Opinião

ANS contraria a lei ao dizer que rol dos planos de saúde é taxativo

Autor

  • Luciano Correia Bueno Brandão

    é advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC) e especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da World Association for Medical Law (WAML).

7 de março de 2021, 9h16

Ao editar a mais recente atualização do rol de procedimentos de cobertura obrigatória pelos planos de saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar  (ANS) extrapola suas atribuições, viola a lei e invade competências.

A ANS foi criada como órgão responsável por regulamentar e fiscalizar o mercado de planos de saúde no Brasil.

Entre suas competências, é papel da ANS "articular-se com os órgãos de defesa do consumidor visando a eficácia da proteção e defesa do consumidor de serviços privados de assistência à saúde, observado o disposto no Código de Defesa do Consumidor" [1].

Contudo, não é o que temos observado ao longo dos últimos anos, pairando sobre a agência não raramente a sombra do corporativismo e da forte influência do lobby das operadoras [2].

A mais recente mostra dessa postura enviesada e marcada por interesses de ordem política/corporativa se deu com a publicação da Resolução 465/2021 [3] da ANS, que atualizou o rol de procedimentos dos planos de saúde.

Segundo definição da ANS, o rol de procedimentos e eventos em saúde consiste na lista dos "(…) procedimentos considerados indispensáveis ao diagnóstico, tratamento e acompanhamento de doenças e eventos em saúde, em cumprimento ao disposto na Lei nº 9.656/98" [4].

Conforme aponta a agência, a lista é "(…) definida pela ANS por meio dos sucessivos ciclos de atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que ocorrem a cada dois anos".

Em resumo, a ANS edita periodicamente uma lista de procedimentos que passam a ser automaticamente de cobertura obrigatória pelos planos de saúde.

O peculiar dessa nova resolução 465/2021, no entanto, é que se por um lado houve avanços (como a incorporação de diversos fármacos e procedimentos), o texto inovou ao se enveredar a dispor sobre a natureza do rol de procedimentos e até mesmo sobre a definição de tratamentos considerados experimentais, o que evidentemente foge de suas competências legalmente previstas.

Nesse sentido, dispõe o artigo 2º da Resolução 465/2021 ANS que: "Para fins de cobertura, considera-se taxativo o Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde disposto nesta RN e seus anexos, podendo as operadoras de planos de assistência à saúde oferecer cobertura maior do que a obrigatória, por sua iniciativa ou mediante expressa previsão no instrumento contratual referente ao plano privado de assistência à saúde" (grifo do autor).

Como se não bastasse, em seu artigo 17, I, "c", a Resolução 465/2021 ANS se arvora em definir como experimental o "uso off-label de medicamentos, produtos para a saúde ou tecnologia em saúde", salvo se incorporado pelo SUS ou autorizado pela Anvisa.

No atual momento, o avanço da ANS sobre esses temas mostra-se, além de ilegal, totalmente impertinente.

Com efeito, a Lei nº 9.961/2000, que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar, em seu artigo 4º, III, dispõe ser competência da ANS "elaborar o rol de procedimentos e eventos em saúde, que constituirão referência básica para os fins do disposto na Lei no 9.656, de 3 de junho de 1998, e suas excepcionalidades" (grifo do autor).

Vale dizer que a lei define o rol de procedimentos editado pela ANS como referência básica de cobertura, ou seja, a listagem de procedimentos de cobertura mínima obrigatória.

Esse é o entendimento, inclusive, que predomina de forma eminentemente majoritária nos tribunais e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), notadamente em sua 3ª Turma, que vem sistematicamente reiterando a posição pela natureza meramente exemplificativa do rol de procedimentos da ANS.

Vale pontuar que o tema da natureza do rol da ANS (se taxativo ou exemplificativo) encontra-se em franca discussão pelo Superior Tribunal de Justiça, em razão de precedente aberto pela 4ª Turma da Corte por ocasião do julgamento do Recurso Especial nº 1.733.013/PR, que hoje representa posição absolutamente minoritária.

Portanto, a partir do momento em que a ANS, de forma inusual, se posiciona expressamente pela suposta taxatividade do rol, baseada em posição jurisprudencial (minoritária, reitere-se), está a assumir uma perigosa postura política/corporativa que não condiz com suas atribuições e, mais do que isso, contraria texto expresso de lei.

Quanto à classificação de tratamentos off-Label como experimentais, mais uma vez a ANS extrapola suas competências.

Isso porque compete única e exclusivamente ao Conselho Federal de Medicina (CFM) definir tratamentos como experimentais ou não [5], nos termos da Lei do Ato Médico (Lei nº 12.842/2013).

Além disso, ao pretender se intrometer na pertinência deste ou daquele tratamento, a ANS ultrapassa os limites de sua competência, interferindo na própria autonomia do profissional médico e com um pé na atividade reguladora da Anvisa.

Como se vê, ao expressar uma posição institucional acerca da natureza do rol, a Resolução 465/2021 ANS representa uma postura perigosa e ilegal adotada pela agência reguladora, que toma partido em uma discussão que não lhe compete e que está em franca discussão pelos tribunais, apenas contribuindo para o acirramento da discussão e recrudescimento da judicialização da saúde.

Mais conveniente seria o silêncio da agência ou, se fosse o caso de assumir alguma postura, mais correto que fosse "visando à eficácia da proteção e defesa do consumidor", tal como lhe impõe a lei.

Ao se posicionar, a ANS mostra sua face. E ela não é bonita para os pacientes e usuários, a quem devia proteger.

Autores

  • é advogado com atuação exclusiva na área de Saúde. Especialista em Direito da Medicina pela Universidade de Coimbra/Portugal (UC) e especialista em Direito Médico e Hospitalar pela Escola Paulista de Direito (EPD). Membro da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP e da World Association for Medical Law (WAML).

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