Direto do Carf

STF e Carf: permanece a exigência do Cebas para imunidade das contribuições sociais?

Autores

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

  • Maria Eduarda Alencar Câmara Simões

    é mestre em Advanced Master in International Tax Law (International Tax Center – Leiden University / Holanda) pós graduada em Comércio Exterior (Universidade Federal Rural de Pernambuco) conselheira da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

3 de março de 2021, 8h03

No dia 5 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal, ao concluir o julgamento dos embargos declaratórios opostos pela Fazenda Nacional na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4480, entendeu por não modular os efeitos da decisão que considerou inconstitucionais determinadas regras postas pela legislação ordinária (Lei nº 12.101/2009) para a concessão de imunidade tributária às entidades filantrópicas, especialmente aquelas que fixavam contrapartidas necessárias à concessão do benefício [1].

Spacca
Trata-se da última decisão proferida numa longa história judicial a respeito do usufruto da imunidade das contribuições sociais por parte das entidades filantrópicas.

Para entendermos melhor o tema e a sua repercussão no âmbito do julgamento de processos administrativos pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), faz-se necessária uma pequena digressão.

A Constituição Federal de 1988 previu, no §7º do seu artigo 195, que "são isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei". E aqui transcrevemos o teor do referido dispositivo constitucional por uma razão importante: em que pese este mencionar que se estaria diante de uma "isenção", trata-se, na verdade, de um caso clássico de "imunidade" [2]. E essa impropriedade terminológica findou sendo reproduzida em determinadas normas de hierarquia inferior, bem como em alguns julgados administrativos e judiciais que trataram desta temática.

Disso percebemos que nem tudo que o parece ser, de fato é
Com efeito, no âmbito jurídico não é preciso caminhar muito para tropeçar em uma imprecisão legislativa, jurisprudencial, interpretativa, algumas vezes acidental, outras, intencional. Afinal, não apenas somos humanos, como trabalhamos com uma ciência humana, inexata e dotada de subjetividade, portanto, em sua essência. O exemplo dado acima demonstra que essas imprecisões vêm desde o topo da hierarquia normativa, não fugindo a Constituição Federal à regra basilar de que somos, todos, falíveis.

Pois bem. Nos termos do §7º do artigo 195, as entidades beneficentes de assistência social serão "imunes" da contribuição para a seguridade social desde que atendam às exigências estabelecidas em lei. A ausência de precisão do constituinte levou ao Poder Judiciário uma discussão inicial: seria necessário que as exigências fossem fixadas por meio de lei complementar  em vista do artigo 146, inciso II, da Constituição Federal, que restringe à lei complementar a regulação das limitações constitucionais ao poder de tributar  ou seria suficiente fazê-lo por meio de lei ordinária?

Nesse diapasão, o Código Tributário Nacional, norma recepcionada pela Carta Magna, com força normativa de lei complementar, dispôs em seu artigo 9º, inciso IV, alínea "c", que é vedado à União cobrar imposto sobre o patrimônio, a renda ou serviços das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos. Ademais, elencou em seu artigo 14 as condições necessárias ao usufruto do benefício que lhes é assegurado.

No âmbito da legislação ordinária, o tema encontrou previsão na Lei nº 8.212/1991, que passou a exigir em seu artigo 55, inciso II, o Certificado e o Registro de Entidade de Fins Filantrópicos (CEFF) [3] ou, posteriormente, o Registro e Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) [4] das entidades em questão [5]. Tal instrumento normativo foi revogado pela Lei nº 12.101/2009 [6], a qual, entretanto, permaneceu exigindo a certificação em referência (Cebas) para a fruição da imunidade. Nos termos do artigo 3º dessa última lei, a concessão da certificação deveria observar o cumprimento dos requisitos dispostos nas Seções I, II, III e IV do seu Capítulo II, as quais estabeleciam não apenas normas procedimentais para a emissão do certificado, como também contrapartidas de atuação necessárias ao usufruto da "imunidade", fixando critérios que iam muito além do previsto pelo Código Tributário Nacional (CTN).

O cerne da discussão, então, passou a ser o seguinte: ditas normas infraconstitucionais estariam em linha com o disposto na Carta Magna, ou iriam além dos poderes que lhe eram constitucionalmente concedidos?

Após muita discussão sobre o tema e inúmeras decisões proferidas, algumas, inclusive, contraditórias entre si [7], o STF, ao julgar os embargos declaratórios opostos no RE nº 566.622/RS, em sessão realizada em 18/12/2019, assim concluiu: 

1) "É constitucional o artigo 55, II, da Lei nº 8.212/1991, na redação original e nas redações que lhe foram dadas pelo artigo 5º da Lei nº 9.429/1996 e pelo artigo 3º da Medida Provisória n. 2.187-13/2001";

2) O Tema nº 32 da repercussão geral deveria ser sedimentado da seguinte forma: A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo artigo 195, §7º, da CF, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas".

O que parecia uma tentativa de sedimentação da matéria, contudo, trouxe consigo novos questionamentos. Afinal, sendo a lei complementar a forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social, pergunta-se: essa conclusão seria compatível com a afirmativa de que o artigo 55, inciso II, da Lei Ordinária nº 8.212/1991, que exigia o Cebas, é constitucional? E a resposta, novamente, não é tão simples e objetiva quanto gostaríamos que fosse, gerando debates no Carf sobre a extensão da decisão proferida no RE 566.622/RS (e.g. Acórdão 2301-008.590, de 12/1/2021 e Acórdão 2202-007.777, de 13/1/2021).

No âmbito da 3ª Seção do Carf a matéria era costumeiramente resolvida de maneira desfavorável ao apelo dos contribuintes, sob o entendimento de que "a isenção de entidades beneficentes ao pagamento das contribuições sociais está condicionada ao preenchimento cumulativo dos requisitos fixados em lei" (Acórdão 9303-003.475, de 24/2/2016), entendendo pela suficiência da lei ordinária para este fim, de forma que "a ausência de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social (Cebas) e o descumprimento dos requisitos previstos no artigo 29 da Lei 12.101/2009 autorizam o lançamento de ofício para constituição de crédito tributário referente à Cofins" (Acórdão 3301-006.381, de 18/6/2019).

Contudo, em sessão de julgamento realizada em 11/11/2020 [8] a 3ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF), por meio do Acórdão nº 9303-010.974, reverteu a jurisprudência favoravelmente aos contribuintes, concluindo pela inexigibilidade do Cebas para as empresas que atendam aos requisitos dispostos no artigo 14 do CTN, por entender que a legislação ordinária (Leis nº 8.212/1991 e nº 12.101/2009) exigia contrapartidas que iam além da sua competência.

É importante mencionar aqui que, no caso concreto avaliado do Acórdão nº 9303-010.974, a norma específica que estava em discussão era aquela disposta no artigo 55, II, da Lei nº 8.212/1991 [9], a qual veio posteriormente a ser revogada pela Lei nº 12.101/2009. Outrossim, cumpre realçar que no caso posto em análise pela CSRF houvera uma diligência ao longo do processo em que ficou demonstrado que o contribuinte cumpria os requisitos estabelecidos pelo artigo 14 do CTN, muito embora não detivesse o Cebas.

Dito isso, ao analisar as razões que levaram à virada de entendimento, uma reflexão há de ser realizada: o aspecto temporal dos fatos geradores analisados seria relevante para a fundamentação a ser adotada no julgamento do caso, considerando que a legislação sofreu alteração no decorrer do tempo?

A resposta a esse questionamento, a princípio, deveria ser positiva. Isso porque é certo que a redação e as exigências dispostas na Lei nº 8.212/1991 são distintas daquelas insertas na Lei nº 12.101/2009. Ademais, é certo também que o STF tratou sobre cada uma dessas leis em processos judiciais distintos. Enquanto a Lei nº 8.212/1991 restou analisada no RE 566.622/RS, a Lei nº 12.101/2009 foi objeto de julgamento na ADI 4480.

E foi justamente em razão desta distinção que o STF entendeu pela constitucionalidade do inciso II do artigo 55 da Lei nº 8.212/1991, visto que esse dispositivo, por si só, não impõe a exigência de contrapartidas específicas, mas apenas exige que a entidade beneficente de assistência social seja portadora do referido certificado [10]. Nesse contexto, não há incompatibilidade entre esta conclusão e a outra alcançada pelo Supremo, no sentido de que a lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas.

Em tais casos, portanto, apenas será inconstitucional a exigência do Cebas à medida que a sua concessão tenha sido indeferida em razão de exigências de contrapartidas que não encontrem respaldo no artigo 14 do CTN (norma de hierarquia de lei complementar) [11], mas não em razão de inconstitucionalidade do disposto no inciso II do artigo 55 da Lei nº 8.212/1991, já declarado compatível com o texto da Constituição.

Vale nesse ponto lembrar que, em sessão de julgamento finalizada em 26/03/2020, ao julgar a ADI 4480, o STF, analisando dispositivos da Lei nº 12.101/2009, concluiu pela constitucionalidade daqueles que tratavam tão somente de aspectos meramente procedimentais, e pela inconstitucionalidade de outros, em especial daqueles que impunham contrapartidas específicas para o usufruto da "imunidade", sem correspondência com a lei complementar. E essa decisão restou integrada por meio do julgamento dos embargos declaratórios opostos tanto pelo contribuinte quanto pela União, cuja decisão foi finalizada em 06/02/2021, como mencionado no início do presente artigo.

Desse último julgado em controle abstrato e direto de constitucionalidade, é possível perceber que os dispositivos reconhecidos como inconstitucionais foram aqueles que traziam em seu conteúdo a exigência de contrapartidas específicas à concessão da "imunidade" que não encontravam respaldo em lei complementar, mas não a exigência do Cebas propriamente dita, o qual poderá ser exigido desde que não esteja vinculado à exigência de tais contrapartidas. Nesse contexto, a decisão proferida na ADI 4480 também se apresenta compatível com a decisão exposta no RE 566.622/RS.

Pois bem. Em que pese o emaranhado de decisões sobre o assunto, muitas vezes confundindo não apenas os contribuintes, como também o próprio aplicador do Direito, da análise do conjunto da ópera é possível concluir que não é a exigência do Cebas  enquanto política pública para a qual importa o controle das entidades beneficentes de assistência social responsáveis pela difusão do acesso à educação, à saúde ou à assistência social  em si, que é inconstitucional, mas, sim, a exigência de contrapartidas específicas para que o Cebas seja concedido, face à necessidade de lei complementar para este fim.

Tal decisão está tomada pelo guardião da Constituição, restando agora ao Carf, daqui para frente, a tarefa de, diante das particularidades dos casos concretos que lhe são endereçados, avaliar se a ausência do Cebas é suficiente para negar o direito à imunidade posta no artigo 195, §7º, da Constituição Federal, verificando se a certificação foi negada por imposição de contrapartidas diferentes daquelas estabelecidas no CTN.

 


[1] Tal decisão, segundo se anuncia, representa uma perda bilionária para os cofres públicos

[2] É certo que não se devem confundir as duas citadas figuras do direito tributário: imunidade e isenção. A primeira é norma constitucional que demarca competência tributária das pessoas políticas (competência negativa). A seu turno, a isenção, sempre trazida por lei, faz com a norma jurídica instituidora do tributo passe a ter sua abrangência restringida, fato que impede o nascimento do tributo. Por isso é que a doutrina trata o artigo 7º do artigo 195 da CF/88 como uma “falsa isenção”.

[3] Conforme redação dada pela Lei nº 9.429/1996.

[4] Nos moldes da alteração introduzida pela Medida Provisória nº 2.187-13/2001.

[5] No Parecer nº 2.272 de 28 de agosto de 2000 restou assentada a competência do INSS para verificar o cumprimento do disposto no artigo 55 da Lei nº 8.212/91, representando ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) acerca da inobservância das exigências previstas no Decreto nº 2.536/1998, decreto este que exigia contrapartidas específicas para a concessão do certificado.

[6] Regulamentada pelo Decreto nº 8.242/2014.

[7] ADIs 2.028, 2.036, 2.621 e 2.228.

[8] Quando já vigorava o artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, que incluiu o artigo 19-E na Lei nº 10.522/2002, excluindo o voto de qualidade em favor da fazenda pública nos casos de empate ali previstos.

[9] Período de apuração de 01/01/1997 a 31/12/2001

[10] A exigência de contrapartidas específicas constou apenas do Decreto nº 2.536/1998, tendo o STF concluído pela inconstitucionalidade dos dispositivos deste decreto que as previam ao julgar as ADIs nº 2228 e 2621.

[11] Tais quais as dispostas no Decreto nº 2.536/1998.

Autores

  • é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

  • é mestre em Advanced Master in International Tax Law (International Tax Center – Leiden University / Holanda), pós graduada em Comércio Exterior (Universidade Federal Rural de Pernambuco), conselheira da 3ª Seção de Julgamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

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