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O direito do consumidor e o dano moral difuso

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8 de março de 2021, 11h28

O artigo 8º do Código de Defesa do Consumidor estatui expressamente que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, mas desde que o consumidor seja plena e adequadamente informado a respeito.

Outrossim, o artigo 10 do Código de Defesa do Consumidor proíbe taxativamente a colocação no mercado de consumo de produto que o fornecedor sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.

Nesse passo, em virtude dos princípios da segurança, da prevenção e da precaução adotados pelo artigo 8º do Código de Defesa do Consumidor, combinado com o princípio da transparência e do dever de informação eficiente ao consumidor (arts. 4º, caput, 6º, incisos II e III, 8º a 10 e 31, todos do CDC), a empresa deve demonstrar, por expressa disposição legal, que os produtos por ela expostos ao consumo, atendem as especificações técnicas exigidas pelos órgãos públicos competentes. Desse modo, eles seriam plenamente seguros e não seriam nocivos ou perigosos à vida e à saúde do consumidor, isto é, não causam nenhum risco à saúde ou incolumidade corporal do consumidor.

Ainda que o consumidor saiba dos riscos do uso de um produto, não se pode aceitar a sua colocação no mercado de consumo sem que siga as normas técnicas e, por isso, atente contra a sua saúde e segurança, em total desrespeito ao artigo 6º, inciso I do Código de Defesa do Consumidor.

O dever em indenizar o dano moral coletivo configura-se com as condutas ilícitas praticadas pelo fornecedor, em desrespeito aos princípios da informação e boa-fé, bem como dispositivos legais que norteiam as relações de consumo, expondo a risco a saúde e integridade do consumidor, difusamente considerado.

Na doutrina, há vários pronunciamentos pela pertinência e necessidade de reparação do dano moral coletivo.

JOSÉ ANTÔNIO REMÉDIO, JOSÉ FERNANDO SEIFARTH e JOSÉ JÚLIO LOZANO JÚNIOR1 informam a evolução doutrinária:

“Diversos são os doutrinadores que sufragam a essência da existência e reparabilidade do dano moral coletivo: Limongi França sustenta que é possível afirmar a existência de dano moral "à coletividade, como sucederia na hipótese de se destruir algum elemento do seu patrimônio histórico ou cultural, sem que se deva excluir, de outra parte, o referente ao seu patrimônio ecológico". Carlos Augusto de Assis também corrobora a posição de que é possível a existência de dano moral em relação à tutela de interesses difusos, indicando hipótese em que se poderia cogitar de pessoa jurídica pleiteando indenização por dano moral, como no caso de ser atingida toda uma categoria profissional, coletivamente falando, sem que fosse possível individualizar os lesados, caso em que seria conferida legitimidade ativa para a entidade representativa de classe pleitear indenização por dano moral. A sustentar e esclarecer seu posicionamento, aponta Carlos Augusto de Assis, a título de exemplo: "Imagine-se o caso de a classe dos advogados sofrer vigorosa campanha difamatória. Independente dos danos patrimoniais que podem se verificar (e que também seriam de difícil individualização) é quase certo que os advogados, de uma maneira geral, experimentariam penosa sensação de desgosto, por ver a profissão a que se dedicam desprestigiada. Seria de admitir que a entidade de classe (no caso, a Ordem dos Advogados do Brasil) pedisse indenização pelo dano moral sofrido pelos advogados considerados como um todo, a fim de evitar que este fique sem qualquer reparação em face da indeterminação das pessoas lesadas. Carlos Alberto Bittar Filho leciona: "quando se fala em dano moral coletivo, está-se fazendo menção ao fato de que o patrimônio valorativo de uma certa comunidade (maior ou menor), idealmente considerado, foi agredido de maneira absolutamente injustificável do ponto de vista jurídico".

Assim, tanto o dano moral coletivo indivisível (gerado por ofensa aos interesses difusos e coletivos de uma comunidade) como o divisível (gerado por ofensa aos interesses individuais homogêneos) ensejam reparação.

Doutrinariamente, citam-se como exemplos de dano moral coletivo aqueles lesivos a interesses difusos ou coletivos: "dano ambiental (que consiste na lesão ao equilíbrio ecológico, à qualidade de vida e à saúde da coletividade), a violação da honra de determinada comunidade (a negra, a judaica etc.) através de publicidade abusiva e o desrespeito à bandeira do País (o qual corporifica a bandeira nacional)”.

E não poderia ser diferente porque as relações jurídicas caminham para uma massificação e a lesão aos interesses de massa não podem ficar sem reparação, sob pena de criar-se litigiosidade contida que levará ao fracasso do Direito como forma de prevenir e reparar os conflitos sociais. A reparação civil segue em seu processo de evolução iniciado com a negação do direito à reparação do dano moral puro para a previsão de reparação de dano a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, ao lado do já consagrado direito à reparação pelo dano moral sofrido pelo indivíduo e pela pessoa jurídica (cf. Súmula 227/STJ).

Com efeito, “os direitos de personalidade manifestam-se como uma categoria histórica, por serem mutáveis no tempo e no espaço. O direito de personalidade é uma categoria que foi idealizada para satisfazer exigências da tutela da pessoa, que são determinadas pelas contínuas mutações das relações sociais, o que implica a sua conceituação como categoria apta a receber novas instâncias sociais”2.

Xisto Tiago de Medeiros Neto sintetiza os requisitos para configuração do dano moral coletivo:3:

“Em suma, pode-se elencar como pressupostos necessários à configuração do dano moral coletivo, de maneira a ensejar a sua respectiva reparação, (1) a conduta antijurídica (ação ou omissão) do agente, pessoa física ou jurídica; (2) a ofensa a interesses jurídicos fundamentais, de natureza extrapatrimonial, titularizados por uma determinada coletividade (comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas); (3) a intolerabilidade da ilicitude, diante da realidade apreendida e da sua repercussão social; (4) o nexo causal observado entre a conduta e o dano correspondente à violação do interesse coletivo (lato sensu)”4.

O dano moral extrapatrimonial deve ser averiguado de acordo com as características próprias aos interesses difusos e coletivos, distanciando-se quanto aos caracteres próprios das pessoas físicas que compõem determinada coletividade ou grupo determinado ou indeterminado de pessoas, sem olvidar que é a confluência dos valores individuais que dão singularidade ao valor coletivo. É evidente que uma coletividade de índios pode sofrer ofensa à honra, à sua dignidade, à sua boa reputação, à sua história, costumes e tradições. Isso não importa exigir que a coletividade sinta a dor, a repulsa, a indignação tal qual fosse um indivíduo isolado. Estas decorrem do sentimento coletivo de participar de determinado grupo ou coletividade, relacionando a própria individualidade à ideia do coletivo.

Dessa forma, estando presentes os pressupostos ao dever em indenizar o dano moral coletivo imposto: o ato (produto impróprio ao consumo, por exemplo), o resultado lesivo (ofensa aos interesses jurídicos titularizados pelos consumidores), a ofensa coletiva (intolerabilidade de ilicitude, diante da realidade dos fatos e sua repercussão social) e o nexo causal entre eles, caracteriza-se a responsabilidade objetiva do fornecedor.

Adotada a reparação pecuniária, a indenização deve corresponder a montante que represente advertência ao lesante e à sociedade de que, não se aceita o comportamento assumido ou o evento lesivo advindo. Consubstancia-se, portanto, em importância compatível com o vulto dos interesses em conflito, refletindo-se de modo expressivo no patrimônio do lesante, a fim de que sinta, efetivamente, a resposta da ordem jurídica aos efeitos do resultado dano produzido.

A respeito do assunto, SÉRGIO CAVALIERI FILHO5 ensina:

“Verificada a sua ocorrência, não pode o julgador fugir à responsabilidade de aplicar a lei, em toda a sua extensão e profundidade, com o rigor necessário, para restringir, e até eliminar, o proveito econômico obtido pelo fornecedor com a sua conduta ilícita. A previsão de indenização módicas ou simbólicas não pode ser incorporada à planilha de custos dos fornecedores, como risco de suas atividades. Há de imperar, no mercado de consumo, a ética na relação jurídica, a respeito do consumidor. Caso contrário, não que se falar em efetividade”.

Por certo, a fixação do quantum indenizatório fica ao arbítrio prudente do julgador, subjetivamente adotado. Em se tratando de dano extrapatrimonial coletivo, o Magistrado deve ainda levar em consideração, as características próprias aos direitos difusos, devendo a reparação imposta representar para a sociedade o reconhecimento aos seus valores essenciais, dentre eles a proteção ao consumidor e à dignidade da pessoa humana.

A jurisprudência reconhece o dano moral coletivo desatrelado da provocação de dor e sofrimento6.

O Supremo Tribunal de Justiça tem reconhecido que o dano moral coletivo resulta do fato em si, ou seja, é in re ipsa:

“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IRREGULARIDADES SANITÁRIAS. MULTAS APLICADAS EM PROCESSO ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE REINCIDÊNCIA NO COMETIMENTO DAS CONDUTAS IMPUTADAS AO ESTABELECIMENTO COMERCIAL. DANO MORAL E MATERIAL COLETIVO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE LESÃO AOS CONSUMIDORES. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. Mantém-se a sentença que julgou improcedente a Ação Civil Pública, porquanto não só as multas aplicadas no âmbito do processo administrativo foram suficientes para sanar as irregularidades identificadas, como também não restaram comprovados os alegados danos que teriam sido causados à coletividade. Vale transcrever o seguinte trecho do julgado: “Finalmente, em situações graves desse jaez, que põem em risco a saúde e a segurança da população, o dano moral coletivo independe de prova (damnum in re ipsa), conforme iterativa jurisprudência do STJ. Precedentes: AgInt no AREsp 1.251.059/DF, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, DJe 9/9/2019; AgInt noREsp 1.342.846/RS, Rel. Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, DJe 26/3/2019. É também a posição dos colegiados de Direito Privado: "Os danos morais coletivos configuram-se na própria prática ilícita, dispensam a prova de efetivo dano ou sofrimento da sociedade e se baseiam na responsabilidade de natureza objetiva, a qual dispensa a comprovação de culpa ou de dolo do agente lesivo, o que é justificado pelo fenômeno da socialização e coletivização dos direitos, típicos das lides de massa7.

Assim, o dano moral difuso corresponde a valores éticos indivisíveis da comunidade, os quais são desatrelados das pessoas que integram o grupo social quando consideradas individualmente.


Bibliografia

CAVALIERI FILHO, SÉRGIO. Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Atlas, 2008.

LEITE, JOSÉ RUBENS MORATO. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000.

MEDEIROS NETO, XISTO TIAGO DE. Dano moral coletivo. 2ª edição. São Paulo: LTr, 2007.

REMÉDIO, JOSÉ ANTÔNIO, JOSÉ FERNANDO SEIFARTH e JOSÉ JÚLIO LOZANO JÚNIOR. Dano moral. Doutrina, jurisprudência e legislação. São Paulo: Editora Saraiva. 2000.


1Dano moral. Doutrina, jurisprudência e legislação. São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 34-5

2JOSÉ RUBENS MORATO LEITE. Dano Ambiental. do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 287).

3Dano moral coletivo. 2ª ed. São Paulo: LTr, 2007, p. 121.

4Ibidem, p. 136.

5Programa de Direito do Consumidor. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 93.

6STJ, Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.413.621, Rel. Min. Francisco Falcão, j. em 06/05/2020.

7STJ, REsp 1.799.346/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, DJE 13/12/2019.

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