Opinião

A correta interpretação sistemática do artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública

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5 de março de 2021, 13h34

1) O artigo 16 da Lei da Ação Civil Pública tem a seguinte redação:
"A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator…".

A Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, sem declarar a inconstitucionalidade desse dispositivo, mas interpretando-o sistematicamente, considerando os demais dispositivos do microssistema de processos coletivos, em especial os artigos 93 e 103 do Código de Defesa do Consumidor, concluiu que a sentença de mérito proferida em ação civil pública pode ter eficácia nacional desde que proferida por juiz de capital de Estado.

2) As instituições financeiras, no recurso extraordinário, sustentam que a decisão do STJ equivale à declaração de inconstitucionalidade do artigo 16.

3) A jurisprudência do STF é no sentido de que "inexiste repercussão geral da limitação territorial da coisa julgada nas ações coletivas, por não se tratar de matéria constitucional" (Tema 715 – RE 796.473, rel. min. Gilmar Mendes).

4) A preliminar de não conhecimento do RE, por inexistência de matéria constitucional, embora tenha sido já afastada, deve ser reexaminada pela Suprema Corte na hipótese de efetiva inexistência de tema constitucional a ser decidida. Se o tema a ser julgado diz respeito à correta interpretação de um preceito infraconstitucional dentro de um sistema de normas jurídicas, como ocorre no caso, inexiste preclusão quanto à questão preliminar de inexistência de questão constitucional.

5) A norma em análise dispõe que a sentença fará coisa julgada "nos limites da competência territorial do órgão prolator".

Não preceitua, como pretendem os recorrentes, que a sentença fará coisa julgada nos "limites territoriais do juiz competente". Não se trata de jogo de palavras, e, sim, de considerações que dizem respeito à distinção entre competência e jurisdição do órgão prolator de uma sentença.

A respeito, merece ser invocado o preciso magistério de Celso Neves (de quem tive o privilégio de ser assistente nos cursos de graduação e pós-graduação nas Arcadas) no teor de que a competência não é medida de jurisdição. Objetivamente, ela é "relação de adequação legítima entre o processo e o órgão da tutela jurídica processual" e, subjetivamente, "é o atributo de capacidade para o exercício da tutela processual" (Estrutura Fundamental do Processo Civil, Forense, 1997, § 103, pág. 56).

A competência territorial, em suma, é um critério de atribuição ao juiz da capacidade de exercer, num determinado processo, a tutela jurisdicional. O que estabelece o limite de sua jurisdição, num dado processo, é o objeto litigioso do processo, que é fixado pelo autor por meio do pedido fundado em uma causa de pedir. eficácia da sentença, ou seja, sua propriedade de produzir efeitos nos planos subjetivo e objetivo, que se torna imutável pela coisa julgada, é determinada pelo objeto litigioso do processo.

Examinemos, por exemplo, uma ação de divórcio. O Código de Processo Civil, por meio da regra de competência territorial, estabelece que o foro competente para a ação de divórcio é o do "último domicílio do casal, caso haja filho incapaz" (artigo 53, I, b, CPC). Distribuída corretamente a ação, haverá a relação de adequação entre o processo e o juiz. Mas isso não significa que os efeitos da sentença a ser proferida pelo juiz deverão estar contidos nos limites do seu território. Os limites dependem do conteúdo da sentença, que é determinado pelo objeto litigioso fixado pelo pedido do autor. No caso de divórcio, a sentença do juiz, seja acolhendo ou desacolhendo da ação, deverá produzir efeitos além dos limites territoriais da competência do juiz. Se vier a ser acolhido o pedido de divórcio, o casal estará divorciado em todo território nacional. Outro exemplo: ação de cobrança proposta por dois credores titulares de créditos distintos e domiciliados em comarcas diferentes (hipótese de litisconsórcio facultativo) contra um mesmo devedor. O foro competente será o do domicílio do réu (artigo 46, CPC). A eficácia da sentença, nos planos subjetivo e objetivo, tornada imutável pela coisa julgada, não estará limitada aos limites territoriais do órgão prolator, pois o objeto litigioso é mais amplo e abrangente de pessoas domiciliadas em mais de um foro.

6) Aplicadas essas distinções às ações coletivas, temos de examinar, antes de mais nada, as regras de competência territorial a elas aplicáveis.

O microssistema brasileiro de ações coletivas é formado, basicamente, pela Lei da Ação Civil Pública (LACP, Lei nº 7.347/1985) e pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990), que devem ser conjugadamente aplicados, conforme expressamente dispõem o artigo 21 da LACP e artigo 90 do CDC.

As regras de competência estão estabelecidas no artigo 93 do CDC, que dispõe, no inciso I, que a competência para a causa será do "foro do lugar onde ocorreu ou deva ocorrer o dano, quando de âmbito local" (é a mesma regra do artigo 2º, da LACP); e, no inciso II, estabelece que a competência será do foro da "capital do Estado" ou "do Distrito Federal, para os danos de âmbito nacional ou regional".

7) Essas regras tornam claro que o microssistema brasileiro de processos coletivos expressamente admite a possibilidade de ações coletivas que tenham por objeto danos regionais e até nacionais. Estão elas em exata conformidade com as regras que conceituam os danos difusos e coletivos, no artigo 81, nº I e II, do CDC, como "transindividuais de natureza indivisível", que devem ser tutelados de forma molecular, e não atomizadamente. E em função das diferentes espécies de temas a serem decididas nas ações coletivas, o artigo 103 do CDC, trouxe normas sobre coisa julgada, complementando a regra do artigo 16 da LACP.

E a decisão do Superior Tribunal de Justiça contra a qual se insurgem as recorrentes nada mais fez que interpretar e aplicar conjugadamente essas regras do microssistema brasileiro de processos coletivos, confirmando o acórdão que julgara a causa nos limites "da competência territorial do órgão prolator", no caso o foro da capital do Estado por ser respeitante a danos de abrangência nacional.

8) A fragmentação dos direitos de natureza incindível, que será a consequência do acolhimento da pretensão recursal, afetará profundamente o sistema de proteção processual coletiva, trazendo inúmeras consequências nefastas, como ofensa ao adequado acesso à justiça, a proliferação de demandas individuais, o risco de decisões contraditórias e a ineficiência do nosso sistema de Justiça.

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