Opinião

A ADPF nº 779 e o embaralhamento entre plenitude e ampla defesa

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8 de março de 2021, 15h36

1) Introdução
O Partido Democrático Trabalhista (PDT) formalizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 779 objetivando dar interpretação conforme à Constituição aos artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65 do Código de Processo Penal com o fito de expurgar a tese da legítima defesa da honra e fixar entendimento acerca da soberania dos veredictos. Também pleiteia dar interpretação conforme à Constituição, "se esta Suprema Corte considerar necessário", ao artigo 483, III, e §2º do CPP. O relator, ministro Dias Toffoli, concedeu em 26 de fevereiro último liminar, ad referendum do Plenário, para assentar a inconstitucionalidade da legítima defesa da honra ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da proteção à vida e à igualdade de gênero, haja vista os artigos 1º, III e 5º, caput, da Carta de 1988, respectivamente, excluindo-a do âmbito do instituto da legítima defesa e, por conseguinte, obstando a sustentação da referida tese, ou de qualquer argumento que a ela possa remeter, direta ou indiretamente, pela defesa, nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento. O ministro Gilmar Mendes pronunciou-se no mesmo sentido do relator, mas, por paridade de armas, estendeu a proibição a todos os atores da persecução penal, e não apenas à defesa.

Permissa venia, mas os pronunciamentos lançados até o momento embaralham a plenitude e a ampla defesa, ao arrepio do artigo 5º, XXXIII, "a" e "c", da CRFB/88.

2) Plenitude de defesa  alcance e distinção em relação à ampla defesa
O Poder Constituinte originário trouxe, como regra, a ampla defesa (artigo 5º, LV) e, no Tribunal do Júri, a plenitude de defesa (artigo 5º, XXXVIII, "a"), logo, não são justapostas, sendo a última um plus em relação à primeira, conclusão que se extrai, de antemão, sob o ângulo semântico. Antes de evoluir, todavia, cumpre consignar: seja o direito de defesa amplo ou pleno, o exercício não pode, em hipótese alguma, veicular teses que rompam com os fundamentos do Estado democrático de Direito pátrio, como a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CRFB/88), nem tampouco com os seus objetivos, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a promoção do bem comum, sem qualquer sorte de discriminação (artigo 3º, I e IV da CRFB/88).

Registrada a advertência, defesa plena tem espectro maior do que defesa ampla: esta, porque oponível aos órgãos jurisdicionais em geral, norteados pela persuasão racional (artigo 93, IX, da CRFB/88), há de pautar-se, sempre, em um discurso jurídico, porque, caso se afaste da lei (em sentido amplo), da doutrina e/ou da jurisprudência, a tese defensiva sequer cognoscível pelo juízo será. Aquela, por outro lado, porque articulável ao Conselho de Sentença, guiado pela íntima convicção, consectário lógico da soberania dos veredictos (artigo 5º, XXXVIII, c da CRFB/88), comporta teses suprajurídicas, despidas de racionalidade jurídica. E assim o é em apreço à genuína razão de ser do Tribunal do Júri: como os crimes dolosos contra a vida são, em tese, passíveis de serem cometidos por qualquer do povo, que os sujeitos ativos sejam julgados pelos próprios pares, sujeitando-se não à justiça técnica, mas à popular.

Com efeito, crimes atentatórios ao patrimônio, à dignidade sexual, à Administração Pública pressupõem, em maior ou menor grau, certo desvio de personalidade — ânimo pelo ganho fácil, taras, menoscabo à coisa pública etc. O eventual afastamento da responsabilidade penal resolve-se tecnicamente, dentro do Direito, consideradas, por exemplo, a insignificância, elisiva da tipicidade material, ou o estado de necessidade, excludente da ilicitude. Da outra banda, embora voltados contra o bem jurídico de maior envergadura do ordenamento, os crimes dolosos contra a vida atraem, não raro, sujeitos ativos improváveis, de trajetórias até então irrepreensíveis, mas que acabam sucumbindo quando expostos a situações emocionais extremas, quadras essas indefensáveis juridicamente, mas defensáveis, sim, aos olhos do leigo. Daí o Poder Constituinte originário haver submetido tais imputações aos jurados, presente a plenitude de defesa, causa, e não consequência, do sistema da certeza moral do juiz. Porquanto sujeitos a condenações criminais com reprimendas consideráveis, que os próprios semelhantes digam se, efetivamente, fazem jus, ou não, a tais penas.

Sob uma visão estritamente jurídica, ao pai que, chegando à casa, depara-se com a filha recém estuprada e, após buscas nas cercanias, localiza o pretenso infrator e, mesmo já rendido, mata-o por asfixia, tomado por um misto de asco e ódio, sobraria responder por homicídio qualificado (artigo 121, §2º, III do CP) e privilegiado (artigo 121, §1º do CP), afinal, a rigor, implementou justiça penal privada. Ao policial militar em claro excesso doloso de legítima defesa igualmente só restaria o privilégio, descartado o excesso exculpante, pois, racionalmente, a natureza da profissão e o treinamento recebido exigiriam controle emocional mais rigoroso, pouco importando a falta de infraestrutura laboral, a exposição diuturna à violência urbana, o estresse emocional acumulado etc. À mulher que aborta logo no início da gestação, por não ter condições de prover a própria subsistência, inafastável seria o édito condenatório, dizendo-se o mesmo do pai ou da mãe que, angustiados com o sofrimento da filha, vítima de doença incurável, auxiliam-na a suicidar-se. Pois todos os casos acima, e tantos outros, podem, perante o Conselho de Sentença, desaguar em absolvições, graças à plenitude de defesa, invocando-se, de maneira bem amplificada, e, por isso, sem respaldo técnico-jurídico, a inexigibilidade de conduta diversa, excludente da culpabilidade, argumento que, sabidamente, é a porta larga para absolvições no Plenário do Júri, quando carente a racionalidade jurídica, inclusive nos crimes passionais — a clemência, ante a demora de décadas na formalização da persecução penal, deparando-se com um réu integralmente socializado, de sorte que eventual reprimenda cumpriria mister exclusivamente retributivo, sem viés educacional algum, resumindo-se à mera vingança estatal, é outro argumento suprajurídico corriqueiro no plenário do júri, a partir de uma dimensão superlativa do postulado da individualização da pena e dos fins perseguidos.

3) Legítima defesa da honra enquanto desserviço à defesa efetiva
O pedido veiculado na ADPF nº 779 a fim de eliminar a "legítima defesa da honra" do instituto da legítima defesa sequer merece conhecimento, porque assim já o é. Inexiste ofensa à honra, por mais vexatória que seja, a avalizar um homicídio, independentemente da identidade de gênero da vítima. A desproporção entre os bens jurídicos confrontados é inominável, a elidir, igualmente, a inexigibilidade de conduta diversa. Término algum de relacionamento, permeado ou não por traições, legitima matar o cônjuge, convivente, namorado(a) ou afins. Discursos defensivos misóginos, machistas não são minimamente cognoscíveis por juízes togados, por absoluta ausência de respaldo jurídico, e mostram-se fadados à rejeição pelo Conselho de Sentença, afinal, a sociedade brasileira não mais tolera esse tipo de violência. Sustentações de ódio às mulheres, submetendo-as à coisificação, sequer têm respaldo legal, pois uma das atribuições do juiz-presidente é dirigir os debates no plenário, intervindo em caso de abuso ou excesso de linguagem (artigo 497, III, do CPP), afinal, toda relação intersubjetiva, ainda mais a processual penal, há de primar pela urbanidade e respeito entre os envolvidos — nesse sentido, destaca-se o Enunciado nº 47 do Fonavid [1].

Nos casos ultimamente repercutidos pela mídia nacional, como o brutal e covarde feminicídio envolvendo magistrada fluminense, assassinada pelo consorte na frente das próprias filhas, inexiste campo para articular tese semelhante — se a defesa assim o fizer, será um desserviço ao próprio réu. Hoje, casos como o homicídio de Ângela Diniz por Raul Fernando do Amaral Street (Doca Street) demandam linha argumentativa diversa, desde eventual questionamento da higidez mental do imputado até discussões sobre o correto enquadramento do móvel criminoso (ciúme), buscando, por exemplo, eventual desclassificação para a modalidade simples. A seleção das teses defensivas com potencial exitoso parte dos próprios jurados e do histórico de veredictos — teses defensivas machistas há muito só os afastam —, logo, qualquer intervenção do STF no exercício do direito de defesa, que, no Plenário do Júri, é pleno, mostra-se inoportuna e desnecessária. Ademais, tolher a plenitude de defesa tampouco é remédio à redução dos feminicídios, porquanto a defesa apenas é acionada após a inauguração da persecução penal, ou seja, depois de cometido o crime, falecendo proporcionalidade à pretensão veiculada na ADPF, sob a ótica da adequação (utilidade). Se o objetivo é evitar tais práticas delitivas, as vias de combate são outras — incremento das redes de apoio à mulher e aos homens envolvidos em violência doméstica ou familiar, massificação da ressignificação do papel da mulher nas escolas etc.

4) Vedação à legitima defesa da honra como instrumento cerceador da plenitude de defesa em casos sem misoginia nem machismo como pano de fundo
Como as manifestações do relator da ADPF, ministro Dias Toffoli, e do ministro Gilmar Mendes, foram no sentido de bloquear, no plenário do júri, sob pena de nulidade absoluta, a legítima defesa da honra como tese defensiva, ou qualquer outra correlata, as demandas dolosas contra a vida cujo móvel for o ciúme terão como tetoargumentativo o privilégio (artigo 121, §1º do CP), mesmo passando ao largo de qualquer discurso misógino, de coisificação feminina. Imagine, v.g., a mulher, arrimo de família, que, chegando mais cedo do trabalho, surpreende o esposo no leito conjugal com a amante e, diante da repugnância e decepção despertadas pela cena, perde as estribeiras e o mata. Ou a mulher que, sob um relacionamento abusivo, no calor de mais uma entre tantas discussões com o companheiro, potencializadas pela miserabilidade, porque nenhum dos dois tem ganhos para sustentar uma morada para si, daí continuarem a residir sob o mesmo teto (quadra, lamentavelmente, comuníssima), investe contra ele, desferindo golpe de faca fatal na jugular, ao ouvi-lo chamá-la de "lixo", "traste", "por isso saio, mesmo, com outras para me satisfazer". Em ambos os casos o ciúme surge, sim, como móvel dos homicídios, mas, por óbvio, sem qualquer conotação machista. Como, então, tolher a defesa de buscar, no plenário do júri, a absolvição com lastro na inexigibilidade de conduta diversa? O móvel não foi o sentimento de posse nutrido pela denunciada em relação à vítima, mas vários outros componentes em reforço — decepção, surpresa, humilhação, extravasamento do limite de tolerância aos abusos sofridos etc. Ademais, as situações ora descritas, embora com frequência menor, igualmente podem ser experimentadas pelo homem, hipóteses nas quais a sua reação desmedida tampouco será creditada à misoginia. Ante a identidade de razões, se a plenitude de defesa, considerada a ré, permitirá buscar a absolvição, não há de ser diverso no tocante ao réu, em virtude da isonomia (artigo 5º, caput, da CRFB/88).

Pois se a liminar concedida pelo ministro Dias Toffoli for ratificada pelo Plenário, cerceamentos à plenitude de defesa existirão pelo simples fato de o ciúme ser um dos móveis, mesmo passando a argumentação defensiva ao largo de qualquer vetor machista ou misógino. Eventual distinção — distinguishing — à orientação firmada pelo STF será de elaboração dificílima, para não escrever impossível, afinal, exigirá reexame fático, esbarrando na via afunilada representada pelos recursos especial e extraordinário. E mesmo o Habeas Corpus será uma via de adequação tormentosa, considerados os limites cognitivos mais estreitos, tampouco admitindo dilação probatória. A procedência do pedido formulado na ADPF nº 779 trará mais malefícios do que benefícios, sem atender à proporcionalidade em sentido estrito — a consolidação do respeito à mulher e à sua dignidade não precisa passar pelo cerceamento à plenitude de defesa, reduzindo-a à ampla defesa.

5) Conclusões
A dita "legítima defesa da honra" não precisa ser expurgada do instituto legítima defesa, porque não a consubstancia. A desproporção entre os bens jurídicos em confronto a elide não só enquanto excludente da ilicitude, mas como hipotética inexigibilidade de conduta diversa. Destarte, o pedido veiculada na ADPF nº 779 sequer merece conhecimento nesse aspecto. E, por ser despida de qualquer racionalidade jurídica, jamais foi, é nem será argumentação disponível ao juiz, ao Ministério Público nem à autoridade policial, por serem órgãos norteados pelo princípio do livre convencimento motivado, haja vista, respectivamente, os artigos 93, IX e 129, VIII, 2ª parte, ambos da CRFB/88, e artigo 2º, caput e §6º da Lei nº 12.830/13. A proposta do ministro Gilmar Mendes, estendendo-lhes a vedação argumentativa, sob o pretexto de assegurar a paridade de armas, só repete o constante na Carta Maior e na legislação.

Discursos de ódio e de desrespeito à vítima não têm vez no Plenário do Júri, haja vista o artigo 497, III, do CPP, reforçado pelo Enunciado nº 47 do Fonavid. E teses absolutórias de cunho misógino são desaconselháveis à defesa, porque enfrentam natural repulsa social — os jurados, antes de juízes leigos, além da identidade de gênero, têm filhas, netas, sobrinhas, enteadas, logo, qualquer discurso machista será muito mal recebido. Ante a seleção promovida pelo Conselho de Sentença, qualquer restrição à plenitude de defesa desveste-se de proporcionalidade, sob o ângulo da adequação (utilidade), mesmo porque despida de viés preventivo — quando sobrevier a necessidade de movimentar a defesa técnica, é porque a violência contra a mulher já foi cometida.

Todo crime é a cena de um filme, existindo um antes e um depois. Julga-se uma fotografia. Homicídio cujo móvel seja o ciúme, a depender das circunstâncias, nem sempre encerra misoginia, machismo. Tal associação não é automática, comportando n variantes que não necessariamente se enquadram na dita "legítima defesa da honra", porquanto presentes independentemente da identidade de gênero e da orientação sexual dos (as) envolvidos(as). Tanto isso é verdade que o comportamento da vítima é uma das circunstâncias judiciais integrantes do artigo 59 do CP. Descabe sustentações atentatórias à dignidade (ou memória) da(o) lesada(o), mas, para bem compreender a cena desse filme, e melhor julgar, não há como abstrair suas ações, seus feitos, sejam eles bons ou maus, incorrendo em indesejável e falacioso maniqueísmo. Heróis e vilões integram os contos de fadas. No mundo real temos anti-heróis, conforme bem advertiu Mário de Andrade em Macunaíma. Demonstrar tais distinções, entretanto, esbarra na via afunilada dos recursos especial e extraordinário, e nos limites cognitivos mais estreitos do Habeas Corpus, sem contar os robôs utilizados no juízo de admissibilidade dessas impugnações, que seguramente, no tangente ao tema, terão "ciúme" como uma das "palavras-chave". Impõe-se cerceamento ao direito de defesa que, por mandamento constitucional (cláusula pétrea, registre-se), é pleno, rebaixando-o à ampla defesa. Embaralham-se os incisos XXXVIII, "a", e LV do artigo 5º da CRFB/88. Inexiste custo/benefício (proporcionalidade em sentido estrito) a justificar tal proceder, motivo pelo qual a pretensão veiculada na ADPF nº 779 sequer merece conhecimento. Ou, se enfrentada, há de ser julgada improcedente.

 


[1] A plenitude da defesa no júri deve se conformar ao disposto no art. 7o, “e”, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher “Convenção de Belém do Pará” e ao disposto no capítulo IX itens 9.1.2 e 9.1.3 das Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres – Feminicídio, sendo recomendável ao(à) Juiz(a) Presidente considerar como excesso de linguagem argumentos violentos ofensivos à dignidade da mulher por questão de gênero, devendo intervir nos termos do art. 497, III, do CPP e art. 10-A da Lei 11.340/06. (APROVADO NO X FONAVID – Recife).

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