Opinião

Prova pericial e contraditório participativo nos JEFs

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5 de março de 2021, 6h05

No âmbito dos Juizados Especiais Federais (JEFs), prevaleceu desde sua concepção, em 2001, a compreensão de que, em razão do rito sumaríssimo, caracterizado pela concentração dos atos processuais e pela celeridade, simplicidade e informalidade, a ausência de intimação das partes para se pronunciar sobre o laudo pericial não caracterizava nulidade ou que, no máximo, esta era relativa, de forma se exigir demonstração de efetivo prejuízo por parte de quem alega o vício.

Tal entendimento foi consolidado nos JEFs com a aprovação, em agosto de 2007, do Enunciado nº 84 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (Fonajef): "Não é causa de nulidade nos Juizados Especiais Federais a mera falta de intimação das partes da entrega do laudo pericial".

Todavia, o cenário normativo foi alterado com a entrada em vigor, em março de 2016, do novo Código de Processo Civil, que estabeleceu as seguintes normas fundamentais do processo civil:

"Artigo 7º — É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais, competindo ao juiz zelar pelo efetivo contraditório.
Artigo 9º — Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Artigo 10 — 
 O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício".

Nitidamente, o legislador pretendeu, no âmbito do processo civil, reforçar a dimensão do contraditório como oportunidade de as partes influenciarem a formação da convicção do juiz. Essa faceta do contraditório "reconhece a importância da efetiva participação das partes na formação do convencimento do juiz, mas a sua real aplicação depende essencialmente de se convencerem os juízes de que assim deve ser no caso concreto" [1].

A importância do contraditório, realçada nos dispositivos legais acima transcritos, foi bem delineada na noção de processo desenvolvida por Elio Fazzalari [2], que concebeu o processo como um procedimento em contraditório, de estrutura dialética, do qual as partes devem participar ativamente, em simétrica paridade, com igualdade de oportunidades, de modo que possam contribuir na preparação do ato que lhes afetará. Na composição do ato jurisdicional, "(…) é contemplada a participação não só —  e obviamente —  do seu autor, mas também dos destinatários dos seus efeitos, em contraditório", de maneira que eles possam desenvolver atividades cujos resultados o julgador "pode desatender, mas não ignorar" [3].

Aroldo Plínio Gonçalves [4], ao cuidar do tema à luz das lições do supracitado jurista italiano, explicita com maestria a visão do contraditório "como garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são 'interessados', ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento (…)". Ele esclarece que o contraditório se passa entre as partes e que ao juiz, terceiro imparcial, cabe assegurá-lo, garantindo igualdade de oportunidades (paridade de armas) na fase de preparação do ato final [5]

Foi a partir dessa compreensão que o Fonajef, em abril de 2016, cancelou o aludido Enunciado nº 84 e publicou o Enunciado nº 179, o qual diz que "cumpre os requisitos do contraditório e da ampla defesa a concessão de vista do laudo pericial pelo prazo de cinco dias, por analogia ao caput do artigo 12 da Lei nº 10.259/2001". Ademais, as Turmas Reunidas dos JEFs em Belo Horizonte-MG cancelaram, ainda em 7/11/2014, o Enunciado nº 48 ("Não acarreta nulidade por cerceamento de defesa a ausência de vista do laudo pericial antes da prolação da sentença, em observância aos princípios da simplicidade, economia processual e celeridade (artigo 2º da Lei nº 9.099/1995) que norteiam os Juizados Especiais, podendo eventual oposição ou questionamento ao laudo ser arguidos no recurso contra a sentença") exatamente pelas razões aqui aduzidas.

Nesse contexto, é preciso que todas as unidades de JEF passem a atinar para essa nova realidade jurídico-normativa e assegurem às partes o respeito ao contraditório na esteira do que foi preconizado pela nova codificação. Produzida a prova pericial, há de se propiciar às partes a chance de influenciarem o convencimento do juiz, de contribuírem para a construção da solução que se entende justa e adequada para o caso. Essa compreensão trouxe para o processo judicial uma visão democrática, tornando-o um espaço discursivo (dialógico-crítico) e de construção participada da decisão judicial, a partir do contraditório, em simétrica paridade. Falta juridicidade na comum afirmação da instância recursal que, ao refutar a preliminar em foco, diz que a parte autora não provou efetivo prejuízo. Ora, o pleito foi denegado, sendo manifesto o prejuízo de quem não teve a chance de falar, ainda que para ver suas ponderações rechaçadas. O mesmo se diga da assertiva no sentido de que a manifestação da parte a respeito do laudo oficial pôde ser apresentada para o exame da instância ad quem, como se os litigantes não tivessem o direito de influenciar a formação do convencimento do julgador de primeiro grau. "Firmada a convicção do magistrado prolator da sentença com base em laudo que não foi contraditado, a impugnação a posteriori sabidamente não tem o mesmo grau de influência que teria tido se apresentada oportunamente. (…) O acolhimento de conclusão pericial não submetida previamente às partes é incompatível com as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa" [6].

A questão aqui debatida é ainda mais grave nos casos em que, por iniciativa do juízo ou por sugestão do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a perícia é antecipada (realizada antes da contestação —  o que inegavelmente constitui uma boa prática). Entretanto, com essa mudança de rito, o INSS contesta depois que o laudo pericial já esta anexado aos autos, tendo a chance de impugná-lo, mas não se assegura à parte autora igual oportunidade, violando-se o postulado do contraditório e também o da igualdade processual. Cassio Scarpinella Bueno [7] ensina que: "A isonomia ou igualdade deve ser entendida no sentido de que o Estado juiz (o magistrado que o representa) deve tratar de forma igualitária os litigantes. Seja dando-lhes igualdade de condições de manifestação ao longo do processo, seja criando condições para que essa igualdade seja efetivamente exercitada. É tradicional descrever o princípio da isonomia com o nome, bastante eloquente, 'paridade ou igualdade de armas'. Esta forma de tratar do princípio evidencia bem a necessidade de oferecimento de iguais oportunidades aos litigantes ao longo do processo".

Fica claro, pois, que não se pode tolerar essa quebra de isonomia, devendo as varas de JEF alinhar seus procedimentos ou rotinas de trabalho para que isso não se verifique e macule a legitimidade do provimento jurisdicional, como ocorreu na hipótese vertente. Se a perícia foi antecipada, deve-se, após a contestação do INSS, dar à parte autora a chance de falar em cinco dias. Se a perícia não foi adiantada, assim que o laudo for anexado aos autos, devem as partes ser intimadas para terem a oportunidade de, querendo, sobre ele se manifestar. Por isso que foi editado o supracitado enunciado nº 179 do Fonajef, que traz em si a concepção de um processo judicial que respeita princípios fundamentais, como deve ser num Estado democrático de Direito. Ainda, nessa linha de pensamento, o Fórum Regional dos Juizados Especiais Federais do TRF da 2ª Região aprovou, em maio de 2016, o Enunciado nº 71, que dispõe: "O juiz deve oportunizar vista às partes, antes da prolação da sentença: do laudo pericial, dos cálculos do contador e de documento novo relevante para a solução da causa".

Como bem pontuou o juiz federal Iorio Siqueira D’Alessandri Forti [8], "a garantia constitucional das partes à razoável duração do processo não sugere e muito menos impõe a pressa, não autoriza a busca por velocidade à custa do atropelo do devido processo legal: cada um dos atos processuais estabelecidos em lei deve tomar exatamente o tempo necessário à consecução de sua finalidade, não mais (porque a demora injustificada suprime do processo a sua eficiência) e não menos (porque o atalhamento de atos essenciais priva as partes da plena possibilidade de exercerem sua ampla defesa)".

Enfim, a celeridade e a simplicidade que informam o funcionamento dos juizados não podem retirar das partes a oportunidade de se pronunciar (em contraditório participativo e simétrico) sobre uma prova tão decisiva como é a pericial em casos de benefícios por incapacidade laboral e de benefícios assistenciais a deficientes, assim como não podem acarretar violação ao princípio da isonomia processual, sob pena de restar distante o ideal de processo constitucional e democrático.

 


[1] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. 9. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 177.

[2] FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Trad. da 8. ed. por Elaine Nassif. São Paulo: Bookseller, 2006, pp. 118-119.

[3] FAZZALARI, op. cit., p. 112.

[4] GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica processual e teoria do processo. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, p. 103.

[5] GONÇALVES, op. cit., p. 104.

[6] Recurso Cível nº 5002118-26.2018.4.02.5112/RJ. 5ª Turma Recursal da SJRJ. Relator: Juiz FEderal Iorio Siqueira D’Alessandri Forti. Decisão proferida em 1/10/2019, p. 4-5.

[7] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil: Volume único. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p 80.

[8] Recurso Cível nº 5002118-26.2018.4.02.5112/RJ. 5ª Turma Recursal da SJRJ. Relator: Juiz federal Iorio Siqueira D’Alessandri Forti. Decisão proferida em 01/10/2019, p. 5.

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    é juiz federal da Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais em Uberlândia/MG, doutorando e mestre em Direito pela UFMG, ex-promotor de Justiça do MPRO e ex-juiz de Direito do TJAC.

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