Opinião

O STF, o estado de exceção e a prisão do deputado federal Daniel Silveira

Autor

  • Bruno Cozza Saraiva

    é professor do Mestrado Internacional em Direito Privado Europeu da Università Mediterranea di Reggio Calabria Itália realiza estágio pós-doutoral em Novas Tecnologias e Direito com bolsa da própria instituição no MICHR (Mediterranea International Centre for Human Rights Research) da Università degli Studi Mediterranea di Reggio Calabria Itália doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS com estágio na Università Degli Studi Firenze UNIFI Itália mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Escola Superior da Magistratura Federal no Rio Grande do Sul ESMAFE.

3 de março de 2021, 20h37

A Filosofia da História, em autores como Quentin Skinner, na obra "Liberdade antes do liberalismo", retrata, como ponto de partida para o desenvolvimento do constitucionalismo, este enquanto fenômeno jurídico-civilizacional, direitos como a "liberdade de discurso, de movimento e de contrato" [1].

Todos esses direitos, no que se refere às Constituições modernas, foram incorporados na principiologia ou convertidos em direitos e garantias, naquilo que hoje denominamos, pós-2ª Guerra, de Constitucionalismo Democrático. No caso brasileiro, é dizer, na Constituição Federal de 1988, podemos verificá-los no Título I, dos direitos e garantias fundamentais, e no Capítulo I, dos direitos e deveres individuais e coletivos.

É o caso, portanto, dos incisos II, IV e XV, que, respectivamente, tratam da liberdade de fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, da liberdade de manifestação do pensamento e da liberdade de locomoção no território nacional. Nesse sentido, é por meio dessas liberdades que constituem tanto a vida política-pública quanto a privada, que, para Benjamin Constant, na "liberdade dos antigos comparada à dos modernos (…) o homem pode ser efetivamente livre" [2].

Todavia, devido a acontecimentos recentes, tais como a decretação da prisão preventiva, pelo ministro Alexandre de Moraes, ainda sob a égide do contestável Inquérito nº 4.781, do Distrito Federal, ou melhor dizendo, do "inquérito do fim do mundo", de um deputado federal em razão da prática, em tese, de crime de opinião, podemos afirmar, a partir de uma análise constitucional acerca dos direitos descritos pela Filosofia da História e pela Constituição brasileira, que a liberdade-direito de manifestação, no Brasil e pela Corte Guardiã da Constituição, considerando o afastamento da normativa constitucional e do consequente estabelecimento, pelo STF e nas devidas proporções, de um Estado de "exceção", definindo-se este "(…) como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo" judicial [3], tornou-se a exceção.

Em consequência disso, no presente texto não discutiremos, pormenorizadamente, o conteúdo da manifestação do deputado federal Daniel Silveira, mas, sim, no âmbito constitucional, o direito à liberdade de manifestação (artigo  53, caput, da CF) dos parlamentares, adotando como objeto o despacho de prisão preventiva, a nosso ver inconstitucional-ilegal, decretada por quem deveria guardar a Constituição.

Para que possamos compreender a dimensão da liberdade de manifestação dos parlamentares, que decorre, de maneira a ser caracterizada por um maior grau de proteção, do inciso IV do artigo 5º do texto Constitucional de 1988, analisaremos o artigo 53, caput e §2º, da Constituição Federal.

O dispositivo, caput, acima citado, "os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos", juntamente com o seu parágrafo segundo, "desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável (…) [4]", traz, em seu bojo, a inviolabilidade e a imunidade parlamentar.

A inviolabilidade, também chamada de imunidade material, exclui, segundo José Afonso da Silva, "o crime nos casos admitidos, o fato típico deixa de constituir crime, porque a norma constitucional afasta, para a hipótese, a incidência da norma penal" [5].

No que diz respeito à imunidade, esta denominada de formal ou processual, o já referido constitucionalista explicitara que a mesma "não exclui o crime, antes o pressupõe, mas o impede o processo. Trata-se de prerrogativa processual (…). Ela envolve a disciplina da prisão e do processo de congressistas" [6].

Logo, quanto à prisão, mais especificamente no §2º do artigo 53 da atual Constituição brasileira, salvo flagrante de crime inafiançável, os membros do Congresso Nacional não poderão se presos durante o período que compreende a sua diplomação até o encerramento definitivo do seu mandato.

Entretanto, no decreto prisional, o ministro prolator da decisão considerou crime, com base na Lei de Segurança Nacional, Lei nº 7.170/83, a manifestação, disponibilizada no YouTube, proferida pelo deputado federal, enquadrando todo o seu conteúdo nos artigos 17, 18, 22, incisos I e IV, 23, incisos I, II e IV, e 26 da lei outorgada na ditadura militar brasileira.

A nosso ver, por estarem protegidas pelas imunidades material e processual, as opiniões dos parlamentares são civil e penalmente invioláveis, bem como estes não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Dessa forma, defendemos a ilegalidade da instauração do inquérito e, mais ainda, da decretação da prisão preventiva do deputado federal Daniel Silveira.

Ademais, na situação em análise, assim como em todas as outras submetidas ao Judiciário, a imparcialidade, enquanto princípio constitucional, deveria guiar a atuação do magistrado ou, no presente inquérito, por se tratar de ofensas a determinados membros da Suprema Corte, os ministros ofendidos, conforme preceitua inciso IV do artigo 252 do Código de Processo Penal, estariam impedidos de jurisdicionar no Inquérito 4.781/DF.

De maneira, talvez, não imparcial, uma vez que compõe o rol dos ofendidos, e atuando também como acusador, o ministro que prolatou a decisão prisional do deputado Daniel, consagrado constitucionalista, por conhecer que denunciações caluniosas, ameaças e infrações revestidas de animus caluniandi, diffamandi ou injuriandi não constituem crimes inafiançáveis, de modo a ser impossível a decretação da prisão preventiva do parlamentar, imputou ao investigado a prática de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional, considerando que as normas que a constitui, apesar das inúmeras críticas pós-Constituição de 1988, caracterizam-se pela inafiançabilidade.

Com efeito, para que possa ser imputado ao investigado o conteúdo contido no artigo 17 da já referida lei, de maneira a fundamentar, de acordo com o inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal, uma decisão de prisão preventiva, o sujeito ativo deverá praticar a seguinte ação: "Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito".

A simples análise do vídeo divulgado, pois desnecessárias maiores ponderações acerca do caso, tornou possível verificar que, por mais que o seu conteúdo possa configurar calúnia, difamação e injúria contra determinados ministros do STF, ele não nos permite dizer que o parlamentar tentou mudar a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito no Brasil. Não é razoável, portanto, a partir do conteúdo divulgado, afastar a inviolabilidade e a imunidade parlamentar e decretar, com base no artigo 17, a prisão preventiva do deputado federal.

No diz que respeito ao artigo 18 da mesma lei, também não se percebeu, da análise da mídia divulgada na internet, a tentativa de impedir, mediante o emprego de violência ou de grave ameaça, o exercício livre de quaisquer dos poderes da União ou dos Estados.

A nosso ver, a tentativa exigida pelo dispositivo acima citado deve estar acoplada à violência, bem como não somente a uma mera ameaça, é dizer, deve representar, concretamente, uma grave ameaça aos poderes da União ou dos Estados.

Nesse contexto, cabe o seguinte questionamento: o perseguir, anunciado pelo deputado federal Daniel Silveira, não seria condizente, diante das inúmeras críticas sobre o Inquérito nº 4.781, que usurpa a competência do Parlamento e desrespeita a Constituição Federal e legislações infraconstitucionais, com o preceito constitucional contido no inciso XI do artigo 49 do texto federal? Isto é, não seria no sentido de "zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes?" (vide regimento interno do STF, que possibilita, em alguns casos, a instauração de inquérito de ofício).

O artigo 22, também utilizado pelo ministro prolator da decisão discutida, nos incisos I e IV, trata da realização, em público, de propaganda de processos violentos ou ilegais para a alteração da ordem política ou social. Percebemos que esse dispositivo não se refere a uma mera propaganda, positiva ou negativa. Mas, sim, a uma propaganda que traga, em seu bojo, o poder, e as possibilidades de alterar a ordem política ou social. O que no caso ora em discussão, claramente, não aconteceu.

Da mesma forma, ou seja, desconectada do sentido expresso do conteúdo do vídeo publicado, o ministro Alexandre de Moraes afirmou, em sua decisão, de acordo com os incisos I, II e IV do artigo 23, que o parlamentar incitou à subversão da ordem política ou social, à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições, assim como à prática de qualquer dos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional.

Com relação ao inciso I, conforme já demonstrado anteriormente, não há que se falar na incitação "à subversão da ordem política ou social". Interpretar assim é lançar mão de uma discricionariedade capaz de alterar, por completo, o conteúdo do vídeo analisado. O inciso II, que pontua acerca da incitação "à animosidade entre as Forças Armadas ou entre estas e as classes sociais ou as instituições", não pode ser aplicado no caso concreto.

Em um primeiro momento, não depreendemos, do discurso do parlamentar, a incitação de uma animosidade entre as Forças Armadas e as classes sociais ou entre estas e outra instituição, no caso o Supremo Tribunal Federal. O que podemos perceber é a realização de uma comparação crítica entre o episódio capitaneado pelo general Villas Bôas e a atitude do STF e o procedimento adotado pela corte no que diz respeito ao Inquérito, inconstitucional, nº 4.781, instaurado de ofício para apurar as opiniões contrárias ao tribunal e aos seus membros.

Por fim, o último dispositivo, utilizado pelo ministro na decisão, foi o artigo 26, caput, da LSN. Neste, constitui crime a prática de calúnia e/ou de difamação contra "o presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação". No entanto, não observamos, no conteúdo do vídeo, ofensas ao atual presidente do STF.

Não obstante, observamos que o magistrado já citado, no afã de responder de imediato às críticas acentuadas e promovidas pelo parlamentar a determinados ministros do Supremo Tribunal Federal, inclusive ao próprio ministro que decretou a prisão preventiva em exame, contaminado psicologicamente pelas mesmas, não respeitou, na interpretação, ou na ausência dela, em consonância com o conteúdo do vídeo, a Constituição Federal, o Código de Processo Penal e, principalmente, a Lei de Segurança Nacional.

Em consequência disso, há, no decreto prisional a ausência de fundamentação acerca do afastamento das garantias parlamentares e, sobretudo, da aplicação da Lei de Segurança Nacional. Ou seja, não se encontra, na decisão, a demonstração da conexão entre o conteúdo do vídeo e os dispositivos citados, e utilizados, da LSN. Dito de outra forma, trata-se de decisão discricionária, cuja ausência de fundamentação viola o dever de fundamentar [7], constitucional, do julgador, violando, esta, sim, a ordem política, social e constitucional brasileira.

Traçando um paralelo entre Giorgio Agamben na obra "O que resta de Auschwitz" e o imaginário jurídico e social capitaneado pelo inquérito já mencionado e pelo seu desdobramento, a prisão do parlamentar, em decorrência de opinião, sugere o seguinte questionamento: o que resta da ditadura brasileira?

Nesse caso, "não só falta algo semelhante a uma tentativa de compreensão global, mas também o sentido e as razões do comportamento dos carrascos e das vítimas; muitas vezes, as suas próprias palavras continuam aparecendo como enigma insondável, reforçando a opinião de quem gostaria que Auschwitz ficasse incompreensível para sempre" [8].

Portanto, inegável que o "inquérito do fim do mundo" e os seus desdobramentos, em especial a prisão preventiva em comento, representam, na história constitucional recente, um retorno ao AI nº 5, uma vez que suspendeu a liberdade de manifestação, por prerrogativa de função, do parlamentar, instaurando, sobretudo no imaginário político brasileiro, um temor acerca da manifestação crítica da opinião quando esta for dirigida ao STF e, diretamente, aos ministros dessa corte.

E se, conforme retrata o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal, "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", o Inquérito nº 4.781, do Distrito Federal, e a prisão do deputado federal Daniel Silveira por crime de opinião retiram o poder —  de manifestação —  do povo, que é exercido pelos seus representantes, de modo a ressuscitar o inciso III do artigo 5º do Ato Institucional nº 5 de 13 de dezembro de 1968.

Resta lembrar, para "a comunidade que vem" [9], que "o uso da força sem direito é sempre um meio de solapar a liberdade pública" [10]. Triste Brasil…

 

Referências bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008.

AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

CONSTANT, Benjamin. Liberdade dos antigos comparada à dos modernos. São Paulo: Edipro, 2019.

SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2009.

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP, 1999.

 


[1]  SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP, 1999, p. 29.

[2]  CONSTANT, Benjamin. Liberdade dos antigos comparada à dos modernos. São Paulo: Edipro, 2019, p. 36.

[3]  AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 13.

[4]  SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 535.

[5]  SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 535.

[6]  SILVA, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 535.

[7]  Tudo isso deve ser compreendido a partir daquilo que venho denominando de “uma fundamentação da fundamentação”, traduzida por uma radical aplicação do artigo  93, IX, da Constituição. Por isso é que uma decisão judicial mal fundamentada não é sanável por embargos (sic), antes disso, há uma inconstitucionalidade ab ovo, o que torna nula, írrita, nenhuma! Aliás, é incrível que, em havendo dispositivo constitucional tornando a fundamentação um direito fundamental, ainda convivamos – veja-se o fenômeno da “baixa constitucionalidade” que venho denunciado há duas décadas – com dispositivos infraconstitucionais pelos quais sentenças contraditórias (sic), obscuras (sic) ou omissas (sic) possam ser sanadas por embargos…! STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência? Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p. 111.

[8]  AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo sacer III). São Paulo: Boitempo, 2008, p. 19.

[9]   AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

[10]  SKINNER, Quentin. Liberdade antes do liberalismo. São Paulo: UNESP, 1999, p. 48.

Autores

  • Brave

    é professor do Mestrado Internacional em Direito Privado Europeu da Università Mediterranea di Reggio Calabria, Itália, realiza estágio pós-doutoral em Novas Tecnologias e Direito, com bolsa da própria instituição, no MICHR (Mediterranea International Centre for Human Rights Research) da Università degli Studi Mediterranea di Reggio Calabria, Itália, doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS, com estágio na Università Degli Studi Firenze, UNIFI, Itália, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, UNISINOS, pós-graduado em Direito Penal Econômico Aplicado pela Escola Superior da Magistratura Federal no Rio Grande do Sul, ESMAFE.

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