Garantias do consumo

Crise da Covid-19, vacina e riscos do desenvolvimento

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3 de março de 2021, 8h01

O ano de 2020 será, certamente, lembrado como o ano em que foi "decretada" a crise da Covid-19. Trata-se de fenômeno mundial que a humanidade não gostaria de ter vivenciado, em especial se forem recordados o número de infectados e o elevadíssimo número de mortos em todos os quadrantes do globo terrestre.

Tal situação, que levou a uma profunda revisão dos hábitos de vida e das formas de exercício do trabalho — além de provocar enorme crise econômica, com o consequente aumento do desemprego  também acarretou uma verdadeira "corrida pela vacina", sendo esta vista como a grande chance de evitar a propagação da doença. De fato, desde o início da pandemia se formou a convicção de que com a vacinação em massa da população, a começar pela camada mais idosa, inúmeras mortes podem ser evitadas e a vida em sociedade poderá, em algum momento, voltar à "normalidade".

Contudo, para que essa "corrida pela vacina" fosse exitosa  como, de fato, já se verificou —, foram necessários inúmeros testes em humanos, os quais também foram realizados em vários países do mundo. Certo é, igualmente, que tais testes trazem, em si mesmos, "riscos" de danos para a vida e a saúde desses "voluntários", os quais, até o presente momento, não foram confirmados [1].

Essa realidade, de todo modo, pode ser compreendida como uma situação descrita pela ciência jurídica como "riscos do desenvolvimento", os quais podem ser compreendidos como os riscos não cognoscíveis pelo mais avançado estado da ciência e da técnica, no momento da introdução do produto no mercado ou do término da prestação do serviço, e que só vêm a ser descobertos mais tarde, por força do avanço científico [2]. São, em suma, riscos que só o desenvolvimento científico será capaz de, eventualmente, confirmar.

Nesse sentido, é certo que o mesmo ano de 2020, marcado, como dito, pelo reconhecimento da trágica situação que ainda está sendo vivenciada, trouxe um alento para os consumidores brasileiros justamente quanto ao tema dos "riscos do desenvolvimento". Trata-se do que foi decidido, de forma unânime, pela 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial nº 1.774.372/RS, sendo relatora a ministra Nancy Andrighi [3].

O caso versava sobre uma consumidora do Rio Grande do Sul que, em 1997, foi diagnosticada como portadora do mal de Parkinson. Como forma de tratamento foi indicado o uso do medicamento Sifrol, fabricado e comercializado, com exclusividade, pela Boehringer Ingelheim do Brasil Química e Farmacêutica Ltda. Segundo narrado nos autos do processo, porém, no período de julho de 2001 a setembro de 2003, enquanto a consumidora fazia uso do produto, ela também desenvolveu uma "compulsão para o jogo", a qual cessou após a suspensão dessa medicação.

A sentença prolatada julgou improcedentes os pedidos de reparação dos danos extrapatrimoniais e de indenização dos danos materiais. A apelação da autora foi, porém, provida pelo TJ-RS, tendo sido determinada a indenização dos danos materiais, na espécie "danos emergentes", no montante de R$ 524.760,89, e também a reparação dos danos extrapatrimoniais no valor de R$ 20 mil. O fundamento utilizado pelo TJ-RS foi o disposto no artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, tendo, igualmente, sido destacado que os valores estabelecidos pelo tribunal local decorreram do reconhecimento da "culpa concorrente" da vítima, a qual decorreria de uma superdosagem do Sifrol, "bem como o seu emprego com o Cronomet". De fato, na visão do TJ-RS, a vítima teria "contrariado a prescrição farmacêutica de uso" do Sifrol. Esta apontada culpa concorrente acarretou uma redução de "45% dos danos efetivamente suportados pela parte autora" [4].

As duas partes interpuseram recursos especiais para o STJ, tendo sido desde logo admitido o recurso do réu e inadmitido o da autora. Esta veio a falecer, mas o agravo interposto foi provido para determinar a sua conversão em recurso especial, sendo parte, doravante, o espólio da falecida consumidora. No julgamento dos recursos pela 3ª Turma do STJ houve o desprovimento do recurso interposto pelo réu e o provimento parcial do recurso interposto pelo espólio, justamente para que se afastasse a "culpa concorrente" da autora, uma vez que, na visão do tribunal superior, a situação narrada configura, em verdade, uma violação ao artigo 12 do CDC, ou seja, uma hipótese de responsabilidade civil objetiva do fabricante, tendo a consumidora feito uso do produto segundo a dosagem prescrita por sua médica, não tendo ingerido, "por conta própria, dosagem superior à recomendada pelo laboratório ou à prescrita por sua médica" [5].

Na fundamentação de seu voto, a ministra relatora inicialmente recorda que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera o "jogo patológico" como uma "doença" e que uma "simples pesquisa na rede mundial de computadores revela a existência de diversos estudos científicos sobre a possível relação do uso de agonistas da dopamina (como o Sifrol), prescritos para o tratamento da doença de Parkinson, com o desenvolvimento de jogo patológico pelos pacientes". Recorda, ainda, que em 14/12/2007 a Anvisa emitiu um alerta destacando a possível relação entre o uso de medicamentos para o tratamento do mal de Parkinson e as desordens do controle do impulso.

A seguir, a ministra Nancy Andrighi entende ser fato incontroverso, no caso concreto submetido a julgamento, que o jogo patológico foi reconhecido como um dos efeitos colaterais do uso do Sifrol, muito embora o laboratório réu não tenha feito constar da bula desse medicamento referido efeito. Esse alerta só teria sido inserido posteriormente ao início do tratamento da autora, o que caracterizaria o caráter defeituoso do produto por infração do "dever de informar".

Aqui se encontra a questão central do julgado, uma vez que o laboratório argumenta que a bula já trazia, de todo modo, um alerta de que se tratava de "medicamento novo" e que poderiam ocorrer "reações adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas", tendo, ainda, seguido "todas as regras farmacovigilância do setor e adotou os trâmites legais da Anvisa para a atualização da bula do Sifrol".

Referida argumentação é, realmente, decisiva para que se possa enquadrar a situação como verdadeira hipótese de "riscos do desenvolvimento". Em verdade, se o laboratório tinha ciência dos riscos decorrentes do uso do produto e não informou os consumidores estará patente a colocação no mercado de um produto defeituoso, nos termos do CDC (artigo 12, §1º), seja sob a espécie de "defeito de concepção", seja na modalidade "defeito de informação" [6]. Em tal circunstância, não há espaço para que se possa invocar os chamados "riscos do desenvolvimento" como possível excludente da responsabilidade.

Contudo, caso o laboratório réu consiga demonstrar que, ao tempo da introdução do produto no mercado, não havia nenhum estudo científico que demonstrasse o nexo causal entre o uso do Sifrol e o "jogo patológico", estaria, em tese, presente a situação de "riscos do desenvolvimento", a qual é caracterizada, tanto no Brasil quanto no exterior, por intensos debates doutrinários. De fato, para alguns doutrinadores os riscos do desenvolvimento afastam o caráter defeituoso do produto  não sendo legítimo esperar mais do que o conhecimento científico, contemporâneo ao lançamento do produto no mercado, foi capaz de alcançar  excluindo, assim, a responsabilidade do fornecedor (CDC, artigo 12, §3º, inciso II) [7]. Outros autores, porém, defendem a responsabilidade do fornecedor também nessa hipótese, argumentando que resta sim caracterizada a reversão da expectativa de segurança do consumidor, o que caracteriza o conceito "normativo" de defeito do produto, nos precisos termos do citado artigo 12, §1º, do CDC [8]. Dentro dessa última visão, há ainda quem considere a situação de riscos do desenvolvimento como uma hipótese de "fortuito interno", isto é, como um "risco inerente" à atividade desenvolvida pelo fornecedor, gerando, em consequência, a sua responsabilidade [9].

Essa última visão foi a adotada, de modo expresso, pela douta ministra relatora, a qual afirmou em seu voto:

"Ainda que se pudesse cogitar de risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, tratar-se-ia de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno".

Tal afirmação, embora feita em um recurso não submetido ao rito dos "recursos repetitivos", representa um importante precedente que tende a ser seguido pelos demais tribunais inferiores e que coloca o Brasil entre os países que não reconhecem os riscos do desenvolvimento como uma excludente da responsabilidade civil do fornecedor de produtos [10]. Representa, assim, um sopro de esperança em meio a tantas incertezas que são observadas, especialmente, na indústria farmacêutica.

 


[1] Para um aprofundamento do tema recomenda-se a leitura da obra de Paula Moura Francesconi de Lemos PEREIRA, Responsabilidade Civil nos Ensaios Clínicos, Indaiatuba, Foco, 2019.

[2] Sobre o tema seja consentido remeter a Marcelo Junqueira CALIXTO, A Responsabilidade Civil do Fornecedor de Produtos pelos Riscos do Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Renovar, 2004.

[3] Eis a ementa do julgado, no que interessa para a presente reflexão: "(…) 5) O risco inerente ao medicamento impõe ao fabricante um dever de informar qualificado (artigo 9º do CDC), cuja violação está prevista no §1º, II, do artigo 12 do CDC como hipótese de defeito do produto, que enseja a responsabilidade objetiva do fornecedor pelo evento danoso dele decorrente. 6) O ordenamento jurídico não exige que os medicamentos sejam fabricados com garantia de segurança absoluta, até porque se trata de uma atividade de risco permitido, mas exige que garantam a segurança legitimamente esperável, tolerando os riscos considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, desde que o consumidor receba as informações necessárias e adequadas a seu respeito (artigo 8º do CDC). 7) O fato de o uso de um medicamento causar efeitos colaterais ou reações adversas, por si só, não configura defeito do produto se o usuário foi prévia e devidamente informado e advertido sobre tais riscos inerentes, de modo a poder decidir, de forma livre, refletida e consciente, sobre o tratamento que lhe é prescrito, além de ter a possibilidade de mitigar eventuais danos que venham a ocorrer em função dele. 8) O risco do desenvolvimento, entendido como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, constitui defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno. 9) Embora a bula seja o mais importante documento sanitário de veiculação de informações técnico-científicas e orientadoras sobre um medicamento, não pode o fabricante se aproveitar da tramitação administrativa do pedido de atualização junto a Anvisa para se eximir do dever de dar, prontamente, amplo conhecimento ao público  pacientes e profissionais da área de saúde  por qualquer outro meio de comunicação, dos riscos inerentes ao uso do remédio que fez circular no mercado de consumo. 10) Hipótese em que o desconhecimento quanto à possibilidade de desenvolvimento do jogo patológico como reação adversa ao uso do medicamento Sifrol subtraiu da paciente a capacidade de relacionar, de imediato, o transtorno mental e comportamental de controle do impulso ao tratamento médico ao qual estava sendo submetida, sobretudo por se tratar de um efeito absolutamente anormal e imprevisível para a consumidora leiga e desinformada, especialmente para a consumidora portadora de doença de Parkinson, como na espécie. 11) De um lado, a culpa concorrente do consumidor não está elencada dentre as hipóteses que excluem a responsabilidade do fabricante, previstas no rol do §3º do artigo 12 do CDC; de outro lado, a responsabilidade por eventual superdosagem ou interação medicamentosa não pode recair sobre o paciente que ingere a dose prescrita por seu médico, considerando, sobretudo, a sua vulnerabilidade técnica enquanto consumidor. (…)".

O acórdão foi publicado no DJe em 18.05.2020.

[4] Para uma aprofundada análise da decisão do TJRS é recomendada a leitura de Tula WESENDONCK, “A Responsabilidade Civil pelos danos decorrentes dos riscos do desenvolvimento do medicamento Sifrol”, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 123, São Paulo, Revista dos Tribunais, mai/jun de 2019, pp. 161-183.

[5] Dispõe o artigo 12, caput, do CDC: “Artigo 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos”.

Por ter afastado a culpa concorrente da consumidora o Tribunal da Cidadania também majorou a reparação do dano extrapatrimonial para R$ 30 mil.

[6] Recorde-se o disposto no artigo 12, § 1º, do CDC: “§ 1° O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – sua apresentação; II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi colocado em circulação”.

[7] Nesse sentido pode ser recordado o artigo de Gustavo TEPEDINO, “A responsabilidade civil médica na experiência brasileira contemporânea”, in Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 2, Rio de Janeiro, Padma, abr/jun de 2000, pp. 41-75.

O artigo 12, § 3º, apresenta as “excludentes” de responsabilidade do fornecedor de produtos, afirmando: “§ 3° O fabricante, o construtor, o produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar: I – que não colocou o produto no mercado; II – que, embora haja colocado o produto no mercado, o defeito inexiste; III – a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro”.

[8] É o que afirma, entre outros, Antônio Herman de Vasconcellos BENJAMIN, Comentários ao Código de Proteção do Consumidor, São Paulo, Saraiva, 1991.

[9] Esse é o entendimento de Sérgio CAVALIERI FILHO, Programa de Responsabilidade Civil, 13ª edição, São Paulo, Atlas, 2019.

[10] O mesmo tratamento se observa, por exemplo, em países como a Alemanha e a Espanha, como recorda Carlos Eduardo Minozzo POLETTO, “Considerações acerca da responsabilização do produtor pelos danos decorrentes dos efeitos colaterais do Sifrol”, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 131, São Paulo, Revista dos Tribunais, set/out de 2020, pp. 297-321.

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