir consideravelmente sua pena, obviamente perdendo força com o desenvolvimento social e a diminuição do machismo, de modo que a jurisprudência demonstra que os jurados passaram a não reconhecer com tanta facilidade (como outrora) referida tese.

Na recente Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 779, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) questionou, perante o STF, essa tese da legítima defesa da honra, diante de sua utilização para absolvição de acusados de feminicídio.

A decisão liminar do ministro Toffoli entendeu que: 1) a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (artigo  1º, III, da CF) e da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigo  5º, caput, da CF); 2) a interpretação conforme a Constituição Federal dos artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65 do Código de Processo Penal obriga a exclusão legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa; e 3) fica obstado à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

A decisão, de início, pelo conteúdo que encerra, merece ser aplaudida, pois rechaça e declara inconstitucional uma tese tão absurda e ultrapassada.

Por outro lado, sob a ótica da ampla defesa, o terceiro item da decisão deve ser visto com reservas, pois, data venia, ultrapassa os limites legais e afronta a plenitude do direito de defesa, garantida pela Constituição Federal, ao impedir que o advogado criminalista possa sustentar referida tese em plenário.

Com a própria evolução da sociedade e o reconhecimento da inconstitucionalidade de referida tese, a legítima defesa da honra será, na prática, de uma vez por todas, banida de nossos Tribunais do Júri, uma vez que será totalmente inócua, caso suscitada. Isso fará com que os advogados deixem de argui-la, já que não mais repercutirá entre os jurados e não ensejará a absolvição desejada.

Cabe, portanto, à sociedade, representada pelo Conselho de Sentença (jurados e juradas), refutar a absurda tese. Por outro lado, o direito de um advogado sustentar o que bem entender no interesse da defesa de seu cliente não pode ser tolhido. A defesa não pode ser cerceada, limitada, amputada, mutilada, especialmente durante os trabalhos no plenário do Tribunal do Júri.

Assim sendo, provavelmente, esse ponto específico da decisão liminar não deverá ser confirmado no julgamento final (de mérito) desse caso, que será examinado pelo plenário do STF, o que, de forma alguma, diminui a importância dessa decisão, que confirma a necessidade da constante e inesgotável luta contra o feminicídio.

Autores

  • é advogada criminalista, professora, mestre em Direito Penal pela Universidade de Salamanca (Espanha), pós-graduada em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra (Portugal), também em Ciências Criminais e Dogmática Penal Alemã na Universidade Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha), presidente da Comissão das Advogadas Criminalistas da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas do Estado de São Paulo (Abracrim Mulher SP), Secretária-geral da Comissão das Mulheres Advogadas da Ordem dos Advogados do Brasil — Seção de São Paulo (OAB/SP).

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