Opinião

As contradições intrínsecas da liminar na ADPF 779

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5 de março de 2021, 10h37

1) Considerações preliminares
Em novembro de 2019, julgando em conjunto as ADCs 43, 44 e 54, por maioria, o STF alterou a decisão do HC 126.292 e determinou que o cumprimento de pena somente poderá ocorrer após o trânsito em julgado de decisão condenatória, nos termos do artigo 283 do CPP, considerando-o compatível com a CF (inc. LVII do artigo 5º) ao destacar que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". No entanto, no encerramento desse julgamento histórico, após proclamado o resultado, o presidente Dias Toffoli fez uma declaração no mínimo contraditória, exteriorizando sua simpatia pelo cumprimento de pena após condenação pelo Tribunal do Júri, que é uma decisão de primeiro grau. Referida declaração ignora, além da garantia constitucional do trânsito em julgado, que o próprio Supremo Tribunal Federal acabara de declarar o fato de que as decisões do Tribunal do Júri, muitas delas, são reformadas pelos Tribunais de Justiça, sem ferir a sua soberania.

Com efeito, as decisões do Tribunal do Júri são submetidas aos mesmos princípios constitucionais e, não raro, referidas decisões são anuladas ou reformadas pelos tribunais, para serem submetidas a novo julgamento (artigo 593, inciso IV e suas alíneas do CPP). As reformas de muitas decisões do tribunal popular pelos Tribunais de Justiça não violam o princípio da soberania dos veredictos, eis que fundadas em error in judicando ou em error in procedendo, justificando suas correções, na medida em que, como dizia José Frederico Marques [1], a soberania do júri não é absoluta, nos seguintes termos: "Consistirá, porém, essa soberania na impossibilidade de um controle sobre o julgamento, que, sem subtrair ao júri o poder exclusivo de julgar a causa, examine se não houve grosseiro error in judicando? De forma alguma, sob pena de confundir-se essa soberania com a onipotência insensata e sem freios".

A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri, com efeito, não os torna imunes à submissão ao princípio do duplo grau de jurisdição, inclusive, quanto ao exame de mérito, especialmente na hipótese de decisão manifestamente contra a prova dos autos (artigo 593, III, "d", do CPP). As previsões dos demais incisos tampouco resultam afastadas da apreciação do segundo grau, inclusive matéria fática que implique nulidades, capituladas nas alíneas do inciso IV do mesmo artigo antes mencionado.

As garantias constitucionais vêm sendo paulatinamente vilipendiadas no Brasil contemporâneo. A constante exacerbação de poderes por parte do Ministério Público e, excepcionalmente, do próprio STF tornou-se frequente, especialmente após o início da operação "lava jato", colocando em risco a separação dos poderes e das devidas atribuições desses órgãos federais. A judicialização da política é fato comprovado, a qual vem ocorrendo, muitas vezes, pelo enfraquecimento do Poder Legislativo, esvaziado em sua função, pela excessiva e até indevida intervenção do Poder Judiciário. O cenário completa-se com um Poder Executivo incapacitado de obter resultados e efetivar as reformas das quais o país tanto necessita.

Recentemente, o ministro Dias Toffoli concedeu liminar na ADPF n° 779, proibindo a admissibilidade da tese da legítima defesa da honra perante o Tribunal do Júri. Considerou que referida tese defensiva seria inconstitucional por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. Pretendeu dar interpretação conforme à Constituição a dispositivos do CP e do CPP, objetivando excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa. Referida decisão pretendeu impedir que os defensores de réus sustentem, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à essa tese) perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Ignorou, contudo, a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri assegurada, igualmente, pelo texto constitucional, confundindo soberania, procedimento e competência. O Tribunal do Júri é constitucionalmente soberano para acatar ou recusar qualquer tese fático-jurídica submetida a seu crivo (inciso XXXVIII, alínea "a", do artigo 5º da CF). Em outros termos, a soberania do júri é tão constitucional quanto a proteção da honra e do instituto da legítima defesa. São institutos constitucionais de mesma grandeza e a sua utilização não pode ser limitada ou reduzida, abstratamente, por nenhum tribunal, principalmente em decisão monocrática, mas podem e devem ser limitados ou afastados pelo confronto de outros institutos jurídicos no âmbito e no bojo do devido processo legal, segundo a mesma CF (inciso LV do artigo 5º). Aliás, é assim que funciona harmonicamente nosso ordenamento jurídico, que tem seus próprios mecanismos de controle de legalidade e de constitucionalidade dos meios e teses defensivas.

Por isso, venia concessa, não tem razão o digno e culto ministro Dias Toffoli quando professa que "a chamada legítima defesa da honra não encontra qualquer amparo ou ressonância no ordenamento jurídico". Pelo contrário, o Código Penal dedica um capítulo inteiro (V) da Parte Especial exclusivamente na tutela do bem jurídico honra (artigos 135 a 145), dando-lhe, como se vê, excepcional importância, não apenas sob a ótica criminal, mas também no plano cível, quando lhe assegura justa indenização e reparação à sua ofensa.

Por outro lado, no Tribunal do Júri a autoridade judiciária não julga, mas apenas o preside, cabendo aos representantes da sociedade (sete jurados) darem o veredito final, aceitando ou rechaçando as teses defensivas, sejam quais forem, sem restrições ou limitações legais ou jurisprudenciais. Recordando, mais uma vez, há a soberania desses vereditos, sem restrições jurisprudenciais, observando-se a liturgia desse instituto jurídico-constitucional nos crimes dolosos contra a vida. Não se questiona, na verdade, a grande desproporção entre a importância do bem jurídico vida e do bem jurídico honra, cujas penas cominadas bem a demonstram, segundo critérios do legislador. Também por isso é incorreta a afirmação do digno e culto ministro do STF, acima citada, quando afirma que, em outras palavras, a honra não encontra proteção em nosso ordenamento jurídico. Certamente, o legislador brasileiro não incorreu nessa heresia deixando ao desamparo um dos mais importantes atributos da personalidade humana, qual seja, a sua honra.

A Abracrim, inconformada com essa decisão monocrática do STF, postou a seguinte nota:

"A questão da recente interferência do STF na soberania da instituição do júri (artigo 5° CF, inc. XXXVIII, alíneas 'a' e 'c' e inc. LV, cláusulas pétreas) e inviolabilidade da advocacia em seus atos e manifestações no exercício da profissão (artigo 133 da CF) e Lei 8.906/94 (artigo 7°, inc. I). O lugar de refutar teses defensivas ou acusatórias é no plenário do Júri por seus legítimos protagonistas, caso a caso, jamais no STF. Relevantíssima questão técnica. Elias Mattar Assad. Presidente".

2) Constitucionalidade da proteção dos bens jurídicos
Qualquer bem jurídico pode ser protegido pelo instituto da legítima defesa, para repelir agressão injusta, atual ou iminente, sendo irrelevante a distinção entre bens pessoais e impessoais, disponíveis ou indisponíveis. Qualquer bem jurídico, relevante, importante, inclusive bens jurídicos pouco valiosos também podem ser protegidos pela legítima defesa, tais como, ofensas à honra, lesões corporais leves etc., ao contrário do entendimento adotado pelo ministro Dias Toffoli na decisão liminar da ADPF 779. Todos os bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico admitem, em tese, a legítima defesa, inclusive a honra. Importa, evidentemente, analisar, nessa hipótese, a necessidade, moderação e, principalmente, a proporcionalidade dos meios utilizados na defesa desses bens jurídicos. Esse é o parâmetro adequado para o enfrentamento das teses defensivas, especialmente o da legítima defesa. O Código Penal encarregou-se de estabelecer, em sua definição de legítima defesa, que é um conceito universal, seus limites objetivos e subjetivos. Na verdade, embora se reconheça a legitimidade da reação pessoal, nas circunstâncias definidas pela lei, o Estado exige que essa legitimação excepcional obedeça aos limites da necessidade, da proporcionalidade e da moderação [2], independentemente da natureza do bem jurídico lesado-protegido.

A configuração de uma situação de legítima defesa está diretamente relacionada com a intensidade e gravidade da agressão, periculosidade do agressor e com os meios de defesa disponíveis. No entanto, não se exige uma adequação perfeita, milimetrada, entre ataque e defesa para se estabelecer a necessidade dos meios e a moderação no seu uso. Reconhece-se a dificuldade valorativa de quem se encontra emocionalmente envolvido em um conflito no qual é vítima de ataque injusto. A reação ex improviso não se compatibiliza com uma detida e criteriosa valoração dos meios necessários (proporcionalidade) à repulsa imediata e eficaz.

Necessários são os meios suficientes e indispensáveis para o exercício eficaz da defesa. Se não houver outros meios, poderá ser considerado necessário o único meio disponível (ainda que superior aos meios do agressor), mas, nessa hipótese, a análise da moderação do uso deverá ser mais exigente, mais criteriosa, mais ajustada às circunstâncias. Aliás, além de o meio utilizado dever ser o necessário para a repulsa eficaz, exige-se que o seu uso seja moderado, especialmente quando se tratar do único meio disponível e apresentar-se visivelmente superior ao que seria necessário. Essa circunstância deve ser determinada pela intensidade real da agressão e pela forma do emprego e uso dos meios utilizados. Como afirmava Welzel, "a defesa pode chegar até onde seja requerida para a efetiva defesa imediata, porém, não deve ir além do estritamente necessário para o fim proposto" [3]. Havendo disponibilidade de defesas, igualmente eficazes, deve-se escolher aquela que produza menor dano.

Modernamente, defendemos a invocação do princípio da proporcionalidade na legítima defesa, na medida em que os direitos absolutos devem circunscrever-se a limites muito exíguos. Seria, no mínimo, paradoxal admitir o princípio da insignificância para afastar a tipicidade ou ilicitude de determinados fatos, e sustentar o direito de reação desproporcionada à agressão, como, por exemplo, matar alguém para defender quaisquer valores menores. Nessa linha de orientação manifestava-se Johannes Wessels, afirmando que "o direito à legítima defesa encontra seu limite na proibição geral do abuso de direito e nos elementos normativos da 'imposição': uma defesa, cujas consequências situam-se em crassa desproporção para com o dano iminente, é abusiva e, assim, inadmissível" [4].

São esses aspectos que definem o cabimento ou a congruência que definem a admissibilidade da legítima defesa contra a honra e não uma equivocada, arbitrária e inconstitucional decisão monográfica, violando, inclusive, a soberania do Tribunal do Júri, até porque os crimes contra a honra não são da competência desse tribunal.

Pois bem, é neste âmbito da proporcionalidade que se deve discutir, in concreto, a correção ou incorreção da tese de legítima de defesa da honra para justificar, por exemplo, a prática de um homicídio. Ninguém discute a abismal desproporcionalidade entre um crime contra vida para defender a honra pessoal. Em caso que tais salta aos olhos a absoluta de desproporcionalidade entre os dois bens jurídicos, honra e vida, ainda que ambos sejam penalmente protegidos. Nessas hipóteses há, na verdade, duas desproporcionalidades: uma, entre os dois bens jurídicos em si — honra e vida — havendo um abismo entre ambas; e outra, entre a conduta escolhida (morte do ofensor) para repelir a ofensa sofrida (honra lesada). Racionalmente, nos tempos atuais, juízo algum, leigo ou não, admitirá, nessas circunstâncias, a proporcionalidade entre matar para defender a honra, ou seja, a invocação de ofensa da honra para justificar a prática de um homicídio ou feminicídio. O que fundamenta a impossibilidade de julgamento absolutório da legítima defesa da honra no Tribunal do Júri, não é a inconstitucionalidade ou desproteção jurídica da honra, como afirmou o digno e culto ministro, mas tão somente a desporporcionalidade entre ambas, descaracterizando a exigência conceitual do requisito denominado "meios necessário".

Pois é nesse campo que se deve repelir eventual tese de legítima defesa da honra, na hipótese de homicídio doloso, mas nunca impedir ou proibir que, eventualmente ou não, seja invocada no Tribunal do Júri, sob pena de inconstitucionalidade de dita decisão, por cerceamento ao direito constitucional da ampla defesa de qualquer bem jurídico penalmente tutelado, inclusive da legítima defesa da honra. Enfim, o Tribunal do Júri tem competência para recusar referida tese, e, normalmente, o fará, mas jamais se poderá proibir o direito ao exercício da plenitude de defesa, invocando a tese que lhe parecer mais conveniente, ainda que não seja recepcionada pelo júri, exatamente pela desproporcionalidade dos bens jurídicos em jogo e pelo meio usado ser inadequado e impróprio.

3) Da imprescindibilidade do animus defendendi
Embora não se exija a consciência da ilicitude para afirmar a antijuridicidade de uma conduta, é necessário, para afastá-la, que se tenha, pelo menos, conhecimento da ação agressiva sofrida, além do propósito de defender-se. A legítima defesa deve ser objetivamente necessária e subjetivamente orientada pela vontade de defender-se. Como afirmava Welzel, "a ação de defesa é aquela executada com o propósito de defender-se da agressão. Quem se defende tem de conhecer a agressão atual e ter a vontade de defender-se" [5].

A reação legítima autorizada pelo Direito somente se distingue da ação criminosa pelo seu elemento subjetivo: o propósito de defender-se. Com efeito, o animus defendendi atribui um significado positivo a uma conduta objetivamente desvaliosa (negativa). Contrapõe-se assim o valor da ação na legítima defesa ao desvalor da ação na conduta criminosa. Aliás, o valor ou desvalor de qualquer ação será avaliado segundo a orientação de ânimo que comandar a sua execução. Somente a presença dos elementos objetivos constitutivos de uma causa de exclusão de criminalidade não pode justificar uma ação ou omissão típica, se faltar o elemento subjetivo de dita causa justificante.

Enfim, em sede de Direito Penal, um fato que na sua aparência exterior apresenta-se objetivamente com os mesmos aspectos pode, dependendo da intenção do agente, receber definição variada. Assim, causar a morte de alguém, dependendo das circunstâncias, motivos e, particularmente, do elemento subjetivo, pode configurar homicídio doloso, homicídio culposo, legítima defesa real, legítima defesa putativa, excesso doloso ou culposo etc.

 


[1] Marques, José Frederico. A instituição do júri, Campinas, Bookseller, 1997, p. 75.

[2]. Maurach e Zipf, Derecho Penal, cit., v. 1, p. 449-50.

[3]. Welzel, Derecho Penal alemán, cit., p. 125.

[4]. Johannes Wessels, Direito Penal, cit., p. 72-3.

[5]. Welzel, Derecho Penal alemán, cit., p. 125.

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