Opinião

Direito ao esquecimento na 'era da superinformação'

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8 de março de 2021, 19h02

1) Introdução
O direito ao esquecimento, considerado por muitos um desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, trata da possibilidade de desconsideração e abstração de fatos vexatórios ocorridos no passado, entendidos como danosos à índole e à privacidade do indivíduo.

A discussão que abrange o estudo do direito ao esquecimento tem sido abordada nos países europeus, bem como nos Estados Unidos há anos. No Brasil, não foi diferente. Apesar de considerado um país atrasado no que tange ao reconhecimento desse direito, instâncias inferiores já tiveram como pauta de julgamento a aplicabilidade do referido conteúdo.

No entanto, recentemente, a temática abordada foi alvo de discussão no Supremo Tribunal Federal, oportunidade em que, por decisão majoritária, o direito ao esquecimento foi julgado como incompatível à Constituição. Isso porque, segundo o decidido, não haveria a possibilidade de extrair a partir de uma interpretação do texto normativo o entendimento de que o direito ao esquecimento seria um direito que não restringiria o exercício de outros direitos fundamentais.

No mais, o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1010606 ainda reafirmou a necessidade de ponderação dos princípios e direitos dispostos na Constituição Federal. Nesse sentido, haveria de ser realizada a prevalência de um dos direitos discutidos, ou seja, do particular afetado pela disseminação do conteúdo vexatório, ou o direito de liberdade de expressão. Sendo assim, a tese firmada apontou a incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal, de forma que em caso de excesso ao exercício da liberdade de expressão, a situação deverá ser analisada de forma isolada, conforme os direitos e princípios constitucionais.

1.1) A aplicação do direito ao esquecimento
Em meio à "era da informação", conteúdos de cunho pessoal são facilmente divulgados nos meios de comunicação. Dessa forma, é muito fácil que informações relativas à intimidade, vida privada, imagem, nome ou memória das pessoas, possam ferir ou causar situação prejudicial. Assim, o direito ao esquecimento passa a ser cogitado como recurso para conter a divulgação desses dados indesejados.

No entanto, ao tratar desse direito, é preciso fazer algumas ponderações. Considerada inconstitucional, sua aplicação é demasiadamente restringida, tornando-se quase impossível no meio jurídico. Em termos teóricos, o direito ao esquecimento seria invocado quando, sem interesse público atual, um indivíduo desejasse exercer seu direito, impedindo de serem noticiadas informações de fato pessoal ocorrido. Referente à falta de interesse público atual, é de extrema importância que o fato não seja relevante ou importante para a sociedade, caso contrário estaria configurado afronta ao direito à memória.

Ademais, o direito ao esquecimento cria um extenso campo de discussão e julgamento para os magistrados, apresentando diversos entendimentos do que deve ou não, pode ou não ser esquecido. Portanto, a fim de julgar casos do tipo, deve-se levar em consideração a relevância social do fato, como expresso anteriormente, a garantia da liberdade de imprensa (prevista em norma e que deve ser exercida dentro dos limites relevantes) e, por fim, a melhor e mais extensa forma possível de preservação da intimidade.

1.2) Direito ao esquecimento como direito de personalidade
Fruto de construção doutrinária e jurisprudencial, o direito ao esquecimento é por alguns considerado um direito de personalidade. Isso porque, a proteção que busca se alcançar ao mencionar o direito ao esquecimento abrange os dados dos particulares que os expõe de alguma forma, despertando suas memórias acerca de fatos e acontecimentos potencialmente prejudiciais.

Dessa forma, sabe-se que por vezes esses fatos atacam a honra, a moral e a dignidade dos titulares dos dados e fatos, e, apesar de a Constituição Federal não reconhecer ou fazer menção expressa ao direito ao esquecimento, a Carta Magna tutela os direitos supramencionados de forma direta, a partir da previsão dos direitos de personalidade. Assim, a maioria dos autores optam por entender que o direito de personalidade abrange o direito ao esquecimento, de forma que esse se torna uma espécie daquele.

1.3) As três correntes do direito ao esquecimento
Em junho de 2017, o assunto foi discutido em audiência pública do Supremo Tribunal Federal e três posições foram delineadas: a posição pró-informação, pró-esquecimento e a intermediária.

Apoiada por diversas entidades ligadas à comunicação, a posição pró-informação determina que não existe direito ao esquecimento. Como fundamento, o fato de não constar expressamente na legislação brasileira sua possibilidade e não ser possível sua compreensão com base em qualquer princípio fundamental.

Por outro lado, a pró-esquecimento, defendida pelo representante do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), aponta que o direito ao esquecimento existe e deve preponderar sempre como expressão do direito da pessoa humana e sua intimidade e privacidade. Além disso, defendem que, sendo esse um direito derivado da dignidade da pessoa humana, valor supremo na ordem constitucional brasileira, ela deve prevalecer sobre a liberdade de expressão.

Já a posição intermediária entende que a Constituição não permite a hierarquização prévia de seus princípios, sejam esses quais forem. Defendida pelo IBDCivil (Instituto Brasileiro de Direito Civil), apresenta como solução a utilização do método de ponderação, buscando sempre a obtenção do menor sacrifício possível para cada interesse.

2) Desenvolvimento
2.1) Casos práticos
Mundialmente conhecido, o "caso Google Spain versus Mario Costeja González" é referência de exemplo quando o assunto discutido é o direito ao esquecimento. Em 2004, o Tribunal de Justiça da União Europeia julgou e determinou a exclusão dos dados de pesquisa do nome do autor da ação da plataforma da empresa ré.

A desvinculação do nome de Mario Costeja González dos buscadores do Google e Yahoo foi estipulada em razão do fornecimento de informações prejudiciais e indesejadas, que influenciavam a visão de terceiros acerca da imagem do autor da ação.

Notórios também os casos julgados pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que optou por entender que o sistema jurídico brasileiro protege, de fato, o direito ao esquecimento (REsp 1.335.153-RJ e REsp 1.334.097).

No entanto, como já mencionado, o Supremo Tribunal Federal julgou o direito ao esquecimento como incompatível ao sistema normativo brasileiro. Entretanto, a partir disso, tem se discutido acerca das lacunas expostas no julgamento, uma vez que se reconheceu que o direito ao esquecimento da fato não é um desdobramento da dignidade da pessoa humana, ou ainda, um direito de personalidade, contudo, nada é mencionado de forma expressa acerca da inexistência do referido direito.

Além disso, sabe-se que o direito ao esquecimento possui diversas características e particularidades, sendo possível o entendimento de que o referido direito pode ser aplicado em outros casos.

2.2) Sociedade da informação e a civilização de espetáculo
Com o acesso cada vez maior da sociedade ao mundo digital, as relações sociais parecem também migrar para o mundo virtual. Com diversos canais de comunicação para criação, distribuição, manipulação e integração, a informação pode ainda ser propagada por inúmeros usuários.

A sociedade passou a ser alimentada, incessantemente, por uma enorme quantidade de fatos e dados, ocorrendo, assim, o fenômeno do superinformacionismo. Somos bombardeados por inúmeras informações, mesmo não querendo estar sujeito a toda exposição.

Com essa "nova" ordem tecnológica e cultural, o passado se mantém cada vez mais presente e aquilo que poderíamos esquecer pode voltar à memória a qualquer momento. Nessa realidade, em que todos estão conectados a todo instante, surge o desejo de ser visto e reconhecido, desenvolvendo a vontade de eternizar todo e qualquer acontecimento. Eis que cresce a cada dia a civilização do espetáculo.

O que será do direito ao esquecimento face a uma sociedade que não quer se esquecer de nada, ao mesmo tempo que não quer sofrer pelas lembranças? Torna-se muito difícil, portanto, sustentar a ideia de que o direito ao esquecimento possa vir a resolver eventuais problemas e satisfazer futuros desejos dos cidadãos. Com a rapidez com que as notícias são divulgadas e compartilhadas, cria-se uma enorme rede de informações onde dados são perdidos para serem encontrados no futuro. A capacidade da internet de guardar todas as informações e eternizá-las, dificulta a possibilidade de se esquecer.

2.3) Os principais desafios do direito ao esquecimento
O direito ao esquecimento é interpretado decorrente dos direitos da personalidade, como exposto, levando em consideração, portanto, a honra, intimidade e imagem, todos esses sendo direitos fundamentais para a manutenção da dignidade do indivíduo. Com isso, o direito ao esquecimento se encontra em meio a um grande conflito normativo contra o direito à informação, liberdade de expressão e de imprensa.

O ponto mais importante desse conflito é o fato de as normas conflitantes se tratarem de princípios fundamentais. Sendo assim, de mesma hierarquia e não podendo cancelar umas às outras. Inicia-se então, uma discussão a respeito da hierarquia dessas normas, abrindo espaço para interpretação e balanceamento desses princípios.

Além do conflito normativo, o grande desafio para o direito ao esquecimento é o contexto social atual. Vivemos em um mundo que migra aceleradamente para o meio digital, marcado pelo aumento das interações e a introdução de nova infraestrutura de informação à organização social. Ou seja, a internet se mostra um grande desafio para os mais diversos ramos da sociedade.

Com a rede mundial de computadores, as informações podem ser eternizadas, o que torna quase impossível serem esquecidas. Ademais, encontrar uma informação divulgada na internet é um desafio. Em um ambiente em que tudo é compartilhado por terceiros, atingindo níveis globais, é praticamente impossível identificar o número exato de compartilhamentos, especialmente levando em consideração a quantidade de usuários e visualizações, sem contar os diversos canais digitais por onde a informação pode ser propagada: Instagram, Facebook, Youtube, Twitter, Whatsapp, entre outros.

3) Conclusão
Ante o debate proposto, é possível entender que a retirada de dados e fatos, impedindo a livre circulação de informações, acarreta em uma repressão ao direito de liberdade de manifestação e de liberdade de imprensa. No entanto, também deve-se considerar as implicações geradas aos particulares em razão dessa divulgação sem dimensão de dados que afligem diretamente os direitos de personalidade dos particulares e de suas famílias.

Ainda é possível entender que o Brasil, segundo pesquisadores da área, apesar do julgado do STF, não desprezou e não desconsiderou outras formas de aplicação do direito ao esquecimento, o que possibilitaria eventual reconhecimento desse direito, em oportunidade futura, em que se fosse discutida uma nova singularidade.

 


Referências bibliográficas
— ‌FLÁVIA TEIXEIRA ORTEGA. O que consiste o direito ao esquecimento? Jusbrasil. Disponível em: <https://draflaviaortega.jusbrasil.com.br/noticias/319988819/o-que-consiste-o-direito-ao-esquecimento>. Acesso em: 28 Feb. 2021.

— MACHADO, José. O direito ao esquecimento e os direitos da personalidade., Disponível em: <https://www.tjsp.jus.br/download/EPM/Publicacoes/ObrasJuridicas/cc13.pdf?d=636808306388603784>. Acesso em: 27 Feb. 2021.

— RECONDO, Felipe. As três correntes do direito ao esquecimento | JOTA Info. JOTA Info. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/as-tres-correntes-do-direito-ao-esquecimento-18062017>. Acesso em: 28 Feb. 2021.

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