Embargos Culturais

Por que Eros Roberto Grau tem medo dos juízes?

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de março de 2021, 8h00

Diferente, cético, irreverente, inteligente, desconcertante, Eros Grau (nasceu em 1940, em Santa Maria, Rio Grande do Sul), lecionou na Universidade de São Paulo e foi Ministro no Supremo Tribunal Federal. Grau é artífice de um patrimônio literário jurídico e hermenêutico, de decisões de fortíssimo impacto político e econômico e de intuições que apontam para uma visão singular do direito. "Por que tenho medo dos juízes", um de seus livros, que a Malheiros e a Podium soltam agora em décima edição, reúne um pouco desse legado estimulante. É um livro para ser lido muitas vezes. É o livro certo, na hora certa, para o público certo, que enfrenta uma situação incerta. É a nossa situação[1].

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Grau enfatiza a necessidade da subordinação dos magistrados ao direito (Constituição e leis), como condição de previsibilidade e de calculabilidade da vida negocial. Retoma o tema da racionalidade do direito moderno, que Max Weber explorou inovadoramente na sociologia compreensiva do direito. Weber comparou o direito ocidental racional com as várias formas de justiça do oriente. Grau defendeu a legalidade do direito positivo em oposição à volatilidade de pressupostos de proporcionalidade e de equidade. Grau nadou contra a corrente. Sabia, no entanto, onde queria chegar, e chegou na frente de todos nós. Do outro lado do rio turvo da compreensão de nosso.

O dilema está também no ajuste do direito à vida real. O cumprimento dos contratos exige uma ética da legalidade que repudia a subjetividade do julgador. O Judiciário, na visão de Grau, pode tornar-se um produtor de insegurança, na medida em que se afasta de uma prudência que lhe deve ser implícita, dada a inviabilidade fática de uma única solução correta para determinado caso. A obsessão com ponderação entre princípios sugere incerteza. Todos tornamo-nos reféns da subjetividade do julgador. Realiza-se, inesperadamente, a metáfora platônica do rei-filósofo. Porém, o problema não estaria no rei. Estaria na filosofia adotada pelo soberano imaginário.  

Grau lembra-nos que somos vítimas do mantra dos princípios e valores, desde quando começamos a ler Dworkin, no início dos anos 1980. Na mesma época (acrescento) o realismo jurídico norte-americano fracionava-se em duas linhas antagónicas. Desenhava-se uma ferradura. À esquerda, a rebeldia do "Critical Legal Studies", cujo nome principal, sabemos, é do jusfilósofo brasileiro mais conhecido no estrangeiro: Roberto Mangabeira Unger. À direita, a turma do custo-benefício, influenciada pelos economistas da água doce. Os economistas de água salgada pontificam nas universidades norte-americanas das costas leste e oeste. Os economistas de água doce estão em Chicago, na região dos grandes lagos. Richard Posner e Guido Calabresi lideravam esse grupo, conhecido, entre outros, pelo "Law and Economics". São linhas "hardcore" de especulação jurídica.

Esses movimentos foram recepcionados no Brasil muito tempo depois. Ficamos com Dworkin e Rawls, em traduções espanholas. É o campo do aspartame jurídico, se posso me atrever a afirma-lo. Retoma-se a metafísica, traduzida em juízes com nomes gregos (Hércules), no véu da ignorância, na posição original, e na decisão judicial como continuidade de uma narrativa de romance. Grau renega essa tradição dulcificadora do direito. A interpretação, insiste, não é declaratória, é constitutiva. Lembra-nos Creonte, o personagem (odiado) de Sófocles (Antígona) que preferia a ordem à justiça.

O argumento de Grau é muito sofisticado. Afirma que o direito nos remete a uma arte alográfica, dado que o texto normativo exige autor e intérprete. A arte autográfica conta apenas com o autor na sua construção, e é o caso da pintura e da literatura de ficção. A arte autográfica exige autor e intérprete, a exemplo da música e do teatro. O texto normativo, enfatiza Grau, é alográfico. A norma revela-se como tal (comando) quando efetivamente interpretada.

Grau reconhece, no entanto, a multiplicidade das formas interpretativas. Exemplifica com a 6ª Sinfonia de Beethoven. A Pastoral, como é conhecida essa belíssima peça de música clássica (de 1808, Opus 66, em Fá maior, precursora da música programática, aquela que invoca uma determina ideia no ouvinte), fora interpretada diferentemente por von Karajan (em Berlim) ou por Tocanini (em Milão). A peça, no entanto, é a mesma, e poderia ser interpretada de uma outra maneira por seu criador. Vale-se da metáfora da Vênus de Milo. Três escultores poderiam ser convocados a reproduzir (ou a criar) essa bela peça do classicismo grego. Pode-se admitir que haveria três estátuas distintas, quanto às curvaturas, formas, expressão do olhar e do rosto. Continuam sendo representações da Vênus de Milo, e não da Vênus de Samotrácia.

Em "Por que tenho medo dos juízes" Eros Grau socorre-se de autores canônicos no tema da interpretação: Gustavo Zagrebelsky, Tulio Ascarelli, Hans Kelsen, Heidegger, Gadamer, Iehring, Perelman e inclusive Carl Schmitt, um autor maldito para muita gente. Forte na tradição francesa, Grau reitera a importância da lei, resultado da "vontade geral", na concepção de Rousseau, no pequeno grande livro que é o "Contrato Social".

Na cultura jurídica francesa a deferência para com o texto legislado é quase absoluta. O controle de constitucionalidade corretiva é fato constitucional e normativo muito recente. A tradição normativa francesa radica fortemente no Código de Napoleão. O artigo 4º desse monumento do direito privado dispõe que o juiz deve interpretar, sempre, em concreto. No artigo 5º proíbe o magistrado de interpretar em abstrato. Um famoso professor francês da era napoleônica dizia ser professor do Código Civil, e não de Direito Civil. Alguns chamariam de formalismo. Outros, chamariam de tipicidade fechada. Grau, certamente, tem um bom argumento para questionar a discricionariedade judicial.

A defesa que Grau faz da integralidade do Estado (com base em Hegel), contida na lei, não o exime de prestigiar soluções aparentemente voluntaristas. Exemplifica com o "caso belga". Ao fim da primeira guerra o rei dos belgas estava em Havre. Câmara e Senado não estavam em funcionamento. O monarca começou a governar sozinho, monocraticamente, com base em decretos-lei. Acusado de violar o artigo 26 da Constituição da Bélgica (que exigia a ação conjunta do rei e do legislativo), seus atos foram questionados. A Corte de Cassação sustentou a constitucionalidade dos atos reais, com base em axioma do direito público: não poderia suspender a soberania do Estado.

Em “Por que tenho medo dos juízes" Grau sustenta (com base em Carl Schmitt) que quem diz "valor" quer fazer valer e impor. Nesse importante livro tem-se uma sistemática impugnação ao corolário dos princípios e regras. Afirma que a proporcionalidade não passaria de um novo nome dado à equidade, ao que eu acrescentaria que o neoconstitucionalismo poderia ser um novo selo dado a um jusnaturalismo quase envergonhado. No fim, Grau afirma ter medo dos juízes, do mesmo modo que teme o direito alternativo, o direito achado na rua e, creio que principalmente, o direito achado na imprensa. Confiram.

[1] Dedico esse ensaio à dra. Andalessia Lana Borges Camara, colega na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que me presenteou com o livro aqui comentado, que assessorou ao Ministro Eros Grau, e que conhece a obra desse grande pensador do Direito.

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