Interesse público

Solução extrajudicial de conflitos com a administração pública: o hoje e o porvir

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

4 de março de 2021, 11h43

Spacca
O Estado brasileiro é responsável por parcela relevantíssima dos conflitos judicializados nos quatro cantos do país. 1

O entendimento de que o interesse público há de ser protegido por meio de uma postura agressiva, litigiosa, por vezes unilateral, pautada pelo preconceito de que a convergência com o privado revela incúria com o trato da coisa pública, é tradicionalmente adotado pela Administração Pública no bojo dos seus conflitos.2

É relativamente recente o alerta de que demandar uma decisão pelo Poder Judiciário pode não ser melhor a solução e que a litigiosidade agressiva nem sempre é o caminho otimizado para a consecução do interesse público3.

Ademais, importa dizer que, se a letargia do Poder Judiciário pode trazer alguma benesse para o Estado devedor, ela não é nem um pouco útil para o Estado que reclama do particular uma pronta atuação no âmbito das necessidades administrativas. E o tempo não é o único ponto negativo: a excessiva judicialização traz consigo alto custo para o mesmo Estado que poderia não gastar tanto com a manutenção de estruturas no interior do Poder Judiciário, com a criação de Procuradorias e com o pagamento de honorários. Tudo isso a revelar a necessidade de repensar a resistência a soluções mais rápidas e mais amistosas, sobretudo em momentos de escassez financeira como os atuais, em que não raras vezes os poucos recursos públicos são sopesados pelo administrador público no escopo das chamadas escolhas trágicas.

A isso se soma o fato de que judicializar implica perda de protagonismo e também de uma solução legitimada pelas partes interessadas na solução da controvérsia, o que também seria interessante no bojo de uma democracia de cunho participativo.

As partes, ao reverso do que seria o ideal, cedem a terceiro estranho à lide a capacidade de resolver um problema que elas próprias poderiam solucionar, houvesse sobretudo menos resistência a uma cultura extrajudicial de resolução de controvérsias. Neste diapasão, além de desprestigiarem a si próprias como hábeis a perseguir um desfecho, inclusive porque são as que mais condições e conhecimento reúnem sobre os episódios, as partes enaltecem a voz de um personagem alheio às nuances e que, por estar até então à margem dos eventos, tem o desafio de primeiro tentar assimilar o ocorrido, para só depois, tentar solucionar a lide.

E, ainda, a solução apontada pelo terceiro pode não contentar nenhuma das partes e pode inclusive ser totalmente alheia às necessidades da realidade fática, máxime considerando a complexidade dos contratos de concessão administrativa – comuns ou especiais. Logo, quando as partes em conflito se assenhoram da prerrogativa de edificar elas próprias a solução, a partir da convergência e do entendimento mútuo, ainda que com a relevante contribuição de um terceiro a quem cabe ajudar a pavimentar o caminho, mas sem ditá-lo, opera-se uma significativa alteração no modus operandi, de forma abrir mão de uma solução que poderia ser a melhor para ambas as partes, nos termos da teoria do ganha-ganha da autocomposição dos conflitos.

Nesta toada, o desenvolvimento da sociedade e a experiência administrativa demonstraram que a postura clássica da litigiosidade não é a mais acertada, abrindo portas para a autocomposição de conflitos também no âmbito da Administração Pública, solução que pode ser não só mais rápida, mas, também, mais condizente com o diálogo que torna toda e qualquer decisão mais legítima e democrática4.

Pois bem.

A Lei nº 8.666/93 estrutura-se a partir da ideia de que o interesse público será conquistado a partir do apego ao rito e à liturgia. Todo o seu ideário está no respeito ao passo a passo nela definido, à forma, à rigidez procedimental, características ínsitas ao modelo burocrático5.

Ademais, também caracteriza a Lei nº 8.666/93 o pressuposto segundo o qual há antagonismo entre o interesse público e o privado – contratante e contratado –, razão pela qual a lei se ocupa de salvaguardar o primeiro prevendo uma série de cláusulas que traduziriam prerrogativas públicas a revelar uma posição de supremacia da Administração Pública no âmbito do contrato administrativo.

Tudo isso a colaborar para o acirramento do conflito e o recurso ao Judiciário com vistas a que o terceiro dite a solução. Talvez por isso a lei não contempla referências à contratualização dos litígios.

A Lei de Concessões de Serviços Públicos, Lei nº 8.987/95, visando atrair o privado, representa um relativo distanciamento do perfil da Lei nº 8.666/93. Importante novidade à época está no art. 21, semente para que os privados possam ter presença na fase doméstica da licitação. O procedimento de manifestação de interesse – PMI consiste em um instrumento propiciador da cooperação privada na construção do ato convocatório e anexos de um eventual procedimento licitatório, por meio do qual a Administração Pública, a partir da exposição de suas demandas, recebe estudos, levantamentos, investigações ou projetos que deverão, para fins de real aproveitamento, passar pelo crivo do ente demandante.

O caminho em prol do reposicionamento das forças contratuais, com vistas a nivelar a relação entre Estado e empresa, ganha contornos definitivos na Lei geral de Parcerias Público-Privadas, publicada em 2004. A demanda por portos, escolas, rodovias, postos de saúde e aeroportos em um período pré grandes eventos esportivos impunha um esforço demasiado do Estado não apenas financeiro, mas de gestão pública. Novamente, o privado foi visto como um auxiliar relevante, seja para que sobre ele recaísse o investimento, seja para que ele assumisse a execução das atividades a ele delegadas.

No entanto, como imaginar que o privado toparia tal empreitada se o contrato ordinário lhe submetesse aos cânones da Administração Pública? Como fazer com que houvesse atrativo para que o particular pactuasse com o Poder Público? O desafio era atrair a participação do particular, capaz de impulsionar financeiramente o Estado. Efeito óbvio, como forma de exercer tal atração, estava na imperiosidade de fixar-se um ambiente de confiança e de estabilidade6, por vezes olvidado no bojo da Lei 8.666/93.

A isso se soma a longevidade desses contratos. A diversidade de intercorrências a alcançá-los será maior exatamente porque mais sujeitos a flutuações políticas, econômicas e técnicas. E os conflitos são prováveis. Afinal, serão anos ou décadas de relacionamento.

Como resolver os conflitos daí surgidos? Será o Poder Judiciário o remédio para sanar todos os litígios decorrentes da relação entre a Administração Pública e o particular? Não necessariamente. Afinal, conforme já posto alhures, as partes contratantes são mais aptas a encontrar uma solução viável para a controvérsia concreta, razão pela qual deve ser mais valorizada a autocomposição.

A Lei nº 11.079 foi expressa sobre tal possibilidade em seu art. 11, III, dispositivo legal que permite a utilização de mecanismos privados de resolução de conflitos no bojo das Parcerias Público-Privadas. No ano seguinte, a Lei 8987/95 também passou a contar com dispositivo que remete ao contrato prever ou não o emprego de mecanismos privados para resolução de disputa, inclusive a arbitragem.

No mesmo sentido, a Lei nº 13.140/15 dispõe sobre a autocomposição no âmbito do Poder Público, e possibilita a criação de câmaras de resolução administrativa de controvérsias, o que valoriza a solução extrajudicial de litígios.7

Trata-se de mandamento legal que se harmoniza com o CPC de 2015, que impõe ao Estado, em seu art. 3º, §§2º e 3º, a dita solução consensual e extrajudicial, não mais como uma solução alternativa, mas como um meio prioritário de resolução de controvérsias. Por conseguinte, não apenas por uma questão de conveniência e oportunidade, mas por uma questão de mandamento legal, deve a Administração Pública priorizar a autocomposição, em detrimento da judicialização de toda e qualquer demanda. Não por outra razão é categórico o art. 3º, §3º do CPC ao estabelecer que os juízes, advogados (inclusive os advogados públicos, importa frisar!), os defensores públicos e os membros do Ministério Público têm o dever de estimular a desjudicialização. É de se destacar também o art. 174 do CPC, que robustece a possibilidade de criação de câmaras de mediação e conciliação e ratifica a pertinência dos termos de ajustamento de conduta, visando à solução extrajudicial de controvérsias envolvendo a Administração Pública

Também a arbitragem é possível e muitas vezes desejável. Instituída no Brasil pela Lei nº 9.307/96, e referenciada, como dito, nas Lei 8.987/95 e 11.079/04, é alternativa à via judicial e também aos mecanismos de autocomposição. A Lei 13.129/15 afasta de uma vez por todas qualquer controvérsia residual quanto ao cabimento ou não de cláusula compromissória nos contratos de que é parte a Administração Pública.8 Portanto, 11 anos após a Lei 11.079/04 mencionar a solução extrajudicial de conflitos, aí incluída a arbitragem, a ordem jurídica brasileira contemplou de forma mais elástica a arbitragem de direito em situações a envolver direitos patrimoniais disponíveis, sem direcionar a contratos específicos.

Embora imponha a transferência do poder de solucionar litígios a um terceiro alheio à situação, nisso se aproximando do “porém” das decisões judiciais, a arbitragem representa um importante diferencial ligado ao aspecto técnico. Árbitros que possuem expertise e afinidade com o tema se debruçarão com maior facilidade sobre o ponto de discórdia.

Deve se destacar ainda o Decreto 10.025/19 que dispõe sobre a arbitragem para dirimir litígios entre a administração pública federal nos setores portuário e ferroviário que envolvam, por exemplo, a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de parceria; e o inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, incluídas a incidência das suas penalidades e o seu cálculo.

A futura Lei de Licitações incorpora expressamente o que incorretamente ali se rotulam como “meios alternativos de soluções de controvérsias”, expressão que ainda consagra nas entrelinhas a via judicial como caminho principal. O art. 150 do PL faz alusão à conciliação, mediação e arbitragem, sem a eles se exaurir, repetindo no parágrafo único o que já se sabe: as controvérsias devem se relacionar a direitos patrimoniais disponíveis, tais como o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações. Vale mencionar que a parte do PL reservada à extinção dos contratos faz referência aos comitês de resolução de disputas como locus para se consensualizar a extinção amigável e também a decisão arbitral, em decorrência de clausula compromissória ou compromisso arbitral, evidentemente em situação de divergência entre as partes.9

Aspecto importante, afinado com a alusão a compromisso arbitral acima, está na previsão de aditamento dos contratos para a inclusão de cláusula que contemple tais meios10, o que pode impactar no passado permitindo que contratos em vigor venham a sofrer aditamentos.


1 Nesse sentido, conferir: GALLI, Marcelo. Volume de processos envolvendo o Estado prejudicam acesso do cidadão à Justiça. Revista Consultor Jurídico, 10 de agosto de 2015.

2 A isso se soma a formação acadêmica dos profissionais do Direito, voltada não à consensualidade mas à beligerância.

 3 Conferir, nesse sentido: FORTINI, Cristiana; PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho; CAMARÃO, Tatiana Martins da Costa. Processo administrativo: comentários à Lei nº 9.784/1999. 3. ed. rev. e ampl. de acordo com a visão dos Tribunais. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 26; NETTO, Luisa Cristina Pinto e. Participação administrativa procedimental: natureza jurídica, garantias, riscos e disciplina adequada. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 65.

4 Sobre o assunto, confira-se: SCHWIND, Rafael Wallbach. Resolução consensual de controvérsias administrativas: elementos para a instituição da “conferência de serviço” no direito brasileiro. In: MARQUES NETO, Floriano de Azevedo; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de; NOHARA, Irene Patrícia; MARRARA, Thiago (org.). Direito e Administração Pública: estudos em homenagem a Maria Sylvia Zanella Di Pietro. São Paulo: Atlas, 2013, p. 831-846.

5 Nesse sentido, conferir: SADDY, André. Fase externa das licitações para a contratação de PPPs. In: SADDY, André; MORAES, Salus. Tratado de parcerias público-privadas: teoria e prática. Tomo IV: elaboração do edital e seus anexos, coordenado por Cristiana Fortini. Rio de Janeiro: CEEJ, 2019, p. 118.

6 Nesse sentido, conferir: RODRIGUES, Victor Costa. Fase interna: adequações orçamentárias, consulta pública e licenças ambientais. In: SADDY, André; MORAES, Salus. Tratado de parcerias público-privadas: teoria e prática. Tomo IV: elaboração do edital e seus anexos, coordenado por Cristiana Fortini. Rio de Janeiro: CEEJ, 2019, p. 82.

7 Sobre o exposto, para fins de ilustração, veja-se o escólio de Maria Fernanda Pires de Carvalho Pereira e Caio Mário Lana Cavalcanti, “Aliás, na toada do diálogo entre Administração e administrado e na esteira da busca pelos métodos alternativos de resolução de conflitos, importante frisar que o art. 1º da Lei n.º 13.140/2015 expressamente traz a mediação enquanto meio de autocomposição de conflitos no âmbito do Poder Público; e a Lei n.º 11.079/2004, em seu art. 11, III, possibilita a utilização de mecanismos privados de resolução de conflitos no âmbito das PPPs, inclusive a arbitragem, esta última prevista desde o advento da Lei nº 9.307/1996

8 Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.§ 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

9 Art. 137. A extinção do contrato poderá ser:

II– consensual, por acordo entre as partes, por conciliação, por mediação ou por comitê de resolução de disputas, desde que haja interesse da Administração;

III– determinada por decisão arbitral, em decorrência de cláusula compromissória ou compromisso arbitral, ou por decisão judicial.

10 Art. 152. Os contratos poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de controvérsia.

Autores

  • é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte. Especialista (pós graduação) em mediação, conciliação e arbitragem. Visiting scholar na George Washington University e professora visitante na Universidade de Pisa.

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