Opinião

Ainda, e sempre, as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento

Autores

6 de março de 2021, 17h28

Já não é mais novidade que o Código de Processo Civil (CPC/2015) instituiu um regime de recorribilidade diferida das decisões interlocutórias. A regra é a irrecorribilidade das decisões não previstas no rol de incisos do caput do artigo 1.015, as quais, de acordo com o artigo 1009, §1º, não estarão sujeitas à imediata preclusão e poderão ser impugnadas por meio de preliminar de razões ou contrarrazões de recurso de apelação.

Apesar das intenções do legislador, a prática forense mostrou que a complexidade dos processos não tem como ser apreendida por meio de uma lista rígida de hipóteses. Tanto é que o STJ afetou recursos que geraram dois temas repetitivos (Tema 988 e Tema 1.022) relacionados ao cabimento do agravo.

No julgamento do Tema 988 [1], a Corte Especial do STJ decidiu que a regra prevista no caput do artigo 1.015 é de taxatividade mitigada. Conforme o acórdão, o rol do caput do artigo 1.015 não autoriza interpretação extensiva, tampouco analógica. As hipóteses ali descritas são taxativas. Essa taxatividade, contudo, não impediria que em situações que não possam aguardar rediscussão em futura apelação, admita-se, excepcionalmente, o agravo de instrumento como o meio de impugnação adequado e imediato de decisões interlocutórias não previstas no rol.

Desse modo, para o STJ, o que define o cabimento do recurso é a urgência decorrente da impossibilidade de aguardar-se o momento oportuno para apreciação da apelação. Em outras palavras, é necessário fazer um juízo hipotético sobre a utilidade (interesse recursal) e a eficácia da eventual e futura apelação em relação à decisão interlocutória não prevista no rol do caput do artigo 1.015. Assim, no âmbito do Tema 988, o que se tem em questão é o conteúdo da decisão e a inutilidade de sua apreciação diferida.

Todavia, não se incluem no rol de incisos do artigo 1.015, nem no Tema 988, as situações e procedimentos em que, independentemente do conteúdo da decisão impugnada, ou de eventual urgência, o agravo será cabível. Essas hipóteses foram tratadas no parágrafo único do artigo 1.015, voltado à disciplina da fase de execução e de determinados procedimentos especiais.

Apesar de, em último caso, haver certa semelhança com os fundamentos do Tema 988, o parágrafo único do artigo 1.015 não versa sobre o conteúdo das decisões. A afirmação é relevante, já que o Tema 988 não atende plenamente à segurança jurídica, uma vez que o preenchimento dos critérios lá estabelecidos deve ser analisado casuisticamente pelo órgão julgador, considerando-se, ainda, aspectos subjetivos. Ao tornar irrelevante o conteúdo da decisão, o parágrafo único permite, com maior clareza, identificar as hipóteses de cabimento do recurso e o trânsito em julgado das respectivas decisões.

O parágrafo único tampouco tem a pretensão de ser exaustivo. Trata-se de dispositivo que tão somente enuncia hipóteses nas quais o procedimento não comporta o regime do artigo 1.009, §1º, e, por isso, as decisões interlocutórias ali pronunciadas precisam ser impugnáveis de imediato.

Com efeito, os principais critérios que determinam a recorribilidade imediata por agravo pelo parágrafo único, a nosso ver, são: 1) o critério temporal; e 2) o critério da especialidade do procedimento.

Toda decisão prolatada após a sentença da fase de conhecimento (artigos 485 e 487) é impugnável por agravo de instrumento, independentemente de seu conteúdo. Trata-se de critério temporal que determina o cabimento do recurso: finda a fase de conhecimento, com a prolação de sentença, qualquer decisão subsequente será impugnável de imediato por agravo de instrumento, com fundamento no artigo 1.015, parágrafo único.

Um exemplo prático dessa situação é caso em que houve pedido de nulidade de todas as intimações ocorridas após a prolação da sentença, indeferido por decisão interlocutória. Essa decisão — não relacionada a atos de execução/cumprimento de sentença foi recorrida por agravo de instrumento, não conhecido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso (TJ-MT). Levada a questão ao STJ, a corte proveu-o, consignando que "para as decisões interlocutórias proferidas em fases subsequentes à cognitiva (…) o legislador optou conscientemente por um regime recursal distinto, prevendo o artigo 1.015, parágrafo único, que haverá ampla e irrestrita recorribilidade de todas as decisões interlocutórias" [2].

Se de um lado o regime que o legislador adotou para a recorribilidade das interlocutórias prolatadas na fase de conhecimento baseia-se no conteúdo dessas decisões; de outro, uma vez prolatada a sentença que põe fim a fase de conhecimento, o conteúdo deixa de ser determinante para a recorribilidade por agravo. Qualquer interlocutória proferida a partir daí atrairá o regime recursal do parágrafo único, por um critério, em verdade, temporal.

Além do temporal, outro critério deve ser considerado: o parágrafo único abrange situações em que a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias por agravo de instrumento considera a especialidade do procedimento, que contém peculiaridades que impedem a aplicação do regime do caput.

O dispositivo prevê que o caberá agravo de instrumento, independentemente do conteúdo da decisão, na fase de cumprimento de sentença e nos procedimentos de execução e inventário. Nesses casos, não se cogita que a parte aguarde até o final da respectiva fase para impugnar as decisões, mesmo porque seu encerramento, muitas vezes, se dá por meio de sentença cujo conteúdo decisório já é em si muito limitado (como, por exemplo, aquela que extingue a execução por força da satisfação do direito do credor).

Ademais, a apelação nem sequer propicia a ampla devolução das questões ao tribunal de segundo grau (nas dimensões horizontal e vertical), tal qual ocorre com esse recurso quando interposto no procedimento comum.

Além disso e o legislador atentou para essa particularidade , raramente há laço de prejudicialidade (relação de dependência) entre as decisões interlocutórias e o resultado final do processo. Aliás, essa constatação já em si suficiente para tornar inaplicável o regime do artigo 1.009, §1º, aos procedimentos previstos no parágrafo único. Afinal, inexistindo essa relação de dependência/prejudicialidade, toda a razão de ser de se postergar a impugnação das interlocutórias se torna inútil e, consequentemente, inaplicável.

Essas características, que unem as hipóteses previstas no parágrafo único, são marcantes em procedimentos concursais. Disso, é possível extrair que a hipótese prevista no parágrafo único nada mais é que uma técnica (recursal) diferenciada, aplicável a determinadas hipóteses de procedimentos especiais.

O tema foi enfrentado pelo STJ nos recursos especiais números 1.707.066/MT e 1.717.213/MT, julgados sob o regime dos recursos especiais repetitivos, que deram origem ao Tema 1.022. Fixou-se tese no sentido do cabimento de agravo de instrumento em face de todas as decisões interlocutórias prolatadas em processos de recuperação judicial e falência, com fundamento no parágrafo único do artigo 1.015.

Nos fundamentos determinantes do acórdão, de relatoria da ministra  Nancy Andrighi, afirmou-se que o regime recursal distinto para as hipóteses de liquidação, execução e processo de inventário, se deve ao fato de que são "praticados inúmeros e sucessivos atos judiciais de índole satisfativa (pagamento, penhora, expropriação e alienação de bens etc.) que se revelam claramente incompatíveis com a recorribilidade apenas diferida das decisões interlocutórias". Além disso, afirmou-se que nesses casos haverá uma impossibilidade de rediscussão posterior da decisão interlocutória, já que nem sempre haverá apelação nessas "espécies de fases procedimentais e processos".

Fica claro, portanto, que o que está no parágrafo único é, de fato, uma técnica diferenciada, aplicável a certas espécies de procedimentos. Com a tese fixada no âmbito do Tema 1.022, o STJ já deu o primeiro passo na consagração desse entendimento, sendo certo que seus fundamentos determinantes podem ser utilizados para justificar o cabimento do agravo em outros procedimentos especiais, diferentes daqueles previstos na Lei de Recuperação Judicial e Falência (recentemente alterada para consignar o cabimento do agravo de instrumento, no artigo 189, §1º, II).

É o que acontece, por exemplo, nas ações possessórias em casos de desapropriação por utilidade pública, regulada pelo Decreto-Lei 3.365/41. O STJ, analisando o cabimento de agravo de instrumento nesses casos, entendeu pela incidência do regime do parágrafo único. A corte consignou que a tutela provisória de urgência para imissão na posse, segundo o rito especial da desapropriação, observa as regras do cumprimento de sentença, notadamente em relação ao depósito da oferta inicial. Por isso, também para esse caso de procedimento especial, atraiu-se o cabimento do agravo de instrumento pelo parágrafo único do artigo 1.015 [3].

Porém, isso não quer dizer que a interpretação analógica do parágrafo único se limite à abrangência de procedimentos concursais. Muito ainda há de se refletir sobre outros procedimentos especiais, que podem, por suas peculiaridades, atrair essa hipótese de recorribilidade por agravo. Entender em sentido oposto contrariaria, inclusive, o amplo diálogo entre técnicas procedimentais especiais, previsto pelo artigo 327 [4].

Pode-se mencionar, por exemplo, os processos estruturais, em que não se pode diferenciar, de maneira estanque, as fases cognitiva e executiva. Neles, essas duas fases se desenvolvem concomitantemente, o que é evidenciado pelo fenômeno dos provimentos em cascata. Primeiro, é prolatada uma primeira decisão, que fixe em linhas mais gerais o objetivo a ser alcançado e que crie o "o núcleo da posição jurisdicional sobre o problema"; depois, outras decisões, voltadas à implementação da decisão núcleo, são exigidas [5].

É por essa característica que Fredie Didier Jr., Hermes Zaneti Jr. e Rafael Alexandria qualificam o processo estrutural como um processo bifásico, que segue o standard do processo falimentar. Na primeira fase, constata-se o estado de desconformidade e estabelece-se a meta a ser atingida. Na segunda, ocorre, propriamente, a implementação da meta estabelecida na primeira. Nessa fase de implementação, há, igualmente, exercício de cognição [6]. Se na primeira fase o mecanismo adequado de recorribilidade das decisões interlocutórias é o caput e incisos do artigo 1.015, com possibilidade de aplicação da tese da taxatividade mitigada, para a segunda fase, de implementação das medidas, o regime recursal aplicável é o do parágrafo único.

Nota-se, nesse contexto, que a previsão de recorribilidade imediata por agravo de instrumento  seja nos incisos do artigo 1.015, seja em seu parágrafo único, ou mesmo em artigos esparsos , decorre de preocupação do legislador no sentido de que se estaria diante de "casos em que seria irracional deixar a hipótese para ser resolvida pelo tribunal depois que fosse proferida a sentença" [7].

Justamente por isso, o dispositivo delineou de forma ampla as hipóteses de cabimento do agravo de instrumento e, ainda, cuidou de anunciar, em seu parágrafo único, situações nas quais, em razão do procedimento adotado, admite-se a interposição de agravo em qualquer caso, independentemente do conteúdo da decisão.

Tais situações não comportam o regime previsto pela conjugação do caput do 1.015 e do artigo 1.009, §1º. Aqui temos, portanto, a essência que levou o legislador a formatar o parágrafo único. Ela está dentro do sentido da norma e deve considerando, repita-se, que sua razão de ser é absolutamente diferente da do caput e do rol do 1.015 ser alcançada por ela, mediante interpretação analógica.

Muito embora tenha o legislador de 2015 objetivado restringir o cabimento do agravo de instrumento a hipóteses taxativas, fato é que hoje, após cinco anos de vigência do CPC, isso foi relativizado.

De um lado, percebeu-se as insuficiências do rol de incisos do artigo 1.015 para abranger todas as situações em que a recorribilidade imediata das interlocutórias se fizesse necessária, o que levou o STJ à fixação de precedente mitigando a sua taxatividade, diante de casos urgentes (urgência qualificada pela inutilidade da apelação). Mas para além do rol de incisos do artigo 1.015, há que se voltar as atenções ao seu parágrafo único, cuja ratio essendi é outra.

Identificam-se, assim, duas distintas hipóteses de cabimento de agravo de instrumento no atual sistema processual, cada qual com fundamentos específicos e regime próprio, as quais, em conjunto, fecham o sistema de recorribilidade das interlocutórias, garantindo às partes direito ao recurso.

 


[1] REsp 1.696.396/MT e REsp 1.704.520/MT.

[2] REsp 1736285/MT, Rel. Ministro  NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, j. 21.5.2019, DJe 24.5.2019.

[3] RMS 60.392/SP, Rel. Ministro  MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, j. 25.6.2019, DJe 28.6.2019.

[4] Vide, por exemplo, o que defendem Fredie Didier Jr., Leonardo Carneiro da Cunha e Antonio do Passo Cabral: "Passa a ser natural ao sistema a possibilidade de se tutelarem, por meio de interpretação extensiva ou analogia, relações de direito material similares a outras para as quais exista previsão de procedimento especial, desde que essa aplicação se mantenha fiel à ideia de adequação do procedimento à tutela de direitos. Ou seja, no quadro da flexibilização, a aplicação do procedimento especial pode ser estendida a qualquer outra fattispecie. A lógica do sistema é rejeitar a tipicidade fechada; e as técnicas especiais de tutela diferenciada devem servir como uma “moldura” que possa ser aplicada independentemente do procedimento, a fim de concretizar o direito a um processo adequado". (Por uma nova teoria dos procedimentos especiais. Salvador: Editora JusPodivm, 2018, p. 82).

[5] Sobre o tema, vide: ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro. Revista de Processo, v. 225. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.; e MARÇAL, Felipe Barreto. Processos Estruturantes. Salvador: Juspodivm, 2020.

[6] DIDIER JR., Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista de Processo. v. 303. São Paulo: Editora Thomson Reuters Brasil, 2020.

[7] ALVIM, Teresa Arruda. Um agravo e dois sérios problemas para o legislador brasileiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jun-14/teresa-arruda-alvim-agravo-dois-serios-problemas.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!