Opinião

Sobre um estranho intermediário

Autor

  • Gustavo Marinho

    é advogado mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP especialista em Direito Administrativo e Financeiro pela Universidade de Salamanca (Espanha) e especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP. É membro do Foro Iberoamericano de Derecho Administrativo (FIDA) e editor da Contracorrente.

5 de março de 2021, 15h10

Pouca gente sabe, mas a atividade notarial e de registro no Brasil (atividade verificadora) é uma atividade pública, exercida em caráter privado por pessoas físicas, mediante delegação do poder público. Aquele que popularmente é chamado de "dono do cartório", o delegatário, é selecionado mediante concurso público de provas e títulos. São o que a doutrina chama de particulares em colaboração com a Administração Pública.

A atividade verificadora é tão relevante para o nosso país que a Constituição Federal de 1988 expressamente delineia seus principais contornos. Vejamos:

"Artigo 236  Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público.
§1º. Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seus prepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§2º. Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.

§3º. O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses".

Apesar de serem pessoas físicas e exercerem atividade de caráter privado, os delegatários submetem-se a um regime jurídico próprio, cuja natureza é de Direito Público [1]. O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, aliou a versatilidade e o empreendedorismo do setor privado com a rigorosa proteção jurídica do interesse público que subjaz à atividade verificadora.

Mas entre o Estado, os delegatários e as pessoas físicas e jurídicas que confiam e utilizam os serviços notariais e de registro, uma nova figura foi introduzida a fórceps no Direito brasileiro, o nosso estranho intermediário: as centrais registrais e notariais.

As centrais de cartórios, na prática, nada mais são do que pseudocartórios, que fazem a ponte eletrônica entre o usuário (pessoa física ou jurídica) e os delegatários. A atividade das centrais não está contemplada na Constituição Federal, tampouco em leis infraconstitucionais, mas apenas em atos e decisões infralegais.

Mas não é apenas a falta de previsão legal e constitucional para a existência e atuação das centrais que nos causa espécie, mas especialmente a quantidade de dados que uma pessoa jurídica de direito privado, totalmente alheia ao regime jurídico dos serviços notariais e de registro, acessa diariamente.

Os artigos 30 e 46 da Lei nº 8.935/1994 estabelecem o dever e a responsabilidade pessoal dos delegatários de cartórios em guardar, proteger e preservar o sigilo de livros, papéis e documentos da serventia. A lei não fala em centrais.

A Lei Geral de Proteção de Dados (Lei nº 13.709/2018) estabelece uma série de direitos e obrigações a todos aqueles que têm acesso a dados pessoais de pessoas físicas e jurídicas, inclusive aos serviços notariais e de registro, que se equiparam, para fins dessa lei, às pessoas jurídicas de direito público (artigo 23, §§4º e 5º).

Além disso, essa mesma lei proíbe peremptoriamente que o poder público transfira a entidades privadas os dados de sua base, inclusive aqueles obtidos a partir da atividade notarial e de registro. Eis o artigo 26:

"Artigo 26  O uso compartilhado de dados pessoais pelo Poder Público deve atender a finalidades específicas de execução de políticas públicas e atribuição legal pelos órgãos e pelas entidades públicas, respeitados os princípios de proteção de dados pessoais elencados no art. 6º desta Lei.
§1º É vedado ao Poder Público transferir a entidades privadas dados pessoais constantes de bases de dados a que tenha acesso (…)".

Mais uma vez, toda a responsabilidade e o dever de preservar os dados não é transferida às centrais, que pela LGPD estão expressamente proibidas de receber tais informações. Trocando em miúdos: apenas os cartórios podem coletar, tratar e registrar os dados obtidos a partir da chamada atividade verificadora, nunca as centrais.

Não bastassem a Constituição Federal, a Lei dos Registros Públicos, o Marco Civil da Internet e a Lei de Proteção de Dados Pessoais, a Lei da Liberdade Econômica é clara ao prescrever que é dever da Administração Pública evitar o "abuso do poder regulatório" para criar reserva de mercado, restringir competição, aumentar custos de transação e "criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros".

As "centrais", cartórios de cartórios, violam às abertas todos esses direitos de liberdade. Afinal, os "donos de cartório" ficam proibidos de empreender e de exercer suas delegações previstas na Constituição. A sociedade paga "taxa extra" a um intermediário escolhido sem licitação, que gera prazo maior e custo maior.

A sociedade tem o direito de acesso direto e eletrônico a todos os cartórios do Brasil, sem passar por nenhum intermediário obrigatório.

 


[1] ADI 1.378 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 30-11-1995, P, DJ de 30-5-1997.

Autores

  • é advogado, mestre em Direito Administrativo pela PUC/SP, especialista em Direito Administrativo e Financeiro pela Universidade de Salamanca – Espanha e especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP.

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