Paradoxo da Corte

Proibição do pactum de non petendo na jurisprudência do STJ

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

2 de março de 2021, 8h01

O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, consagrando norma idêntica constante das anteriores Cartas Políticas do Brasil, encerra o princípio da reserva legal, também denominado da inafastabilidade da jurisdição, ao preceituar que: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Observa-se que o caput do artigo 3º do Código de Processo Civil reitera essa mesma regra, reservando ao Estado-juiz o monopólio da jurisdição.

Isso significa que a ninguém é dado renunciar à defesa de seus direitos diante de uma potencial lesão futura! Daí, porque desponta nulo e ineficaz qualquer pactum de non petendo, estipulado como cláusula de negócio jurídico, pelo qual um dos contratantes se compromete a não recorrer ao Poder Judiciário caso surja algum litígio entre eles ou, ainda, autorizar ato de constrição judicial pela outra parte, abrindo mão de qualquer resistência.

Instada a examinar situação em que o devedor, no acordo celebrado com a entidade financeira credora, renunciou ao direito de opor impugnação, a 16ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao ensejo do julgamento do Agravo de Instrumento nº 2194531-67.2014.8.26.0000, da relatoria do desembargador Miguel Petroni Neto, averbou, com absoluto acerto, que: "(…) O acordo que foi formalizado veio a constituir novo título executivo — se trata de instrumento de confissão de dívida —, de forma que se a execução é sobre o novo pacto e incidente sobre o valor principal, constante da cláusula 2ª (conforme cláusula 8ª), ele não poderia afastar o direito de defesa do devedor, uma vez que após a transação pode ter surgido fato que justifique a defesa. Assim, é nula a cláusula 16ª por violar o princípio legal da defesa (…)".

Pois bem, dentre as novidades inseridas no vigente Código de Processo Civil brasileiro destaca-se aquela prevista no caput do artigo 190, que tem a seguinte redação: “Versando o processo sobre direitos que admitem autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo”.

É certo que as convenções de natureza processual já existiam em nosso sistema processual (dispensa de audiência, suspensão do processo, distribuição do ônus da prova, critério para a entrega de memoriais, adiamento de julgamento em segundo grau), embora sem a dimensão contemplada no diploma processual em vigor (v., sobre o tema, Robson Godinho, Negócios processuais sobre o ônus da prova no novo Código de Processo Civil, São Paulo. Ed. RT, 2015).

As convenções processuais propiciadas pela regra do artigo 190 encerram a possibilidade de as partes acordarem sobre a realização de atos procedimentais e, ainda, acerca de ônus, faculdades e deveres processuais, que vinculam o juiz e que não estão sujeitos à homologação (artigo 200 CPC/2015), mas apenas ao controle de sua respectiva higidez, sobretudo no que se refere às garantias processuais, que não admitem preterição em hipótese alguma.

As convenções processuais almejam, pois, alterar a sequência programada dos atos processuais prevista pela lei, mas desde que não interfiram em seus efeitos. Enquanto há disponibilidade no modo de aperfeiçoamento dos atos do procedimento, a sua eficácia descortina-se indisponível, ainda que o objeto do litígio admita autocomposição.

Ademais, há óbice às partes convencionar sobre ato processual regido por norma de ordem pública, cuja aplicação é obrigatória.

De fato, tal orientação restou assentada pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no recentíssimo julgamento do Recurso Especial n. 1.810.444/SP, relatado pelo ministro Luis Felipe Salomão, que, com a costumeira segurança, bem equacionou a questão.

Após deixar consignado o reconhecimento da amplitude e da liberdade, proporcionada às partes litigantes pela regra do artigo 190 do Código de Processo Civil, encontra-se ela sempre condicionada ao respeito à dignidade da pessoa humana e às limitações impostas pelo devido processo legal.

Verifica-se que no caso concreto, então submetido à apreciação da 4ª Turma, uma empresa interpôs recurso especial contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo,  no qual foi reconhecida a nulidade da estipulação inserida num acordo celebrado entre as partes, pela qual a credora recorrente estaria autorizada a obter liminarmente o bloqueio dos ativos financeiros do outro contratante, recorrido, sem que este fosse ouvido e, ainda, dispensando-se a credora de prestar qualquer garantia.

O recurso especial manejado pela empresa credora lastreou-se no princípio da livre manifestação da vontade das partes, consagrado exatamente no já referido artigo 190 do Código de Processo Civil.

Infere-se que o acórdão recorrido, prolatado pela 33ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça bandeirante, havia decidido que o pacto avençado entre as partes, atinente à constrição liminar do patrimônio do devedor interferia no poder geral de cautela do julgador, uma vez que o deferimento de tutela provisória de urgência antes mesmo da citação do executado constitui ato de cognição exclusiva do magistrado, sendo, portanto, ilegal a convenção no que concerne a tal pactuação. Extrai-se do voto do relator desembargador Sá Moreira de Oliveira, que o enunciado do artigo 190: “trata de cláusula geral de negociação sobre o processo, autorizadora da celebração de negócio jurídico processual, mas evidentemente que o exercício da vontade nessa seara não é ilimitado, encontrando limites no modelo de atuação estatal jurisdicional, suas normas públicas e cogentes, dependendo da observância da distribuição constitucional de competência legislativa (artigo 24, inciso XI, da Constituição Federal), da força normativa dos princípios e também do preenchimento dos requisitos de validade nos exatos termos do artigo 104 do Código Civil”.

Ao julgar o recurso especial, o voto condutor da lavra do ministro Luis Felipe Salomão, ao prestigiar o ato decisório colegiado recorrido, destacou o entendimento da doutrina segundo o qual a autonomia da vontade, antes definida como a qualidade de essência do negócio, deu lugar à autonomia privada, em que a associação a princípios como o da boa-fé e o da solidariedade social tornou-se impositiva. Todavia, ponderou o relator que a regra do artigo 190 do Código de Processo Civil apenas autorizou a possibilidade da celebração de convenções processuais, sem delimitar, contudo, “contornos precisos, optando pelo uso de termos indeterminados para conceituar a cláusula geral”.

Segundo asseverou o eminente ministro Luis Felipe Salomão, o parágrafo único do artigo 190 poderia levar à conclusão de que os negócios jurídicos processuais não se sujeitariam a um juízo de conveniência do magistrado, exceto nos casos de nulidade, de inserção abusiva em contrato de adesão ou de vulnerabilidade manifesta de uma das partes.

No entanto, o voto deixou assentado, com absoluta precisão, que este controle se descortina complexo, pois "não se limita à observância dos requisitos de validade apontados na legislação híbrida entre direito processual e direito civil, mas, também, e principalmente, aos ditames constitucionais".

Em conclusão, o pronunciamento unânime da 4ª Turma, secundando o entendimento do tribunal de origem, frisou que a convenção em análise representava inequívoca afronta às garantias do devido processo legal, sendo incongruente vincular o julgador à regra pactuada pelas partes, que coarcta a plena efetivação da função jurisdicional. A rigor, a ausência de contraditório na situação focada quebra a paridade de armas que sempre deve ser assegurada aos litigantes, fator implicativo da nulidade do referido pacto.

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