Segunda leitura

A aposentadoria de Nefi Cordeiro no STJ, magistratura e tempo

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

7 de março de 2021, 8h00

Spacca
No dia 2 passado, em meio a uma sessão virtual da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, o ministro Nefi Cordeiro anunciou ter requerido a sua aposentadoria. A intenção de alguém aposentar-se é manifestada diariamente em milhares de locais, seja em órgãos públicos, seja na iniciativa privada. Todavia, por tratar-se de um tribunal superior, cujo acesso é muito disputado, causou enorme surpresa.

Tão logo se divulgou o fato, inúmeras conjecturas começaram a ser veiculadas. Ninguém costuma sair voluntariamente do STJ, regra geral aguarda-se a idade limite de 75 anos. A frase de Nefi Cordeiro, "A vida nos leva a contínuos momentos de repensar" perante seus colegas da 6ª Turma era muito enigmática. Versões diversas foram aventadas.

Mas, afinal, pouco importa o ou os motivos, o que interessa é o que isto representa para a Corte e para o Brasil. Este é o ponto.

Nefi Cordeiro tem o seu currículo exposto no site do STJ1 e uma rápida leitura permitirá que se vislumbre uma vida de contínuos sucessos, preocupação com os estudos e comprometimento com a magistratura.

Contínuos sucessos porque, após cursar a Academia da Polícia Militar do Paraná e tornar-se Oficial, cursou Direito e, um ano depois de graduado (1988), foi aprovado em concurso para Promotor de Justiça em 1º lugar (1989). Um ano depois foi aprovado no certame para juiz de Direito em 3º lugar. Dois anos depois foi o 1º colocado no concurso para juiz Federal Substituto da 4ª. Região. Dez anos depois foi promovido a desembargador federal e, mais 12 anos (2014), ministro do STJ.

Os estudos nunca saíram de sua rotina. Mestrado em Direito Público (1995) e doutorado em Direito das Relações Sociais (2000), ambos pela UFPR. Professor em diversas universidades, atualmente docente da graduação e mestrado da Universidade Católica de Brasília. Fora das amarras do Direito, graduou-se em Engenharia Civil em 1998. Dezenas de trabalhos jurídicos, culminando pela publicação de livro sobre o importante tema da colaboração premiada.2

Comprometimento com a magistratura. A leitura de seu CV mostrará uma vida profissional participativa na primeira instância (e.g., diretor do foro da Justiça Federal no PR), no TRF4 (p. ex., presidindo banca de concurso para juiz federal substituto) e no STJ (v.g., instrutor em cursos de conciliação da ENFAM).

Bem, mas tudo isto de nada serviria se sua inteligência superior fosse usada para alcançar benefício pessoal, divulgação de sua imagem ou interesses escusos. Absolutamente, não. E aí o ponto que a mim parece o mais importante. Nefi Cordeiro sempre agiu baseado na sua crença do justo. Cordial no trato, ainda assim jamais se deixou influenciar por terceiros, zelando cuidadosamente por seu direito de pensar e decidir de forma independente.

Do juiz, lembra Nalini, se exige que seja forte e destemido e nunca deixe de tomar posição.3 Assim foi Nefi Cordeiro, porém seguindo as lições do magistrado francês Garapon, para quem o juiz deve ser “uma personagem refletida, que ouve, aconselha, delibera e necessita ter o seu tempo”.4

Mas foi além. Narrarei quatro passagens no TRF4, onde fomos colegas. As ações na rotina forense, por vezes, dizem muito mais do que os currículos. Estes são o ornamento, a fachada. Aquelas são o interior, a personalidade, o caráter. É no dia a dia que se sabe quem é quem. Vejamos.

  1. Em 2004, em mandado de segurança impetrado por um desembargador que respondia uma sindicância, portanto um colega, Nefi Cordeiro, ainda novo na Corte Regional, votou pela denegação da ordem, ficando vencido. Demonstrou coragem e independência, pois, como é evidente, não é uma tarefa fácil investigar ou processar os iguais.

  2. Quando na presidência do Regional, criei o “Dia do Serviço Voluntário” em toda a região. Como o nome diz, só iam os que queriam. Nefi Cordeiro foi o único homem a oferecer-se para visitar um abrigo de crianças abandonadas. Sabidamente, tal atividade é exercida quase que exclusivamente por mulheres. Nefi, único homem naquela tarde, foi presença marcante. Os pequenos, com a percepção e sensibilidade das crianças, intuíram seu amor. Atraídos por seu carisma e pela imagem paterna de que tanto necessitavam, cercaram-no em roda por horas. E assim passaram momentos de felicidade.

  3. O terceiro exemplo está ligado à sua faceta tecnológica, já que é também engenheiro civil. Por sua iniciativa, em 2006 o TRF4 instalou de forma pioneira a possibilidade de sustentação oral através de vídeo conferência. Aquilo que hoje é uma rotina, naquele distante ano tornou-se uma realidade, poupando custosas viagens a Porto Alegre de advogados catarinenses, paranaenses e até do interior do Rio Grande do Sul. A atitude mostrou abertura para os novos tempos, necessidade de o Judiciário aderir às transformações.

  4. No ano de 2007 o CNJ baixou a Resolução 34, segundo a qual os juízes deveriam compatibilizar horários de magistratura e magistério superior, ou seja, não poderiam dar aulas no regime de 40 aulas semanais, porque seria impossível conciliá-las com a obrigação de estar no Foro. Nefi, à época contratado por uma Faculdade de Direito, imediatamente rescindiu seu contrato, demonstrando respeito à decisão do órgão condutor da administração judiciária.

Tais exemplos mostram muito da pessoa do ministro que sai da Corte Superior e, com 57 anos de idade, tem muitos planos a realizar.

Pois bem, ao fim e ao cabo, o que realmente importa é bem exercer a magistratura durante o tempo em que é ela exercida. Ficar até a idade limite não é mérito, ainda que muitas vezes possa sê-lo.

Juízes apaixonados pela função podem aguardar a compulsória e prestar excelente serviço à sociedade. Todavia, a espera da idade limite, em outras situações, pode ser apenas o desejo de continuar em um cargo de poder, com medo do ostracismo da aposentadoria. Há casos em que doenças surgem, incluindo perda de memória, e o magistrado adia a decisão final, agarrado ao poder como um náufrago à tabua de salvação, constrangendo os seus colegas e as partes que veem seus casos em mãos inseguras.

Nefi Cordeiro, inquestionavelmente, exerceu as suas funções em plenitude, deu de si o melhor e, por decisão que revela desprendimento e confiança em si próprio, deixa o honroso cargo que ocupa para lançar-se a novas conquistas. Com certeza terá o mesmo sucesso experimentado na vida judiciária. Por tudo o que fez, merece. E o STJ certamente saberá selecionar alguém à altura do ministro que sai.


1 STJ, Ministros em atividade. Disponível em: https://www.stj.jus.br/web/verCurriculoMinistro?parametro=1&cod_matriculamin=0001224&aplicacao=ministros.ativos. Acesso em 6/3/2021.

2 CORDEIRO, Nefi. Colaboração Premiada – Caracteres, limites e controle. Ed. Forense, 2019.

3 NALINI, José Renato. A rebelião da toga. Campinas, Millennium, 2006, pgs. 282-3.

4 GARAPON, Antoine. Bem julgar. Ensaio sobre o ritual judiciário. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 98.

Autores

  • Brave

    é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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