Opinião

A ilegalidade do monitoramento eletrônico do apenado no regime aberto

Autor

  • Carlo Velho Masi

    é advogado criminalista vice-presidente da Abracrim-RSdoutorando e mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal e Política Criminal (UFRGS) Direito Penal Econômico (Universidade de Coimbra) Ciências Penais (PUCRS) e Direito Penal e Processo Penal (Unisinos) e coordenador estadual adjunto do IBCCRIM no Rio Grande do Sul.

7 de março de 2021, 6h04

O Código Penal brasileiro adota um sistema progressivo de cumprimento das penas privativas de liberdade, composto pelos regimes fechado, semiaberto e aberto (artigo 33, §2º, do CP). O condenado progride de um regime mais gravoso para um mais brando (artigo 122 da LEP) atualmente com o cumprimento de determinados percentuais de pena (requisito objetivo) — que variam conforme sua primariedade ou reincidência e conforme o tipo de crime cometido (praticado com ou sem violência ou grave ameaça à pessoa; hediondo ou equiparado, com ou sem resultado morte; no comando de organização criminosa estruturada para a prática de crime hediondo ou equiparado; constituição de milícia privada) — e com a comprovação de boa conduta carcerária (requisito subjetivo).

O regime menos severo legalmente previsto — o aberto — destina-se, quando imposto como inicial, ao condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a quatro anos, e, por via de progressão, aos apenados que aceitarem determinadas condições (artigo 115 da LEP) impostas pelo juiz da execução penal, desde que estejam trabalhando ou comprovem impossibilidade de fazê-lo imediatamente e que apresentem, pelos seus antecedentes ou pelo resultado dos exames a que foram submetidos, fundados indícios de que irão ajustar-se, com autodisciplina e senso de responsabilidade, ao novo regime (artigo 114 da LEP). A confiança de que o próprio condenado terá discernimento para conduzir-se na última etapa da pena é, portanto, um pressuposto da progressão ao regime aberto.

É fato notório que muitos Estados, a exemplo do Rio Grande do Sul, possuem déficit de vagas sobretudo nos estabelecimentos prisionais destinados aos regimes semiaberto (colônia agrícola, industrial ou similar) e aberto (casa do albergado ou estabelecimento adequado), estes últimos muitas vezes completamente inexistentes. Defrontado com tal situação no âmbito do RE 641.320, o STF decidiu que a falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, sob pena de violação aos princípios da individualização da pena (artigo 5º, XLVI) e da legalidade (artigo 5º, XXXIX).

Para o STF, na ausência de vagas, deverão ser determinados: 1) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; 2) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; 3) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto.

O tema acabou resultando na Súmula Vinculante nº 56, cuja obrigatoriedade se estende a todos os órgãos do Poder Judiciário, nas esferas federal e estadual (artigo 103-A da CF).

A partir da decisão da Suprema Corte, não tem sido incomum que os juízes da execução concedam "saída especial", "liberdade monitorada" ou "prisão albergue domiciliar" aos apenados nas hipóteses de progressão, geralmente mediante o cumprimento de uma série de requisitos bastante rigorosos, tais como recolhimento residencial noturno, não envolvimento em novos delitos, zona de monitoramento eletrônico bastante restrita, revogação do benefício em caso de rompimento ou danificação da tornozeleira, rotas de locomoção predeterminadas etc. O descumprimento de quaisquer destas obrigações pode ensejar a prática de falta grave (artigo 50, V, da LEP) e determinar a revogação do benefício (artigo 146-B, II, da LEP), com possível regressão de regime (artigo 146-B, parágrafo único, I, da LEP).

Conquanto quais condições possam ser reputadas condizentes com o regime semiaberto, o qual prevê trabalho durante o período diurno e recolhimento noturno ao estabelecimento prisional, sendo a vigilância do Estado sobre o indivíduo de grau médio, o mesmo não se pode afirmar que permaneça válido quando o preso atinge o regime aberto.

Nada obstante, tem-se visto alguns juízes mantendo a monitoração eletrônica do apenado no regime final de cumprimento de pena, com amparo no artigo 146-B, IV, da LEP, que lhes faculta a definição de fiscalização ao determinar a "prisão domiciliar" (prevista no artigo 117 da LEP). A jurisprudência [1], porém, firmou-se no sentido de que, em casos excepcionais, a prisão domiciliar pode ser concedida aos apenados de regime semiaberto e até fechado. Para esses casos, portanto, tem-se por justificável a imposição de monitoramento. Entretanto, isso não pode ser ampliado, de forma indistinta, a todos os apenados que acessam o regime aberto e acabam se deparando com a ausência de estabelecimento próprio.

Na prática, a manutenção da monitoração significa que o preso progride do semiaberto, perde direitos como remições por trabalho (já que este é um pressuposto do regime aberto e o artigo 126 da LEP só prevê remição para regimes fechado e semiaberto), mas segue monitorado, tal como já estava no regime anterior.

Esse posicionamento subverte a lógica do cumprimento progressivo de pena previsto na LEP, cujo intuito é ir paulatinamente abrandando o controle estatal sobre o indivíduo, precisamente a fim de reinseri-lo, em etapas, ao pleno convívio social.

Independentemente da inexistência de estabelecimentos prisionais adequados, a etapa de progressão de regime deve ser um marco impositivo de uma diminuição da intervenção estatal sobre o cidadão, não da sua manutenção.

Isso não ocorre com a permanência do apenado sob monitoramento constante e ininterrupto.

Logo, a questão da monitoração eletrônica, no regime aberto, deve ser vista sob a ótica da finalidade desta etapa da pena, à luz do disposto na LEP e sem descurar dos princípios constitucionais incidentes.

O artigo 114, II, da LEP aduz que o regime aberto funda-se na autodisciplina e no senso de responsabilidade. Ora, tais vetores não estão sendo observados com a manutenção do monitoramento eletrônico, pois o Estado segue acompanhando todos os passos do apenado e impedindo sua locomoção sem prévio agendamento e autorização. O preso que não possui sensatez e seriedade suficientes para respeitar as regras do regime aberto sem monitoração sequer poderia ingressar neste regime, de modo que não há sentido lógico algum conceder uma progressão sem atribuir ao apenado um maior grau de comprometimento com a correta execução de sua pena.

Esse não é o regime aberto previsto na LEP, e, sim, uma criação pretoriana desfavorável ao indivíduo, se comparada com a sua situação anteriormente vivenciada no curso da execução de sua pena.

Cezar Bitencourt leciona que "o maior mérito do regime aberto é manter o condenado em contato com a sua família e com a sociedade, permitindo que leve uma vida útil e prestante" [2]. Contudo, é incontroverso que um indivíduo que usa tornozeleira eletrônica encontrará dificuldades infinitamente maiores de recolocação no mercado trabalho e de conseguir oportunidades em face do estigma provocado pelo aparelho, que provoca ainda maior exclusão social. Como refere Luís Carlos Valois, "além das cicatrizes do próprio processo penal e de suas passagens por cadeias e penitenciárias, levará em seus braços ou pernas uma corrente moderna, para que todos vejam e saibam de onde vem e para onde vai" [3].

O advento da progressão de regime prisional gera no apenado a justa expectativa — calcada na previsão legal — de que sua situação prisional terá uma melhora e de que o Estado dar-lhe-á um tratamento mais brando, o que não ocorre em caso de manutenção do monitoramento.

Ora, o Estado tem um dever de lealdade para com o cidadão, no sentido de assegurar-lhe os direitos legalmente previstos. A própria Constituição garante aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, XLIX).

Os apenados não têm qualquer responsabilidade pelo fato de o Estado não possuir estabelecimentos prisionais adequados ao cumprimento dos ditames legais. Aliás, tal carência apenas confirma o chamado "estado de coisas inconstitucional" do sistema carcerário brasileiro, reconhecido pelo STF na ADPF 347 desde 2015.

Em seu artigo 92, a LEP dispõe que o estabelecimento prisional destinado ao cumprimento de pena privativa de liberdade em regime aberto é a "casa do albergado", descrita (artigo 93) como um prédio em centro urbano, separado dos demais estabelecimentos, cuja principal característica legal é a "ausência de obstáculos físicos contra a fuga", o que, na leitura de Guilherme de Souza Nucci, significa que não pode haver vigilância armada, grades ou muros [4].

Sendo esse o traço marcante dessa modalidade de estabelecimento prisional, torna-se incompatível com a previsão legal a monitoração eletrônica do apenado, pois sua instalação acaba se tornando mais grave que permanecer recolhendo-se à casa do albergado, visto que nela o apenado não é constantemente vigiado pelo Estado. Ou seja, tivesse o apenado que se apresentar à casa de albergado não teria tamanho controle estatal sobre si quanto o que ocorre com o uso permanente de tornozeleira eletrônica.

O §1º do artigo 36 do Código Penal é absolutamente claro quando estabelece como regra do regime aberto que o condenado deverá, fora do estabelecimento e sem vigilância, trabalhar, frequentar curso ou exercer outra atividade autorizada, permanecendo recolhido somente durante o período noturno e nos dias de folga. Sucede que a monitoração eletrônica configura vigilância das mais extremas.

De outro lado, o artigo 115 da LEP impõe condições gerais e obrigatórias ao cumprimento de pena em regime aberto [5] e, entre elas, não está a monitoração eletrônica. O artigo 116 do mesmo diploma faculta ao juiz a modificação destas condições, "desde que as circunstâncias assim o recomendem". Logo, será impositivo que se analise elementos pessoais do apenado e da sua execução para fins de impor medidas especiais não previstas em lei. Ainda assim, a determinação da monitoração subverte a estrutura do sistema progressivo da pena privativa de liberdade, que sempre foi pensado num escalonamento rumo à total liberdade do indivíduo.

Não se nega que a monitoração seja um avanço importante na execução penal, face à total falência do sistema carcerário arcaico e desumano que possuímos, na busca pelo imprescindível controle estatal sobre certos condenados, especialmente aqueles que praticaram crimes graves e com violência e que integram organizações criminosas.

Nada obstante, a monitoração do preso em regime aberto é desproporcional e contraria um dos objetivos primordiais da execução penal, o de "proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado" (artigo 1º da LEP). Além disso, a medida coativa afronta a dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado democrático de Direito (artigo 1º, III, da CF), e submete o indivíduo a odioso tratamento desumano e degradante (artigo 5º, III, da CF).

 


[1] "EXECUÇÃO PENAL. CONDENADO COM IDADE AVANÇADA E COM INÚMERAS PATOLOGIAS. VIABILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PENA EM PRISÃO DOMICILIAR ATÉ QUE O QUADRO CLÍNICO APRESENTE ESTABILIDADE OU ATÉ QUE O ESTABELECIMENTO PRISIONAL TENHA CONDIÇÕES DE PRESTAR A ASSISTÊNCIA MÉDICA. ORDEM CONCEDIDA. 1. […] 2. Determinadas previsões da Lei de Execução Penal devem ser interpretadas visando a sua harmonização com um dos fundamentos da República, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, I, da CF), de modo a assegurar acesso dos presos às necessidades básicas de vida, não suprimidas pela sanção criminal. Outrossim, não se sustenta a interpretação literal de dispositivo de lei que venha a fomentar, na prática, a manutenção do quadro caótico do sistema penitenciário, com implicações deletérias à integridade física dos presos. 3. A melhor exegese, portanto, do art. 117 da Lei nº 7.210/1984, extraída dos recentes precedentes da Suprema Corte, é na direção da possibilidade da prisão domiciliar em qualquer momento do cumprimento da pena, ainda que em regime fechado, desde que a realidade concreta assim o imponha. […]" (HC 366.517/DF, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 11/10/2016, DJe 27/10/2016).

[2] BITENCOURT, Cezar Robert. Código penal comentado. 10. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 241.

[3] VALOIS, Luís Carlos. Monitoramento eletrônico alonga os braços do cárcere. Conjur. 7 abr. 20211.

[4] NUCCI, Guilherme de Souza. Curso de execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 142.

[5] "I – permanecer no local que for designado, durante o repouso e nos dias de folga; II – sair para o trabalho e retornar, nos horários fixados; III – não se ausentar da cidade onde reside, sem autorização judicial; IV – comparecer a Juízo, para informar e justificar as suas atividades, quando for determinado".

Autores

  • é advogado criminalista. Mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS. Especialista em Direito Penal e Política Criminal pela UFRGS. Pós-graduando em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra (Portugal) e em Ciências Penais pela PUC-RS.

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