Opinião

Um remédio contra a tirania

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5 de março de 2021, 20h41

Sujeito à condução e às falhas humanas, o Estado é imperfeito por natureza. Dessa concepção decorrem diversos valores e instrumentos inclusos nas constituições democráticas para, justamente, buscar antecipar e coibir equívocos por parte das instituições e dos agentes estatais, com destaque para potenciais abusos contra o cidadão.

Um dos conceitos mais caros ao Estado de Direito é o da presunção de inocência. A cidadã e o cidadão só podem, e devem, ser punidos depois de assentada sua responsabilidade na violação da lei por meio de um processo imparcial e vinculado a mecanismos de revisão. Daí a imprescindibilidade do direito de defesa: ao passo em que ele não prospera em regimes autocráticos, em que a vontade do governante de turno é o simulacro da própria lei, ele é um dos pilares fundamentais dos regimes democráticos.

No Brasil, o debate sobre o sistema de direitos e garantias individuais ganhou novos contornos com a polarização formada em torno da Lei contra o Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019). Desde que a matéria começou a tramitar no Congresso, em 2017, formaram-se dois grupos. De um lado, entusiastas da medida, muitas vezes taxados de lenientes com a impunidade. De outro, os críticos, que acusam a nova legislação de ser um obstáculo à celeridade da Justiça.

Estipular as punições para o abuso de autoridade nada mais é do que dar efetividade ao que a lei brasileira sempre determinou ao estabelecer limites à atuação dos agentes estatais. Antes da Lei 13.869, no entanto, não eram definidas as penas para os violadores desses limites.

Na advocacia, a nova legislação foi aplaudida e ganhou grande repercussão por incluir um dispositivo, pleiteado havia muito tempo, que é a criminalização do abuso de autoridade. O efeito prático da medida, no entanto, foi efetivar os direitos e garantias dos beneficiários finais da lei, que são as cidadãs e os cidadãos brasileiros.

A presunção de inocência e os direitos de defesa, ao devido processo legal e à produção de provas isentas e equidistantes das partes são as mais relevantes armas contra o totalitarismo, sem as quais nenhuma democracia se sustenta (mesmo que nela vicejem eleições frequentes e liberdade de expressão).

Nesse contexto, a presunção de inocência assume a forma de pedra angular das salvaguardas democráticas, consagrada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, e no Pacto de São José da Costa Rica — firmado em 1969 e ratificado no Brasil em 1992. Ambos pontificam que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa". A Constituição Federal, de 1988, recepcionou o princípio no inciso 57 do artigo 5º: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória".

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), favorável à Lei contra o Abuso de Autoridade desde o início dos debates, enfrentou as investidas dos autoritários e dos que pretendiam apenas satisfazer necessidades momentâneas, ignorando repercussões jurídicas futuras da aplicação distorcida da lei. Passados alguns anos, fica claro que a defesa do sistema de garantias individuais é o ponto central na proteção da própria democracia.

O novo regramento tipificou o crime de violação das prerrogativas da advocacia, como a inviolabilidade do escritório, a possibilidade de se comunicar com o cliente, a participação de representante da OAB na prisão em flagrante e recolhimento em sala de Estado Maior. Já amparada pelo Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994), a violação das prerrogativas agora pode ser efetivamente punida. E cabe à OAB, por meio do Conselho Federal e de suas seccionais, amparar o advogado nessas situações, conforme estabelecido em provimento aprovado em outubro de 2020.

Todo esse sistema, no qual participa a Lei contra o Abuso de Autoridade, é uma proteção ao direito de defesa e aos interesses individuais dos cidadãos ante a força e o tamanho do Estado. Afinal, onde nasce o autoritarismo senão em nações que não limitam o arbítrio de suas autoridades? Sejamos tolerantes com os excessos e amanhã estaremos às voltas com a tirania.

A OAB está preparada para responder a todos os ataques que, sob o manto do abuso de autoridade, revelarem o despotismo daqueles que são investidos de fé pública. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preconiza a Carta Magna, só será possível quando as autoridades compreenderem que têm uma função capital, mais importante do que todas as outras: servir ao cidadão — e não dele se servir para dar vazão a sórdidos impulsos opressivos.

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