Opinião

A incompatibilidade sistêmica ao veto de teses no Tribunal do Júri

Autores

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

  • Jeferson Borges Jr.

    é pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade Inspirar e membro do Grupo de Estudos Avançados (GEA) em Escolas Penais do IBCCRIM.

3 de março de 2021, 19h26

"Se uma pessoa vai a uma quitanda e pede um antibiótico, o quitandeiro lhe dirá para ir à farmácia, porque ele só vende verduras. Nós, penalistas, devemos dar este tipo de resposta saudável sempre que nos perguntam o que fazer com um conflito que ninguém sabe como resolver e ao qual, como falsa solução, é atribuída natureza penal"
 
(ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.184/185)

A discussão sobre a viabilidade da tese de legítima defesa da honra voltou à tona no século 21 quando recentemente a medida cautelar proferida pelo ministro Dias Toffoli na ADPF 779, ajuizada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), vetou o uso dessa tese nos julgamentos do Tribunal do Júri [1]

O tema ganhou maior relevância na medida em que os impetrantes da ADPF 779, na segunda-feira (1º/3), pediram, em aditamento da inicial, que o julgamento da ação constitucional seja realizado em conjunto com o ARE nº 1.225.185/MG-RG em que discute a constitucionalidade da absolvição por clemência, e que, assim como a ADPF 779 em relação à legítima defesa da honra, também visa a excluir do juízo decisório dos jurados a tese de clemência.

Portanto, em um só julgamento estariam extirpadas as teses de legítima defesa da honra e de clemência nos processos julgados perante o Tribunal do Júri, numa decisão incompatível com nosso sistema de apreciação da prova pelo conselho de sentença e que violaria a plenitude de defesa e a garantia da soberania dos veredictos.  

O problema a ser analisado extrapola a análise de constitucionalidade da aplicação da tese da legítima defesa da honra em nosso ordenamento jurídico, na medida em que estão em jogo diversas garantias constitucionais dos acusados em geral, inclusive mulheres ou qualquer outro ser humano independentemente de sua orientação sexual, pois acreditamos que o leitor deste texto consegue reconhecer que todos estão sujeitos a sentarem no banco de réus.

Os fundamentos jurídicos da ADPF 779 e da medida cautelar proferida pelo ministro Dias Toffoli, em que pese acertados em seus alicerces ético-sociais, pecam em suas razões epistêmicas e nesse ponto se chocam com a sistemática do Tribunal do Júri adotada em nosso ordenamento (íntima convicção e quesito genérico de absolvição) e mitigam garantias constitucionais inarredáveis no processo penal (plenitude de defesa e soberania dos veredictos), que se prestam a proteção do mais débil, que durante o processo são os réus e não os ofendidos(as) conforme a lição de Ferrajoli. Entender e respeitar esse paradigma, ainda que contrarie os interesses da maioria, é ser garantista, e esse é o único fim democrático do Direito Penal [2].

O que se propõe na ADPF 779 e na medida cautelar proferida pelo ministro Dias Toffoli, conforme está posto até aqui, não é a superação de um defeito originário de incompatibilidade sistêmica e tampouco um avanço em pautas sociais. Toda forma de atrofiar o Direito Penal como limite ao poder punitivo e mitigar garantias fundamentais a coerção processual que materializa a própria realização da coação punitiva é abrir as portas a um terreno perigoso e ardil, solo fértil para o decisionismo arbitrário [3].

Por fim, não se pode esquecer que a instituição do Tribunal do Júri recente foi objeto de duras críticas no próprio STF [4], mas uma análise histórica revela que todas tentativas de limitar o julgamento pelo Tribunal do Júri guardam intima conexão e são corriqueiras com períodos de euforia autoritária, idênticos aos que se vive atualmente, desde os debates que antecederam o Code Napoleón em que Jean-Jacques-Regis de Cambacérès ao ser questionado por Napoleão, manifestou o pensamento de que a ineficiência das condenações do júri multiplicaria a prática de crimes [5], e também alcançou os debates doutrinários que antecederam a reforma penal brasileira de 1940 a partir da mesma crítica ao famigerado excesso de absolvições contrapostos por uma ideologia de defesa social que foi um dos principais fundamentos de expansão do poder punitivo [6].

Não há dúvida de que essas posições acima citadas certamente não se conectam com os ideais dos proponentes da ADPF 779, juristas de escol, de posição progressista e ideologia humanista. Talvez aqui seria importante refletir a partir da "lógica do quitandeiro" [7], evitando que dirijam ou esperem do Direito Penal a resolução de problemas cuja solução não está na pena.

Por isso, o presente texto serve de alerta, pois neste interregno que vivemos [8], sobretudo em nosso país, em que a democracia vem sendo sequestrada diariamente por forças antidemocráticas, estamos sendo conduzidos a um momento em que dissipar em torno de pautas punitivas que pouco ou nada trarão de mudança a uma sociedade desigual não é a melhor e tampouco representa uma opção de avanço à democracia constitucional.

Clique aqui para ler a íntegra do texto

 


[2] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoria del garantismo penal. 10. ed. 2. reimp. Madrid: Editorial Trotta, 2016. p. 335/336.

[3] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. 7. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 54.

[5] "Sua Majestade espera que desapareçam os resíduos da simpatia inspirada por essa voix du pays [voz do povo]. Espira ares não liberais os quesitos postos em jogo, 23 de janeiro de 1808: "a instituição do júri será conservada?". Napoleão pergunta como trabalharam os júris nos últimos anos: mal, responde Jean-Jacques-Régis de Cambacérès, conselheiro muito ouvido, grand-juge, futuro arquichanceler do Império, e não condenando bastante, multiplicam "le crime" [o crime]." (CORDERO, Franco. Guida alla procedura penale. Torino: UTET, 1986, p. 70) (tradução livre)

[6] PRANDO, Camila de Mello. O saber dos Juristas e o Controle Penal. O debate doutrinário na Revista de Direito Penal (1933-1940) e a construção da legitimidade pela defesa social. Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 205/211.

[7] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.184/185.

[8] SANTOS, Boaventura de Sousa. Esquerdas do mundo, uni-vos! São Paulo: Boitempo, 2018.

Autores

  • é mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Bolsista Capes). Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Advogado e Professor.

  • é pós-graduando em Ciências Criminais pela Faculdade Inspirar e membro do Grupo de Estudos Avançados (GEA) em Escolas Penais do IBCCRIM.

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