Opinião

Supremo admite barrar ações civis que impliquem duplicidade punitiva

Autores

  • Anderson Pomini

    é secretário de Justiça da Prefeitura de São Paulo. Advogado especialista em direito público e eleitoral.

  • Augusto Eduardo de Souza Rossini

    é advogado sócio do RRCN Advogados diretor dos Cursos Jurídicos da Uninove mestre e doutor em Direito Penal pela PUC-SP pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de São Paulo e procurador de Justiça aposentado.

4 de março de 2021, 15h18

A decisão judicial que acolhe Habeas Corpus para trancar a ação penal pode impedir o processamento de uma ação civil pública lastreado nos mesmos fatos e com identidade de pedidos? Para o STF, sim. Recente decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes, proferida na Reclamação nº 41557-SP, vem reafirmar a tese da mitigação da independência entre as esferas penal e cível, em especial quando a matéria envolver o direito administrativo sancionador.

Tal mitigação não é tese exatamente inovadora, pois o próprio Código Civil, mesmo reconhecendo em seu artigo 935 que a responsabilidade civil é independente da criminal, já prescrevia a impossibilidade de novo questionamento sobre a existência de fato ou conduta cujo deslinde tenha esgotado o conhecimento do acervo fático-probatório na esfera penal.

Parte da jurisprudência nacional já havia incorporado o entendimento de que o exaurimento do mérito na ação penal irradiaria efeitos vinculantes no sentido de barrar o processamento de demanda similar em outras esferas. Mesmo para a corrente filiada à tese da ampla independência entre as esferas, a decisão absolutória do juízo criminal fundada na ausência de materialidade ou na prova negativa de autoria, sempre teve relevância como razão de decidir sobre o recebimento ou não de nova demanda na esfera cível que versasse sobre os mesmos fatos e que contivesse pedidos similares.

A novidade agora é que, a partir da referida decisão do STF, o fundamento utilizado para o simples trancamento da ação penal pode ser arguido como causa impeditiva recebimento e processamento de ações de improbidade administrativa. Em decisão monocrática, o ministro Gilmar Mendes reconhece que a acolhida de uma ideia de "independência mitigada" entre as esferas penal e administrativa (cível) na interpretação da Lei de Improbidade Administrativa se impõe diante do princípio de vedação ao chamado bis in idem.

De fato, o microssistema processual que rege as ações de improbidade integra o chamado direito administrativo sancionador e muito se aproxima da metodologia da persecução penal. Deve, portanto, ser compreendido como uma extensão do jus puniendi estatal, ainda que processado na esfera cível.

A decisão do STF, tirada em sede de Habeas Corpus, induz reflexos na própria interpretação de alguns dos novos artigos inseridos ou alterados no Código de Processo Penal (CPP) pela Lei nº 13.964/19. É o caso do acordo de não persecução penal. O artigo 28-A do CPP prescreve que não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor esse acordo.

Conquanto o próprio dispositivo do artigo 28-A do CPP contemple a possibilidade de reprovação e prevenção do crime, o acordo de não persecução penal resultante supre, por si só, eventuais reparações pleiteadas em ações civis públicas de improbidade administrativa, como a reparação do dano ou restituição de bens e valores. De todo modo, a concessão de Habeas Corpus para o trancamento da ação penal não veda a possibilidade de a vítima da conduta criminosa se valer da ação civil ex delicto, que continuará podendo ser proposta no âmbito civil, desde que a sentença absolutória não tenha reconhecido a inexistência do fato ou a negativa de autoria.

Também no âmbito civil, a lei "anticrime" (Lei nº 13.964/19) alterou a Lei de Improbidade Administrativa, permitindo o acordo de não persecução na esfera cível. Entretanto, o veto presidencial ao artigo 17-A deixou em aberto temas cruciais para o aperfeiçoamento desses pactos processuais, tais como os critérios para a sua celebração, a necessidade ou não de homologação judicial e a preservação de eventuais sanções remanescentes oponíveis ao acusado de improbidade.

Na versão original do chamado pacote "anticrime", havia a previsão de inclusão do artigo 17-A, cujo conteúdo regulava a forma como o acordo seria processado, mas o veto desse dispositivo acabou por deixar um vácuo normativo nessa matéria. De todo modo, a admissão do acordo na Lei de Improbidade Administrativa representa importante inovação, regendo situações que se encontravam em uma zona cinzenta. Muitas ações civis de improbidade já vinham sendo extintas com fundamento em negociações havidas em acordos de colaboração premiada ou de leniência, mesmo na vigência da redação original do §1º do artigo 17.

Assim, a decisão do ministro Gilmar Mendes também vai ao encontro de premissas agora reforçadas na própria Lei 13.964/19 (que aperfeiçoa o sistema processual penal) como a atribuição conferida ao juiz de garantias para julgar o Habeas Corpus impetrado antes do recebimento da denúncia ou sobre sua competência para decidir sobre a homologação de acordo de colaboração ou não persecução durante a fase de inquérito.

Inegável que a existência de várias esferas independentes entre si não afasta a natureza una do Estado, legitimado a transacionar sobre os bens jurídicos da forma mais conveniente às finalidades sociais. A concessão de Habeas Corpus para o trancamento da ação penal ante a inexistência do fato e a negativa de autoria induz à mitigação da independência entre as esferas, amoldando-se aos princípios da economia processual e da segurança jurídica.

Esse entendimento, por sinal, mostra-se plenamente compatível com a nova política de segurança pública e com os vigentes procedimentos incluídos no processo penal para a obtenção de colaboração premiada, acordos de leniência e de não persecução penal ou cível e ainda na suspensão dos feitos na fase inquisitiva.

Enfim, a mitigação da independência entre as esferas penal e cível é uma realidade irreversível. E quem diz isso é o Supremo Tribunal Federal.

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