Opinião

Decisão do Supremo pode gerar aumento das filas do INSS

Autor

  • Rômulo Saraiva

    é professor advogado especialista em Previdência Social pela Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região (Esmatra VI) e pela Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul (Esmafe-RS) e mestre em Direito Previdenciário pela PUC-SP.

5 de março de 2021, 7h13

Em 2014, quando o Supremo Tribunal Federal opinou sobre o prévio requerimento administrativo como condição de acesso ao Poder Judiciário, naquela ocasião havia um receio de que o os tribunais virassem um "balcão de atendimento" do Instituto Nacional do Seguro Social. Com a deficiência de atendimento peculiar das agências previdenciárias, o temor era que, ao invés de o segurado requerer a concessão ou revisão do benefício na Previdência Social, fosse diretamente bater à porta do Judiciário. Agora, em 2021, o Supremo se depara com outra questão afim: por quanto tempo o segurado deve esperar o INSS para somente depois disso levar o caso para os tribunais? A resposta mais pragmática que saciava essa pergunta oscilava entre os prazos de 45 dias (artigo 41-A, da Lei nº 8.213/91) ou 60 dias (artigo 49, da Lei nº 9.784/99). Ao longo desses sete anos, referidas leis estão intactas: não foram alteradas, revogadas ou tiveram sua inconstitucionalidade declarada. O que surgiu de novo foi apenas a iniciativa altruísta do Ministério Público Federal e do INSS de juntos entabularem um acordo para lá de sui generis, criando prazos de espera totalmente diferentes do que dispõe a lei e ampliando muito a tolerância processual do INSS em responder ao trabalhador quando este for reclamar da demora administrativa. Os mais esperançosos acreditavam que o Supremo fosse, de alguma forma, intervir nos termos do acordo, mas eis que a iniciativa contou com o aval do Plenário do STF que o homologou sem retoques — ato que, indiretamente, equivale a espécie de ativismo judicial indireto consistente em autorizar que as partes alonguem os prazos da lei. E, por consequência, traz reflexos no aumento da fila do INSS em todo país.

O acordo, cuja validade está em vacation legis e a vigência inicia a partir de seis meses da data da homologação, chama a atenção da comunidade jurídica por ser exuberante em sua generosidade, abrangência, criatividade e ativismo judicial sobre temas espinhosos, como dilatar prazos explicitamente regulados em lei e dispor sobre a possibilidade de revolver processos previdenciários com coisa julgada definida, em nome do novo conceito jurídico da "superveniente modificação no estado de fato e de direito" cujo fato gerador foi a própria criação do acordo.

No passado, em função da iniciativa do Ministério Público Federal ou da Defensoria Pública da União ter ajuizado diversas ações civis públicas reclamando da demora do INSS, atualmente algumas regiões do país têm regras diferenciadas para concessão de auxílio-doença (atualmente nomeado de auxílio por incapacidade temporária), a fim de determinar sua concessão automática quando a demora administrativa ultrapassar 45 dias. Em alguns julgados, o benefício assistencial também está abrangido com similar solução. Por exemplo, Estados como Paraná (ACP nº 5000702-09.2010.404.7000/PR), Rondônia (ACP nº 9715-03.2012.4.01.4100), Santa Catarina (ACP nº 5004227-10.2012.404.7200), Maranhão (ACP nº 819-67.2013.4.01.3701) e Rio Grande do Sul (ACP nº 5025299- 96.2011.404.7100 e 5013845-45.2012.404.0000) estão acobertados por decisões judiciais, julgadas há anos e sob o manto da coisa julgada, e a partir de agora poderão ser reformuladas.

É que o acordo realizado deixa sutilmente nas entrelinhas que os processos antigos deverão se adaptar à nova realidade. As ações civis públicas ou mandados de segurança coletivo que já tenham transitado em julgado que tratem da mesma matéria previdenciária objeto do acordo podem ser afetados pelos novos prazos, inclusive alterando as sanções pelo descumprimento da obrigação de fazer, limitando dessa forma os efeitos dos respectivos títulos judiciais à data da homologação judicial do ajuste. O acerto bilateral terá praticamente a mesma força de uma ação rescisória, sem necessariamente atender aos requisitos do artigo 966 do Código de Processo Civil.

A generosidade impregnada no acordo decorre do fato de que a ação discutida no STF, Recurso Extraordinário nº 1.171.152/SC (Tema 1.066), com patrocínio do Ministério Público Federal, buscava impor ao INSS que este respeitasse o prazo mínimo de 45 dias para realização da perícia e analisasse a concessão do auxílio-doença, sob pena de pagá-lo automaticamente. O Parquet, fiscal da lei que outrora achava excessivo o instituto demorar mês e meio para se pronunciar, resolveu transigir e ampliar em muito o objeto inicial da lide que ele mesmo provocou, melhorando a situação processual do réu. O acordo conseguiu a façanha de ser mais benevolente do que a própria lei brasileira dispõe. No caso do auxílio-doença, objeto da lide, o INSS terá 45 dias para encerrar a fase de instrução do processo administrativo após o agendamento da perícia e mais 45 dias para decidir sobre o reconhecimento do direito. Se a documentação estiver insuficiente, acrescenta-se mais 30 dias. Nesse novo cenário, a dilação do prazo é ampliada de 90 a 120 dias — caso não tenha nova decretação do estado de calamidade por Covid-19, hipótese em que os prazos ficarão congelados e a autarquia ganhará mais tempo para concluir a concessão do benefício.

A abrangência da tratativa se caracteriza em razão da discussão que ensejou o Tema 1.066 ser inicialmente restrito ao auxílio-doença, mas as partes resolveram inovar e atribuir tempo de espera próprio para todos os demais benefícios da Previdência Social e da Assistência Social, embora a legislação preveja prazo uniforme para tais demandas. É verdade que há benefícios que dependem de perícia médica e/ou da avaliação social e, portanto, são complexos a ponto de justificar maior tempo para sua conclusão (e, dessa forma, a lei atual termina pecando ao estabelecer prazo invariável em situações díspares). Apesar de reconhecer a obsolescência legal na dosagem dessa tolerância previdenciária, isso é um problema que toca o Poder Legislativo.

Não cabe às partes ou ao Judiciário fixar novos prazos ou regulamentá-los. Mesmo assim, tal inovação terminou sendo chancelada, na medida em que os ministros do STF votaram por unanimidade a definição de prazos próprios para os benefícios previdenciários e assistenciais, inclusive dilatando em mais 45 dias para casos de necessidade pericial, a exemplo do benefício assistencial, aposentadoria especial, aposentadoria da pessoa com deficiência, aposentadoria por invalidez, pensão por morte (dependente inválido), auxílio-doença e auxílio-acidente.

Com exceção do salário-maternidade, que teve a convenção de 30 dias para conclusão do processo administrativo, o acordo amplia de forma geral os demais prazos. Seria tolerável que as partes até discutissem sobre adoção de prazos, mas desde que não extrapolassem o máximo legal.

Apesar de teratológica, a iniciativa do Ministério Público e do INSS de juntos criarem novos prazos sem qualquer respaldo legal não podia ser classificada a rigor como ativismo judicial, já que este é um ato decisório próprio dos juízes e de atuação expansiva em interferir em assuntos de outros poderes. Todavia, a partir do momento em que o Supremo concorda em homologar o acordo, sem ressalva ou análise dos pressupostos do negócio jurídico, a fim de proporcionar efeitos jurídicos em todo território nacional, termina por via oblíqua incorrendo no dito ativismo judicial. O acordo instituirá novos prazos na rotina previdenciária, mesmo as Leis nº 8.213/91 (artigo 41-A) e 9.784/99 (artigo 49) não tendo perdido suas eficácias. Afinal de contas, acordo judicial terá maior validade do que a própria lei?

Com o afã de jugar tema sobre a tolerância administrativa das eternas filas do INSS, ainda que indiretamente, o STF terminou propiciando um "nó jurídico" nos casos futuros, já que coexistirão em harmonia duvidosa uma decisão homologatória de acordo — que amplia os prazos administrativos — juntamente com legislação própria que dispõe, via de regra, de prazos menores daquilo que foi acordado. As Leis nº 8.213/91 e 9.784/99 sequer foram declaradas inconstitucionais. E nem deveriam. Nesse particular, é de conhecimento público a desestruturação administrativa que o INSS vem sofrendo de longa data, especialmente na inércia de contratar e de preparar servidores para suprir a demanda previdenciária nacional. O problema dos represamentos processuais no instituto e a demora em responder a população exigem solução de melhor organizar o serviço público federal, e não de alongar os prazos.

Como a Corte Suprema costuma dar a palavra final dos assuntos jurídicos no país, era de se esperar que as decisões emanadas por ela viessem encharcadas do propósito de conferir segurança jurídica nas relações e conflitos sociais. Ao contrário disso, a prestação jurisdicional refletida no Tema 1.066 poderá dar azo a toda vez que alguém quiser aplicar no âmbito previdenciário os prazos dos dispositivos das Leis nº 8.213/91 e 9.784/99, e isso gera uma dubiedade de entendimento, uma vez que a solução jurídica para o mesmo problema poderá atrair soluções diferentes.

Se o objetivo do acordo era trazer a paz social aos conflitos previdenciários, poderá gerar um carnaval de decisões conflitantes, já que a legislação que se contrapõe ao acordo não foi revogada.

Outro efeito colateral desse ativismo judicial supremo será possivelmente o aumento das filas do INSS e a torra da paciência do segurado que deseja ter acesso ao benefício previdenciário e precisará esperar mais. Ou, pior, do hipossuficiente que necessita do benefício assistencial e também deverá suportar a demora, ainda que em situação de maior vulnerabilidade social e financeira. Não se pode ser ingênuo e acreditar que a mera formalização de um acordo terá o condão de melhorar a eficiência administrativa ou o tempo de espera na análise dos pedidos concessórios, a fim de que o INSS respeite a partir de agora os novos prazos. O que ajuda a resolver essa equação é, sobretudo, a contratação de capital humano para fazer a intricada análise dos pressupostos legais previdenciários, à luz de uma legislação que muda a toda hora.

Dificilmente o instituto conseguirá se manifestar no processo administrativo antes de findar os novos prazos. Certamente irá extrapolar com frequência o novo parâmetro. E, caso isso se concretize, pagará apenas como sanção juros moratórios e correção monetária, além de ganhar mais dez dias para analisar o atraso do requerimento administrativo. Em ações civis públicas, ajuizadas anteriormente com a mesma demanda do Tema 1.066, o descumprimento poderia custar multas de até R$ 10 mil por cada segurado que provasse a violação do prazo.

Em resumo, como não se pode reconhecer a inconstitucionalidade de um acordo que foi concebido justamente por aquele que já devolve soluções jurídicas com a análise final do controle de constitucionalidade, o Supremo — ao homologar os interesses consensuais do INSS e do MPF em criar novos prazos — submeterá a população a uma espera maior pelo serviço público, potencializando mais filas no âmbito administrativo, e, por consequência, aumentará o espaço de tempo daquele que também necessite procurar o Poder Judiciário para reclamar da autarquia previdenciária.

Autores

  • é advogado especialista em Previdência Social pela EsmatraVI (Escola Superior da Magistratura Trabalhista da 6ª Região) e pela Esmafe/RS (Escola de Magistratura Federal no Rio Grande do Sul), professor de Direito Previdenciário de pós-graduação e mestre em Direito Previdenciário pela PUC/SP.

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