Tribuna da defensoria

A imprescindibilidade da tutela coletiva de direitos pela Defensoria Pública

Autor

  • Renata Martins de Souza

    é defensora pública do estado de Minas doutora em Direito Público e mestre em Teoria do Direito pela PUC-MG e professora de graduação do curso de Direito.

2 de março de 2021, 8h02

A crise provocada pela pandemia da Covid-19 produz inúmeras consequências, sobretudo na vida das pessoas historicamente relegadas às margens da sociedade. Contudo, a despeito de as mazelas sociais ganharem maior visibilidade no contexto pandêmico, não se pode olvidar o fato de que o Brasil, desde o início de seu processo de formação, é marcado por uma exclusão social crônica, a qual se mantém na sociedade moderna e ressoa no plano do Direito. Ou seja, a propagação da pandemia não cria, apenas faz acirrar a perversa desigualdade social e econômica no país.

É razoável, pois, que, nessa situação, não sejam ignorados os mecanismos voltados ao empoderamento de grupos oprimidos por meio do acesso às instâncias do poder Judiciário, objetivando sua participação e influência nas decisões político-sociais.

Conforme expõe Santos (2011, p. 09), esse é um momento em que progressivamente os cidadãos  especialmente as classes populares — têm consciência de que as desigualdades não são um dado adquirido, traduzindo-se em injustiças e, consequentemente, na violação dos seus direitos. Essa nova consciência de direitos estimula as vítimas desse crescente processo de diferenciação e exclusão a reclamarem, cada vez mais, individual e coletivamente, o direito de serem ouvidas e se organizarem para resistir. Acrescenta o autor:

"É evidente que o sistema judicial não pode resolver todos os problemas causados pelas múltiplas injustiças. Mas tem que assumir a sua quota-parte de responsabilidade na resolução. O sistema judicial está, hoje, colocado perante o seguinte dilema. Se não assumir a quota-parte da sua responsabilidade, continuará a ser independente de um ponto de vista corporativo, mas será cada vez mais irrelevante tanto social, como politicamente. Deixará de ter aliados na sociedade e isolar-se-á cada vez mais. Se, pelo contrário, assumir a sua quota de responsabilidade, politizar-se-á e, com isso, aumentará o nível de tensão e conflito, quer internamente, quer no relacionamento com outras instâncias do poder. Verdadeiramente, ao sistema judicial não resta outra alternativa senão a segunda. Tem que perder o isolamento, tem que se articular com outras organizações e instituições da sociedade que possam ajudar a assumir a sua quota-parte de responsabilidade" (SANTOS, 2011, p. 26).

Reconhecendo, pois, o protagonismo assumido pelo Judiciário nas últimas décadas e a possibilidade de ele vir a encampar, em seus julgados, a demanda de grupos mais desvalidos, o foco é comprovar a imprescindibilidade da atuação da Defensoria Pública nesse processo de reversão dos padrões de desigualdade, bem como apontar os desafios sofridos pela instituição para superar as limitações vivenciadas durante o período da pandemia, dada a constatação de que grupos vulnerabilizados socialmente  idosos, presos, indígenas, pessoas em situação de rua e população periférica em geral  são os que sofrem repercussões mais danosas diante do referido contexto.

Quanto a esse ponto, convém assinalar que no intuito de franquear o acesso à Justiça a todos, o artigo 134 da Constituição Federal de 1988 (CF/88), concede à Defensoria Pública status de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do artigo 5º, LXXIV, da CF/88.

Além disso, em conformidade com a Lei Complementar nº 80/1994, constituem objetivos institucionais da Defensoria Pública: a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; a afirmação do Estado democrático de Direito; a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Assim, calcada na expansão da cidadania, além de prestar o serviço de assistência jurídica integral aos vulneráveis, o papel da Defensoria envolve, também, a conscientização e educação de seus assistidos em direitos e deveres, dando-lhes conhecimento acerca dos processos históricos, sociais e políticos de dominação que caracterizam a sociedade brasileira, assegurando-lhes condições de poderem se expressar juridicamente, com base em mecanismos postos à disposição deles para combater essa desigualdade.

Por derradeiro, percebe-se que a Defensoria não se presta apenas ao patrocínio judicial de demandas individuais dos necessitados (condição que deve ser aferida do ponto de vista não apenas econômico, mas também social e organizacional), uma vez que também é responsável pela orientação extrajudicial de enorme parcela da população, além de atuar na tutela de direitos coletivos.

Contudo, diante da pandemia, inegável torna-se reconhecer que a migração do serviço presencial para o teletrabalho da Defensoria Pública impactou diretamente a vida dos assistidos mais vulneráveis, despidos de acesso às infraestruturas mínimas como telefone, internet, celular e computador.

Importante salientar, nesse sentido, que segundo aponta estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas e pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), 92,6% dos 530 defensores públicos ouvidos durante o levantamento da pesquisa acredita que o acesso à Justiça foi impactado pela pandemia. Quase metade desses profissionais (47%) possui a percepção de que não estão conseguindo atender o público satisfatoriamente. Destaca, ainda, a pesquisa, que os principais grupos assistidos pelos defensores são pessoas pobres e extremamente pobres (21,3%), em situação de rua (18,8%), e idosas (15,4%) geralmente impossibilitados de comunicação com os defensores e com a Justiça por meio digital.

Quanto a tal fato, registram Gonçalves Filho, Leitão e Soares (2021) que as novas tecnologias apresentam um paradoxo, dada a possibilidade de ao mesmo tempo potencializar o acesso à justiça e também criar obstáculos, afetando a capacidade pessoal de acessá-las. Nesse sentido, destacam que, durante a pandemia, pessoas que nunca haviam acessado a Defensoria Pública anteriormente passaram a utilizar seus serviços, justamente por conta da facilidade, para alguns, proporcionada pelo simples ato de enviar uma mensagem via WhatsApp para a central telefônica da instituição. A despeito disso, asseveram também que para aqueles que não possuem acesso ou não conseguem utilizar os meios tecnológicos, a adoção de atendimentos por meios unicamente virtuais pode representar obstáculo insuperável. Concluem, assim, ser necessário que ocorram encontros presenciais como opção para aqueles que não possam ou não consigam se valer do atendimento remoto, ou seja, há necessidade de se adotar o modelo híbrido.

Diante desse cenário, sem prejuízo da adoção do sistema híbrido de atendimento, objetivando minimizar os impactos causados pela situação, surge também a necessidade de a instituição intensificar atuações estratégicas por meio de canais de demanda coletiva, para que a população mais vulnerável não fique sem assistência jurídica.

Buscando reforçar a importância e aptidão da instituição para atuar estrategicamente na promoção dos direitos humanos, afigura-se oportuno citar a posição da defensora Monaliza de Morais (2020, p. 235), segundo a qual a litigância estratégica, decorrente do desenvolvimento e da difusão dos direitos difusos e coletivos nos últimos anos no Brasil, "volta-se especialmente para proteção das populações vulneráveis, público alvo da Defensoria Pública, uma vez que são as mais prejudicadas por conflitos de proporções estruturais".

Assim, sem embargo do importantíssimo papel consistente na defesa individual de direitos nas demandas judiciais, não se deve olvidar do fato de que a atual configuração institucional da Defensoria lhe permite ir além, não encontrando sua missão limitada à prestação de orientação jurídica e exercício da defesa dos necessitados no plano individual, dada a sua habilidade para vislumbrar situações de opressão de direitos humanos em larga escala.

Nessa linha de reflexão, incumbe enfatizar que logo nos primeiros meses de pandemia centenas de demandas coletivas restaram intentadas pela Defensoria, com o objetivo de resolver conflitos estruturais e garantir direitos aos mais necessitados. Senão vejamos.

A Defensoria Pública do Estado do Maranhão, por exemplo, por meio do Núcleo Regional de Paço do Lumiar, ajuizou ação civil pública para que o município de Paço do Lumiar fosse obrigado a fornecer alimentação escolar a todos os alunos da rede pública municipal, durante todo o período de suspensão de aulas presenciais, em meio à pandemia de Covid-19. Na oportunidade, destacou a Defensoria a necessidade da judicialização da demanda, considerando que não houve a adoção de uma política pública que garantisse a continuidade do fornecimento da merenda escolar, que, muitas vezes, é a única refeição completa de várias crianças e adolescentes carentes.

Por sua vez, a Defensoria Pública do Estado de Goiás pleiteou a adoção de medidas imediatas para garantir à população em situação de rua acesso a alimentação e higiene completa (banho, assepsia de mãos, lavagem de roupas), além de vacinação contra gripe e equipamentos de proteção individual para os servidores, terceirizados e demais colaboradores que atuam no atendimento a essa população. As medidas foram garantidas por meio de decisão liminar, concedida no bojo de ação civil pública ajuizada pela instituição.

Na decisão, o Poder Judiciário atendeu aos pedidos do Núcleo Especializado de Direitos Humanos de disponibilização de ponto de apoio de alimentação e higiene, até que se encerre definitivamente a decretação do estado de emergência na cidade de Goiânia e no Estado de Goiás. Além disso, para as pessoas em situação de rua que encontram-se no grupo de risco para Covid-19 (pessoas idosas, gestantes e pessoas com doenças crônicas, imunossuprimidas, respiratórias e outras comorbidades preexistentes) ou que apresentem suspeita de contaminação pelo coronavírus, a Defensoria Pública garantiu que a prefeitura disponibilize local apartado para garantia de isolamento nos próprios equipamentos da rede socioassistencial ou locais que atendam às necessidades de cuidados sanitários.

Nessa mesma perspectiva de atuação coletiva, válido também é registar que o Poder Judiciário de Minas Gerais acolheu, em sede de tutela de urgência antecipada, pedido formulado em ação civil pública pela Defensoria Pública mineira, em abril de 2020, por meio da qual a instituição demandava a suspensão de determinação de decreto municipal de Belo Horizonte, que estabelecia o fim da gratuidade do transporte público às pessoas maiores de 65 anos nos horários de alta demanda de passageiros, como medida para dificultar a propagação do Covid-19 no município. No bojo da ação, a Defensoria alega, em síntese, que não se pode utilizar o argumento de que vivemos uma crise do coronavírus para, de forma flagrante, violar norma a constitucional expressa e norma legal no mesmo sentido, sob pena de migrarmos de um Estado democrático de Direito para um Estado anárquico. O acolhimento do pedido, em sede liminar, por certo, implica a tutela de interesses individuais e coletivos dos idosos, grupo social vulnerável que merece proteção especial do Estado.

Os casos acima ilustrados, de judicialização de demandas coletivas, denotam que a instituição, pautada na proteção dos direitos humanos em larga escala e buscando produzir a transformação social, vem se mostrando apta a oportunizar aos mais alijados o acesso à ordem democrática e ao princípio do acesso à Justiça, mesmo em momentos de acentuada crise.

Nessa conjuntura, atesta-se que, a despeito da lógica não declarada de enfraquecimento e aviltamento Defensoria por parte do Estado, a instituição encontra-se essencialmente comprometida a cidadania, democracia, igualdade e justiça social, demonstrando, por meio da intensificação dos mecanismos de tutela coletiva, ser possível a superação do silenciamento de segmentos sociais estigmatizados e o fortalecimento de uma narrativa coletiva que funcione como um roteiro para transformações sociais positivas, mesmo em tempos de pandemia.

 

Referências bibliográficas
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PANDEMIA afastou vulneráveis do acesso à justiça, revela pesquisa. Agência Brasil, 4 ago. 2020. Disponível em:<https://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2020-08/pandemia-afastou-vulneraveis-do-acesso-justica-revela-pesquisa>. Acesso em: 18 fev. 2021.

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