Opinião

A polêmica sobre a cobrança pelo uso das faixas de domínio de rodovias

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4 de março de 2021, 18h36

Os contratos de concessão de rodovias, assim como outros contratos administrativos, possuem cláusulas que impõem a preservação do equilíbrio econômico-financeiro do ajuste celebrado, principalmente devido ao elevado custo envolvido, à sua longa duração e à necessidade de viabilizar o exercício da atividade-fim do Estado. Afinal, ao longo da execução do contrato podem surgir situações que ensejam a necessidade de sua adequação para restabelecer a condição inicialmente prevista.

No que tange às concessões de rodovias, o edital de licitação e o contrato firmado com o poder concedente trazem em seu bojo a possibilidade de as concessionárias cobrarem remuneração pelo uso da faixa de domínio, a qual, por força do artigo 11, parágrafo único, da Lei de Concessões deve ser considerada "para a aferição do inicial equilíbrio econômico-financeiro do contrato".

Ocorre que essa cobrança tem sido muito questionada perante o Poder Judiciário, principalmente quando deriva do uso da faixa de domínio por outra concessionária que explora serviço público diverso.

O entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça é no sentido de ser possível a cobrança pelo uso da faixa de domínio, desde que haja previsão no edital e no contrato de concessão, como autoriza o artigo 11 da Lei nº 8.987/1995 [1], e que a rodovia não seja administrada diretamente pelo poder público [2]. Contudo, mencionado entendimento não foi estabelecido sob a sistemática dos recursos repetitivos, razão pela qual os tribunais inferiores nem sempre o seguem.

Em geral, a doutrina [3] e a jurisprudência [4] desfavoráveis à cobrança baseiam-se nos seguintes argumentos: 1) as faixas de domínio constituem bens de uso comum do povo e seu uso não comporta cobrança quando for para a prestação de serviço de utilidade pública; 2) não é devida a cobrança quando o uso é destinado a serviço público essencial, pois não seria razoável favorecer a modicidade da tarifa aos usuários de rodovias em prejuízo das tarifas essenciais, como as água, energia elétrica, gás, dentre outros; 3) o Decreto 84.398/1980 estipula gratuidade às empresas de energia elétrica para as instalações inerentes a sua atividade, entendimento que conta inclusive com respaldo do Parecer 017/2011/JCBM/CGU/AGU da Advocacia-Geral da União.

Ademais, muitos julgadores se apoiam no entendimento do Supremo Tribunal Federal, exarado no Recurso Extraordinário nº 581.947/RO, a respeito da impossibilidade de os municípios cobrarem taxa pelo uso do espaço público municipal, visto que a instituição de taxas por municípios invade a competência da União para legislar sobre o tema.

Entretanto, no entendimento do STJ [5], referido precedente não é aplicável aos casos que tratam de cobrança pelo uso de faixa de domínio de rodovia por concessionária de serviço público, o que, de fato, parece ser acertado, considerando que o precedente se refere à competência para instituição de taxas, não à possibilidade de cobrança de remuneração entre concessionárias de serviço público.

Diante dos posicionamentos contrários ao do STJ, as concessionárias que exploram os serviços essenciais, como os de energia elétrica, gás, água e telefonia, mostram-se bastante resistentes à cobrança, pois a entendem indevida em razão da essencialidade dos serviços prestados por elas, o que acaba por levar a discussão para o âmbito judicial.

No caso das concessionárias de telefonia, em especial, milita a favor da gratuidade a previsão do artigo 12, da Lei nº 13.116/2015 [6], a qual estabelece normas gerais para implantação e compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações. Referido artigo é claro quanto à dispensa de cobrança pelo uso da faixa de domínio de rodovias, mas prevê que a gratuidade deve ser observada somente pelas concessionárias de rodovia que obtiveram sua outorga após a promulgação da lei.

Em fevereiro de 2021, a constitucionalidade do dispositivo legal em comento foi objeto de análise pelo STF, no bojo da ADI nº 6482, proposta pela Procuradoria-Geral da República, na qual se discutiu "se o Legislador Federal, para garantir a universalização e a prestação eficiente dos serviços de telecomunicações, poderia — por exceção normativa explícita — impedir a cobrança de preço público pelo uso das faixas de domínio". O relator, ministro Gilmar Mendes, entendeu que sim, no que foi seguido pela maioria no julgamento realizado em 18/02/2021 [7].

Ainda que nesse caso específico tenha sido mantida a norma que impede a cobrança pelo uso da faixa de domínio por empresas de telecomunicações, respeitados os contratos de concessão de rodovias licitados antes da edição da Lei Geral das Antenas, a possibilidade de as concessionárias de rodovias cobrarem das concessionárias que prestam serviços de gás, água e energia elétrica permanece controvertida.

A despeito da grande celeuma em torno do tema, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), responsável pela fiscalização das rodovias federais, não tem entendimento claro e reiterado sobre a questão.

Embora a agência tenha regulamentado, por meio da Resolução nº 2.552/2008, a captação de receitas extraordinárias nas rodovias federais por ela administradas, não foi explícita acerca da possibilidade da cobrança em debate, tal como feito no âmbito do Estado de São Paulo pela Artesp nos termos da Portaria nº 18/2010.

Ademais, nos processos judiciais que discutem a questão, a ANTT habitualmente manifestava não ter interesse em ingressar como interessada, por considerar que tais demandas tratam de uma relação entre pessoas jurídicas de direito privado e que a impossibilidade de cobrança teria sido pacificada no âmbito da União, com base no supracitado parecer da AGU.

Entretanto, no bojo do Processo nº 16666-19.2016.4.01.3600, em trâmite na 2ª Vara Cível da Sessão Judiciária do Mato Grosso, em que contendem uma concessionária de rodovias e uma distribuidora de energia, a ANTT se manifestou como interessada e, diferentemente do defendido pela AGU, posicionou-se a favor da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça que garante a cobrança pelo uso da faixa de domínio.

Embora o juízo federal tenha considerado indevida a participação do ente no feito por não haver discussão sobre cláusulas dos contratos de concessão, tampouco reflexos econômicos à Agência, a decisão em questão foi desafiada por agravo de instrumento, autuado sob o nº. 1035568-31.2019.4.01.0000, de relatoria do desembargador federal Marcos Augusto de Souza.

De acordo com a decisão liminar proferida pelo desembargador relator, a manutenção da ANTT no polo passivo é essencial devido ao interesse público envolvido, visto que a rodovia concedida é bem da União e que a cobrança em questão pode contribuir com a modicidade tarifária e com o equilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão.

Embora o agravo de instrumento não tenha sido julgado e a manutenção da ANTT no polo passivo do processo de origem possa ser revertida, a manifestação explícita do ente regulador tem inegável relevância e reforça a jurisprudência do STJ, assim como os argumentos das concessionárias de rodovia.

A pacificação da questão, porém, exige mais do que meras manifestações de apoio. Seria essencial que a agência revisse a Resolução 2.552/2008, de modo a autorizar de forma explícita a cobrança da remuneração. Já no que tange à jurisprudência, sua uniformização poderia ser alcançada por meio da adoção, pelo STJ, da sistemática dos recursos repetitivos prevista no artigo 1.036 do Código de Processo Civil, que visa justamente a concretizar os princípios da isonomia de tratamento às partes processuais e da segurança jurídica.

Com isso, restarão afastados entendimentos que impossibilitem concessionárias de rodovias de cobrar essa receita acessória, contribuindo, assim, para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das concessões e para a modicidade das tarifas cobradas do usuário da rodovia.


 

[1] Vide, por exemplo, decisões proferidas nos seguintes casos: REsp n. 975.097, julgado em 31.03.2020; REsp n. 1.860.601, julgado em 19.02.2020; AgRg no REsp n. 1.470.686.

[2] REsp n. 1144399/PR, julgado em 27/09/2017.

[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Cobrança de remuneração pela ocupação de faixas de domínio por outras concessionárias de serviços públicos” In: DI Pietro, Maria Sylvia Zanella. Temas Polêmicos sobre licitações e contratos. 5 ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 360.

[4] A título de exemplo, vale citar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação nº. 1031606-74.2017.8.26.0053 e o acórdão proferido pelo STJ no RMS nº 12.081/SE, de relatoria da Ministra Eliana Calmon, de acordo com o qual “as vias públicas, de uso comum do povo, não podem ser negociadas pela sua utilização, quando a mesma se dirige ao atendimento de um serviço de utilidade pública”.

[5] REsp 1296954/SP, julgado em 03/09/2019; AgInt no REsp 1848363/SP, julgado em 16/03/2020.

[6] Art. 12. Não será exigida contraprestação em razão do direito de passagem em vias públicas, em faixas de domínio e em outros bens públicos de uso comum do povo, ainda que esses bens ou instalações sejam explorados por meio de concessão ou outra forma de delegação, excetuadas aquelas cujos contratos decorram de licitações anteriores à data de promulgação desta Lei.
Para o Ministro, não pode um ente público, ao cobrar pelo uso de seus bens, impor cobrança excessiva à prestação de serviços de outro, principalmente por se tratar, no caso, de serviço de interesse da coletividade. Para ele, a não onerosidade prevista no art. 12 na Lei Geral das Antenas é proporcional, pois não se aplica aos contratos licitados antes da edição da norma, além de os órgãos reguladores, responsáveis pelas licenças, poderem cobrar taxas pelas análises das propostas técnicas para instalação da infraestrutura, bem como indeferir ou cassar licenças em caso de descumprimento do regulamento ou legislação.

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