Opinião

Quando se tranca a porta e se escancara a janela: a censura à plenitude de defesa

Autor

  • Andre Esteves de Andrade

    é defensor público do Estado do Rio Grande do Sul desde 2012 com atuações em Defensorias Públicas especializadas criminais e participação itinerante em plenários do júri em diversas comarcas pós-graduado em Direito e professor de Direito Penal e Processo Penal da Fundação Escola da Defensoria Pública desde 2015.

8 de março de 2021, 6h04

Não se discute a carga preconceituosa da tese da legitima defesa da honra nos casos em que se defende o afastamento da ilicitude de condutas típicas contra mulheres em razão de adultério ou comportamento contrário a suposta moral da sociedade. Com efeito, trata-se de posicionamento absolutamente violador dos mais basilares valores constitucionais, como dignidade da pessoa humana, igualdade de gênero e a liberdade. Mais consentâneo a estes valores seria a construção de uma comunidade em que não seria possível, jamais, que tal tese fosse socialmente aceita, a tal ponto que nenhum jurista a apresentaria em plenário, uma vez que absolutamente contraproducente e até constrangedor.

Tal raciocínio incontestável está presente na decisão do ministro Dias Toffoli, ao deferir liminar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 779/DF, aduzindo que a tese de legítima defesa da honra é inconstitucional. Proibiu, ainda, que a defesa a sustente, direta ou indiretamente, na persecução penal, seja na fase pré-processual ou processual, inclusive perante o tribunal do júri [1].

Veja bem, é necessário repetir. Não foi somente a legítima defesa da honra que foi considerada inconstitucional. Foi a tese defensiva! O que foi obstado não foi a aceitação da tese pelo juiz, mas, sim, o próprio direito de alegação pelo defensor. Com a devida vênia, desconhece-se hipótese em que ministro da Suprema Corte tolheu de forma tão evidente e direta o direito de a defesa utilizar a argumentação que entende suficiente para bem exercer sua função.

Por isso, a concordância com a decisão vai somente até a análise de que a utilização do atuar "escandaloso" da vítima para justificar feminicídio e outras agressões é "odioso, desumano e cruel". Daí a se vedar, de forma abstrata e imprecisa, qualquer alusão ao comportamento da vítima como causa de exclusão de ilicitude, vai distância considerável.

Primeiramente, aponta-se a incorreção da argumentação no sentido de que é atécnica a legitima defesa da honra. Não, não é. Isso porque a honra, como qualquer bem jurídico, pode ser protegido de atual ou iminente agressão injusta, nos exatos termos do artigo 25 do CP [2]. Fácil visualizar concretamente tal situação, bastando que uma ofensa seja realizada por meio de um cartaz, pendurado pelo autor no muro de sua residência. Por acaso não poderia a vítima, em ato claro de legítima defesa, retirar o cartaz, ou estaria incidindo no crime de dano ou mesmo exercício arbitrário das próprias razões? Se alguém está com um megafone em frente a minha casa, proferindo injúrias, porventura não é lícito ir até ele e arrancar o instrumento de sua mão? Sendo as ofensas relacionadas a traição, haveria aqui a impossibilidade técnica de minha honra ser defendida pelo instituto da legítima defesa, tal qual consta na liminar, que possui comando absolutamente amplo? Atécnica aqui, se me permite, foi a conclusão da decisão.

A grande questão não é se a honra permite ou não a legitima defesa; o pulo do gato é saber se a injusta agressão atual ou iminente foi repelida pelo uso moderado dos meios necessários. Obviamente, não há tal relação de proporcionalidade entre uma traição e um feminicídio, sendo inclusive discutível se um adultério representa uma "agressão". A análise, assim, não é em abstrato do cabimento da legítima defesa, mas, sim, da análise, no caso concreto, da presença dos requisitos necessários para tanto.

Não falamos, ainda, nas constitucionais garantias da ampla defesa (para os acusados em geral) ou em plenitude de defesa (para os acusados no Tribunal do Júri), mas o faremos, em quase autêntica e, acreditamos, técnica legítima defesa. Mais basilar análise de um Estado constitucional de Direito passa pela importância do direito de defesa do indivíduo, que deve ser amplo, até para legitimar a aplicação da sanção. O Direito no processo penal se desdobra em defesa técnica e autodefesa. No campo da defesa técnica, possui o advogado diversas prerrogativas legais que permitem a livre execução de suas funções, inclusive a imunidade profissional prevista no artigo 7º, §2º, da Lei nº 8.906/94, não constituindo injúria ou difamação qualquer manifestação no exercício de sua atividade, no juízo ou fora dele [3]. O objetivo do ordenamento jurídico é claro: dar total liberdade à exposição de pensamento do advogado, na medida necessária para o exercício da atividade. Se é assim para a ampla defesa, que dirá para a plenitude de defesa resguardada ao Tribunal do Júri, em que cabem não só argumentos jurídicos, mas extrajurídicos, conforme consta na própria decisão ora analisada [4]. Guilherme de Souza Nucci, ao comparar os dois institutos, diz que "amplo quer dizer vasto, largo, muito grande, rico, abundante, copioso; pleno significa repleto, completo, absoluto, cabal, perfeito. O segundo é, evidentemente, mais forte que o primeiro" [5].

Na decisão do ministro Dias Toffoli, no entanto, não há amplitude e nem plenitude. É evidente que o direito de defesa não é absoluto (nenhum é), não podendo ser aceitas, por exemplo, claras agressões transmutadas de prerrogativas. Não é esse o caso em exame, já que a malfadada legítima defesa da honra é utilizada na exata medida que o defensor entende eficaz para bem exercer o encargo. Em realidade, a decisão realiza censura ao direito de defesa, e uma censura absolutamente vaga e ampla. Está inviabilizada pela decisão qualquer alusão ao comportamento da vítima? (comportamento este que é circunstância judicial aferível para a pena-base, nos termos do artigo 59 do CP). Acaso não será possível apontar o fato de a vítima ter publicizado de forma absolutamente ostensiva traição ao réu, com o objetivo de humilhá-lo, por exemplo, no ambiente de trabalho ou no seio familiar, não como excludente de ilicitude, mas como causa de diminuição de pena do chamado homicídio privilegiado (ou mesmo para a atenuante da violenta emoção)? Não é possível entender, sob o prisma de isonomia, que tais circunstâncias não devem ser levadas em conta ou mesmo conhecidas pelo julgador.

E quanto à autodefesa, o que temos? Está o acusado proibido de fazer alusão ao comportamento da vítima, tentando justificar sua ação? Imagine a cena: réu, no interrogatório, começa a explicar a traição sofrida, quando o juiz imediatamente o interrompe, dizendo: "Tal argumentação é inconstitucional, senhor acusado. Nenhuma palavra sobre o assunto!".

Censura também existe quanto ao próprio Conselho de Sentença, ofendendo o constitucional princípio da soberania dos veredictos. Retira o ministro não a possibilidade de decisão dos jurados (já que a decisão é imotivada), mas o próprio conhecimento acerca do fato que vão julgar. Aponta-se que a decisão não permite sequer que a tese seja levantada de forma indireta. Aplicada a ferro e a fogo, não permitirá nem mesmo que o defensor narre a situação que o acusado entendeu como ofensiva à sua honra, chegando-se ao absurdo de ser proibido levar ao conhecimento do julgador (supostamente soberano) circunstâncias fáticas ligadas a causa. Talvez nem no livro "1984" George Orwell tenha encontrado exemplo tão claro de censura.

O entendimento, inclusive, pode servir de enorme paradigma para tolher da defesa outras teses consideradas perniciosas, como o próprio homicídio realizado na atividade de vigilante (possivelmente realizado em legitima defesa ou podendo configurar relevante valor social), tese tão violadora da dignidade da pessoa humana quanto da legítima defesa da honra, embora também aceita por parte da sociedade.

É evidente que a decisão do ministro é uma resposta ao entendimento recentemente manifestado pela maioria das 1° e 2° Turmas do STF, pelo não cabimento de recurso quanto à absolvição do quesito genérico, uma vez que não é possível sindicar o motivo da decisão dos jurados [6]. Esse é o pensamento, inclusive, do próprio ministro Dias Toffoli, que parece querer compensar a situação de não cabimento de recurso com a vedação à dedução da tese de legítima defesa da honra.

Não parece ser essa, no entanto, a melhor opção, já que não é possível neutralizar garantias e direitos constitucionais para proteger outros. Incabível, como fez o ministro, trancar bem a porta, mas escancarar a janela.

 


[1] Pelo exposto, concedo parcialmente a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário, para:
) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigo 5º, caput, da CF);
2) conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência,
3) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o tribunal do júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

[2] Artigo 25  Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

[3] O artigo 142 do CP também exclui o crime de injúria ou difamação pela ofensa irrogada em juízo pela parte ou por seu procurador, 

[4] Ministro Dias Toffoli: "'Legítima defesa da honra' não é, tecnicamente, legítima defesa. Tanto é assim que tem sido mais frequentemente utilizada no contexto do tribunal do júri, no qual, em virtude da plenitude da defesa (artigo 5º, inciso XXXVIII, da Constituição de 1988), admite-se a utilização de argumentos jurídicos e extrajurídicos".

[5] Guilherme de Souza Nucci, Curso de Direito Processual Penal, 17ª edição.

[6] HC 185068, HC 178777 e RHCs 192431 e 192432. A questão está com repercussão geral reconhecida no ARE 1225185 RG, e será enfrentada pelo pleno do STF.

Autores

  • é defensor público do Estado do Rio Grande do Sul desde 2012, com atuações em Defensorias Públicas especializadas criminais e participação itinerante em plenários do júri em diversas comarcas, pós-graduado em Direito e professor de Direito Penal e Processo Penal da Fundação Escola da Defensoria Pública desde 2015.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!