Processo familiar

Herdeiros carentes de vítimas de crimes são famílias desprotegidas

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

7 de março de 2021, 8h02

A recente Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 62) distribuída no último dia 1º, perante o Supremo Tribunal Federal, pela Procuradoria-Geral da República, ao pretender a regulamentação do art. 245 da Constituição Federal [1] para dispor sobre hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crimes dolosos, ensejará, por certo e finalmente, em nosso ordenamento jurídico, a presença ativa do Estado em tutela integral das famílias até agora desprotegidas.

De fato, a omissão legislativa tem constituído o Estado em mora continuada, ao fim e ao cabo de trinta e dois anos de uma Carta Constitucional consagrada como “Constituição Cidadã”, em descompasso temporal flagrante e extravagante. De igual modo, do seu art. 5º, inciso LXXI, cujo instituto do Mandado de Injunção somente veio ser regulamentado pela Lei nº 13.300/2016, ou seja, vinte e oito anos depois.

Em idêntico exemplo da injunção a ser concedida “sempre que a falta de uma norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania”, os direitos de herdeiros carentes de vítimas de crimes estão sendo protraídos e violados em seu exercício, por indisfarçável omissão do Estado. Enquanto isso, milhares de famílias privadas repentinamente da subsistência por morte dos seus provedores, constituídas por órfãos, herdeiros e outros dependentes carentes, padecem, diariamente, de uma tragédia silenciosa de desassistência social.

A ADO 62 surge, agora, como instrumento de eficiência ao ditado constitucional, para concitar o Congresso Nacional a adotar medidas que tornem efetivos os comandos do art. 245 da CF, importando significativo acentuar, no epicentro da omissão, definir a exata latitude do normativo, diante da assistência social programada aos herdeiros carentes.

Filhos menores, v.g., que perdem suas mães, na conta criminal dos feminicídios, são herdeiros também carentes da proteção materna, a exigir uma presença intensiva de cuidadoras ou assistentes (mães sociais) destinadas, psicanaliticamente, a substituir o elo perdido. O significado “carência” não deverá, portanto, ser limitado ou subsumido ao mero conteúdo econômico e a lei assim cuidará de dispor, em coerência.

De outro lado, a vitimização indireta (por “ricochete”) da criminalidade servirá, na abrangência adequada, situar com precisão jurídica, a edição dos Direitos do Cuidado, que atenderão contemplar, com melhor concretude, a intenção constitucional. Com a regulamentação necessária, será possibilitada, igualmente, a urgente inserção de direitos vitimológicos na esfera dos próprios direitos fundamentais. Aliás, em interessante estudo sobre “A Vítima e o Direito Penal”, Ana Sofia Schmidt de Oliveira [2], citando Cançado Trindade ao tratar do “Direito dos Direitos Humanos”, em defesa dos “ostensivamente mais fracos”, evoca:

“É o direito de proteção dos mais fracos e vulneráveis, cujos avanços em sua evolução histórica se tem devido em grande parte à mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de dominação, exclusão e repressão. Neste domínio de proteção, as normas jurídicas são interpretadas e aplicadas tendo sempre presentes as necessidades prementes de proteção das supostas vítimas”.

Inegavelmente, a provocação da ADO 62, representa valioso impulso ao fortalecimento do movimento vitimológico, surgido na década de 1970 (Mendelsohn, 1976) [3] tratado adiante nos estudos de Antônio Garcia-Pablos de Molina e, sobremodo, sob os impulsos da precursora criminologia (Garófalo, 1885) [4]; de modo a contribuir para uma mais moderna e desejada doutrina da vítima.

Pois bem. Na peça inicial, de expressivo conteúdo em suas trinta páginas [5], o Procurador-Geral da República Antônio Augusto Brandão de Aras, antes de mais, situa a inércia governamental com a lição clássica do Min. Celso de Mello, quando evidenciada a violação negativa: “Desse ‘non facere’ ou ‘nonpraestare’, resultará a inconstitucionalidade por omissão, que pode ser total, quando é nenhuma a providência adotada, ou parcial, quando é insuficiente a medida efetivada pelo Poder Público. (…). (ADI 1.458-MC/DF).

Induvidoso, aqui, o Estado inoperante, ao tempo que se abstém de medidas necessárias à realização concreta dos preceitos constitucionais, deixando de “cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impõe”. No ponto, incontroverso o “nexo etiológico entre a lacuna e o bloqueio de direitos”, a inicial da ADO 62 aponta, com precisão a estilete, a consagrada advertência do constitucionalista Walber de Moura Agra [6] quando assevera:

“O texto originário da Constituição Cidadã de 1988 poderia ser classificado como o de uma Constituição dirigente, em que o Estado intervém em vários setores da sociedade para garantir condições mínimas aos hipossufcientes. O maior problema que atinge esse tipo de texto constitucional em países periféricos é a baixa eficácia de seus dispositivos normativos, o que acarreta descrédito com relação à sua força normativa e, consequentemente, enfraquece o sistema constitucional. Grande parte dos mandamentos constitucionais da Carta de 1988 encontra-se, ainda hoje, destituída de eficácia, servindo apenas como valor retórico para garantir o poder do status quo”. (Agra, 2019)

Não há negar que essa advertência continua válida e permanente, devendo servir de escopo político para uma urgente crítica do Legislativo, autor da Carta Magna, no sentido de dar-lhe inteira eficácia, em proteção da cidadania, ainda não integral em seus direitos, devendo esta ser a pauta congressual mais imediata, a do direito dos vulneráveis e a dos direitos das famílias desprotegidas.

A esse propósito, salientou Augusto Aras, diante da inércia de deliberações legislativas, que “no caso concreto, a omissão inconstitucional encontra-se na falta de norma regulamentadora do art. 245 da Constituição, que torna inviável aos herdeiros e pessoas carentes dependentes de vítimas de crimes dolosos o exercício do direito constitucional à assistência social, conspurcando a sobrevivência, o mínimo existencial, a dignidade humana e a proteção da família”.

Ora bem. Dignidade humana e a proteção da família, no mínimo existencial que sirva eficiente aos dois princípios, tornam-se ingentes em perseverança que orienta os próprios fins da representação popular em mandatos legislativos, o de o povo conferir aos seus representantes no parlamento o poder-dever de legislar sempre em favor dele (repita-se, da cidadania). Poder-dever impostergável, o que mais fortalece, nos dias presentes, o controle de inconstitucionalidade por omissão.

Retorna Aras:

“Ocorre que, no caso em análise, a Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, já expressava uma lacuna a ser preenchida pelo legislador, ao estabelecer, no seu art. 245, o dever do Estado de minimizar os efeitos causados por crimes dolosos aos herdeiros e dependentes das vítimas em situação de vulnerabilidade. Decorridos mais de 30 (trinta) anos, tal lacuna ainda não foi preenchida, caracterizando um estado de mora inconstitucional. Em outras palavras, a inertia deliberandi”.

Poder-se-á admitir, de conseguinte, que o Estado Democrático de Direito jamais não se materializa, a bom termo, com pessoas vulneráveis não protegidas pelo Estado.

Em ser assim, ganha maior relevo a teoria da omissão inconstitucional, a partir das doutrinas de renomados constitucionalistas como a do citado Walber Agra, de Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni e de Daniel Mitidiero, e de Uadi Lammêgo Bulos [7], tudo a ensejar novos mecanismos de participação popular em afirmação do constitucionalismo democrático. De fato, é necessário, como assinalou Carlos Ayres de Brito, “tirar o povo da plateia para colocá-lo no palco das decisões que lhe digam respeito” (ADPF n. 130, j. em 30.04.2009, do relatório, p. 46).

Bem a propósito, a ideia de uma sociedade aberta de intérpretes, defendida por Peter Häberle, o jurista alemão criador do instituto do “amicus curiae”, pode ser bem traduzida por uma sua expressão lapidar: “Constituição é declaração de amor ao país” [8].

Não há negar, portanto que, no caso em tela, provocado pela ADO 62, um urgente processo de “escuta participativa” permitirá, afinal, que para a Constituição amar, de fato, o seu país, sejam efetivadas as garantias por ela prometidas; com a cura da mora de muitas omissões da lei, a conferir aplicabilidade plena dos preceitos constitucionais.

Em seu “Manual do Controle Concentrado de Inconstitucionalidade por Omissão. Inovações Participativas”, Erik Kirk indica, com muita atualidade e acerto, um novo modelo de trabalho sobre as omissões constitucionais, com a proposta de colmatação democrática das lacunas, pelos mecanismos de maior participação social e de uma eficiente resposta às omissões, sob “a teoria dos diálogos institucionais” que possibilitem, afinal, com grupos permanentes de trabalho, as reais soluções adequadas.

Torna-se imperativo que assim seja. Nesse passo, uma metodologia regulamentatória do referido preceito constitucional se impõe em seu amplo espectro, a partir do próprio conceito de vítima. Define-se como vítima a pessoa que, individual ou coletivamente tenha sofrido prejuízo (Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder/ONU, Resolução 40/34, 29.11.1985) ou, ainda, “todas as pessoas que de alguma forma foram afetadas e sofreram consequências de determinada conduta” (Corte Interamericana de Direitos Humanos).

Neste cenário, a proposição da ADO 62 é percuciente, ao sublinhar expressamente que “fala-se, portanto, em vítimas diretas, quais sejam, aquelas que sofrem diretamente os resultados lesivos da prática delitiva. Noutra ponta, a referência a vítimas indiretas designa aqueles que não são titulares do bem jurídico lesado, mas que, mesmo assim, se sujeitam às consequências do dano anterior.” Ou mais precisamente, o termo "vítima" inclui, também, conforme o caso, a família próxima ou as pessoas a cargo da vítima direta e as pessoas que tenham sofrido um prejuízo ao intervirem para prestar assistência às vítimas em situação de carência ou para impedir a vitimização” (Anexo, A-2, da Resolução 40/34-ONU)

Com tal preciso alcance eis, portanto, o determinado pelo art. 245 da Constituição Federal.

Mas não é só. Cumpre referir ao desiderato da ADO 62 que se torna, em termos legislativos, necessário conferir com maior sentido finalístico, uma teoria das vulnerabilidades que possa ser aplicada às figuras jurídicas dos denominados “herdeiros e dependentes carentes” em face das pessoas vitimadas pela atual elevada criminalidade.

É justamente, por isso, que no tema agora levado ao Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, as discussões terão de ser abrangentes a identificar todas as hipóteses e elencar as condições ideais de assistência do Estado.

O desamparo das vítimas e de seus familiares deve ser avaliado sob a égide dos direitos fundamentais, designadamente quando é consabido que, conforme reportado pela ADO 62, “todas as 9 (nove) condenações já sofridas pelo Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos envolveram violações aos direitos das vítimas e de seus familiares”.

Nesse Estado a que chegamos, anota-se, com primazia, que a jurisprudência da Corte Interamericana é firme no sentido de determinar que “nos casos de graves violações de direitos humanos, familiares das vítimas também são considerados como vítimas”, como aludiu, aliás, a inicial da ADO 62, citando a doutrina [9].

A proposição da ADO 62 é decisiva iniciando importante capítulo de direitos humanos, na ordem jurídica, a partir de uma compreensão vertical de proteção da família. Bem o diz o Procurador-Geral Augusto Aras:

“Não há dúvidas da repercussão social da matéria, eis que sua regulamentação visa a garantir direitos básicos de dignidade e sobrevivência a pessoas em condições de vulnerabilidade, em virtude de serem vítimas indiretas de crimes dolosos, dos quais os responsáveis pelo seu sustento ou pela sua entidade familiar foram vitimados diretamente. A morte ou a incapacitação do responsável pela manutenção da família geralmente resulta em perda financeira drástica, sendo necessária proteção social que resguarde um mínimo garantidor da reconstrução do âmbito familiar e da própria sobrevivência em dignas condições”.

Resta ponderar que: (i) a nossa ordem jurídica carece de um Estatuto próprio do Direito das Vítimas; em proteção fundamental bem disciplinada; (ii) que a tramitação dos atuais PLS 518/2013 e do PL 3.503/2004, não atendem o art. 245 da CF, evidenciando a mora legislativa e que (iii) as famílias devem ser melhor protegidas e menos vitimizadas pela inércia do Estado.

Cai a lanço explicitar mais.


[1] Art. 245, CF: A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.

[2] OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal, São Paulo: RT, 1999, 190 p., pp. 65-66;

[3] MENDELSOHM, Benjamim. O advogado de Jerusalém é considerado o fundador da vitimologia, com seus estudos pioneiros dentre eles “La Victimologie, Science Actuaelle (1957) e “Victimology and contemporanary society´s trend” (1976).

[4] GARÓFALO, Rafaelle. Em sua obra “Criminologia” (1885), o penalista italiano utilizou o termo empregado pela primeira vez por Paul Topinard (1883), consagrando a doutrina como o estudo do crime.

[5] Web: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=6120625

[6] AGRA, Walber de Moura; Curso de Direito Constitucional. 9ª ed. Belo Horizonte:Fórum, 2018. p. 690-691

[7] SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2019. p. 1310; BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 12ª ed. São Paulo: Saraiva Jur,2019. p. 341-343.

[8] Web https://www.conjur.com.br/20anos/2017-ago-10/peter-haeberle-constitucionalista-alemao-constituicao-e-declara A sua obra “Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição” foi traduzida, no Brasil, pelo ministro Gilmar Mendes, do STF.

[9] PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi; MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense,2019, p. 107.

Autores

  • é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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