Desculpas virtuais

STJ extingue ação contra desembargadora que ofendeu memória de Marielle

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3 de março de 2021, 19h24

Com base em retratação feita pelas redes sociais, o Superior Tribunal de Justiça extinguiu, nesta quarta-feira (3/3), a queixa-crime movida pela família da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (1979-2018) contra a desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Marília de Castro Neves.

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Desembargadora do TJ-RJ, Marilia de Castro Neves postou informações falsas  dias após o assassinato de MarielleReprodução/Facebook

A decisão foi tomada por unanimidade conforme voto da relatora, ministra Laurita Vaz. A retratação cabal foi feita em postagem aberta no perfil pessoal do Facebook da magistrada em 29 de setembro, depois inclusive que a instrução processual da queixa-crime havia sido encerrada pelo STJ.

Pela mesma rede social, em 16 de março de 2018, dois dias após o assassinato de Marielle e do motorista Anderson França, a desembargadora disse que a vereadora era “engajada com bandidos” e havia sido “eleita pelo Comando Vermelho”. Afirmou ainda que sua morte estava relacionada ao seu engajamento político.

Como se retratou, ainda que tardiamente, Marília de Castro Neves teve a punibilidade extinta com base no artigo 143 do Código Penal. A norma diz que “o querelado que, antes da sentença, se retrata cabalmente da calúnia ou da difamação, fica isento de pena”.

A postagem feita pela magistrada causou furor imediato ainda em 2018. Logo depois, ela divulgou nota reconhecendo que divulgou boatos e que iria esperar as investigações serem concluídas. Essa retratação, assim como feita em outras oportunidades, em tese, não seria suficiente para afastar a hipótese do crime de injúria.

Ao postar texto mesmo perfil de Facebook e com alcance aberto a quem não é seu seguidor, a desembargadora preencheu a hipótese do parágrafo único do artigo 143 do CP. Diz o texto que “nos casos em que tenha praticado a calúnia utilizando-se de meios de comunicação, a retratação dar-se-á, se assim desejar o ofendido, pelos mesmos meios em que se praticou a ofensa”

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Alvo da desembargadora,  Marielle Franco foi assassinada no Rio de Janeiro, em 2018

Retratação é unilateral
As advogadas dos familiares de Marielle defenderam na tribuna virtual da Corte Especial que a retratação não seria cabal porque não aceitaram as palavras da desembargadora. Essa, no entanto, não é uma exigência da lei, segundo a ministra Laurita Vaz.

“A retratação admitida nos crimes de calúnia e difamação não é ato bilateral. Não pressupõe aceitação para surtir efeitos na seara penal, porque a lei assim não exige. O Código Penal, quando quis condicionar um ato extintivo da punibilidade à aceitação da outra parte, o fez de forma expressa”, destacou.

Assim, basta que a declaração de quem difamou ou caluniou seja cabal: deve ser clara, completa, definitiva e irrestrita, sem remanescer nenhuma dúvida ou ambiguidade quanto ao seu alcance, que é o de desdizer palavras ofensivas à honra, retratando-se. “E isso, como visto, foi feito”, destacou a ministra Laurita.

Da mesma forma, a norma penal que admite que os ofendidos exijam que a retratação feita ocorra pelo mesmo meio de comunicação em que praticada não torna o ato bilateral. Se o ofensor desde logo resolve se retratar pela mesma rede social, pode fazê-lo sem possibilidade de recusa por parte dos ofendidos.

Rafael Luz/STJ
Melhor seria se a magistrada tivesse sido mais diligente e preocupada com a dor da família, disse a ministra Laurita Vaz
Rafael Luz/STJ 

Fim da seara criminal
Durante o julgamento, a ministra Laurita Vaz fez questão de ressaltar que é absolutamente compreensível a insatisfação dos familiares, que após perder um ente querido precisaram lidar logo em seguida com ofensas públicas à memória da vereadora Marielle Franco.

“Não bastasse depois de buscar perante o Judiciário a punição, ainda verem a retratação ser oferecida somente depois de encerrada a instrução do processo, já às vésperas do julgamento”, disse. “Respeito o sentimento de frustração da família. Melhor teria sido se a ré tivesse sido mais diligente e preocupada com a dor da família. Tivesse se retratado de forma mais imediata”, continuou.

A retratação tardia, no entanto, atendeu às exigências da lei penal. Assim, a relatora ressaltou que nada impede a busca por indenização em uma via mais eficaz: a do Direito Civil. Isso inclusive já aconteceu. A desembargadora deverá pagar R$ 6 mil a cada um dos cinco membros da família que constam como autores do processo. O valor total é de R$ 30 mil.

Histórico conturbado
Tramitam no Conselho Nacional de Justiça três reclamações disciplinares e um pedido de providências contra a desembargadora por suas atitudes nas redes sociais.

Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Ex-deputado Jean Wyllys foi um dos alvos da magistrada nas redes sociais
Cleia Viana/Câmara dos Deputados

Uma das publicações questionadas mostra uma imagem dizendo que Guilherme Boulos será recebido "na bala" depois do decreto do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que facilitou a posse de armas.

A desembargadora também atacou o próprio CNJ. "O CNJ impede o magistrado de prestar relevante serviço dentro de sua expertise. Quem perde, evidentemente, é o jurisdicionado, o cidadão. Enfim, isso é o CNJ", afirma em uma publicação.

Em uma outra publicação, a magistrada continua os ataques ao CNJ e ao CNMP, se referindo a uma reportagem sobre o senador Renan Calheiros. "Esses políticos corruptos indicam os conselheiros do CNMP e do CNJ exatamente para terem sua retaguarda garantida."

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo no fim de janeiro, Jean Wyllys, reeleito deputado em outubro, disse que não iria tomar posse e deixar o Brasil, diante das ameaças que vinha recebendo. Uma das pessoas que ele diz contribuir para o clima de ódio e antagonismo que encontra nas ruas é a desembargadora Marília Castro Neves. Para ela, no entanto, a esquerda não tem senso de humor.

Foi "brincadeira", disse a desembargadora à ConJur sobre seus comentários a respeito de Wyllys. Segundo o parlamentar, a magistrada disse num grupo no Facebook que ele deveria ser executado, por ser a favor de uma "execução profilática". "O problema da esquerda é o mau humor", se defendeu a desembargadora.

Leia a retratação da desembargadora
Por meio da presente, venho reiterar minha retratação pela mensagem publicada na rede social “Facebook” no dia 16 de março de 2018, dois dias após o assassinato da vereadora Marielle Franco.
Naquela mensagem, publicada durante debate político, no afã de rebater insinuações de um colega aposentado sobre o que havia ocorrido, expressei opinião de forma equivocada, fruto de engano causado por notícias falsas que haviam se espalhado na internet e estavam sendo compartilhadas por várias pessoas de meu círculo social, inclusive uma amiga advogada.
Ao contrário do que os falsos boatos alegavam, a vereadora Marielle Franco não possuía vínculo com o Comando Vermelho, tampouco há provas do envolvimento da referida facção na sua morte.
Assim, por ter publicado aquela mensagem expressando opinião equivocada, baseada em informações falsas, peço outra vez sinceras desculpas à memória da vereadora Marielle Franco e aos seus familiares: sua mãe, Marinete da Silva; seu pai, Antônio Francisco da Silva Neto; sua irmã, Anielle Silva dos Reis Barboza; e sua companheira, Monica Tereza Azeredo Benicio.
Desta forma, retrato-me uma vez mais do conteúdo da mensagem publicada no Facebook dia 16 de março de 2018, retirando novamente tudo o que havia ali afirmado. Lamento por todo o episódio.

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