Opinião

O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 está em risco

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2 de março de 2021, 10h47

Foi publicada no Diário Oficial do último dia 11 uma portaria do Ministério, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (Portaria nº 457 de 10 de fevereiro de 2021 [1]) criando um grupo de trabalho para realização de análise ex ante da Política Nacional de Direitos Humanos. Um primeiro olhar pode achar que se trata de um ato rotineiro da Administração, visando a estudar a aplicação do Programa Nacional de Direitos Humanos 3. Um olhar mais aprofundado identifica um conjunto de riscos à continuidade da aplicação do referido programa, que já havia sido seriamente atacado, no primeiro ano do governo Bolsonaro, pela extinção do seu Comitê de Acompanhamento e Monitoramento, pelo Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro de 2019.

O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) 3 é tributário de uma das mais bem-sucedidas políticas públicas brasileiras, gestada e desenvolvida na Nova República. Na transição da Ditadura Militar (1964-1985) para a democracia dos governos civis, o Estado brasileiro começou a atuar mais incisivamente e menos teatralmente no cenário internacional dos direitos humanos, seja a nível global (das Nações Unidas), seja a nível regional (interamericano).

A primeira medida, para tanto, foi ratificar os vários tratados internacionais em direitos humanos, pendentes de comprometimento pelo Estado brasileiro. Isso aconteceu principalmente (mas não exclusivamente) entre 1989 e 1996. A segunda medida foi a aceitação da atuação de mecanismos de efetivação, desde o reconhecimento de jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998 até a atuação em casos individuais pelos comitês de tratado das Nações Unidas. Isso aconteceu principalmente (mas não exclusivamente) entre 1998 e 2002.

A partir de então, a atuação internacional brasileira sempre foi ativa e exemplar através do Itamaraty e da Secretaria Especial de Direitos Humanos, ainda que o déficit interno de respeito, promoção e proteção aos direitos humanos permanecesse (como ainda permanece) muito constrangedoramente alto, com grande diversidade de violações em direitos humanos, com destaque para a impunidade e para criminalidade contra a pessoa e contra as defensoras e defensores de direitos humanos.

Na atuação ativa junto ao sistema global de direitos humanos, o Brasil praticou importante ato de transparência internacional ao manter convite permanente (2001) para as relatoria especiais das Nações Unidas visitarem o território nacional e monitorarem as nossas práticas frente aos compromissos em matéria de direitos humanos. O texto final da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em Viena, 1993, da qual o Brasil participou, inclusive, do comitê de redação, estabeleceu os programas nacionais como estratégicos na implementação dos direitos humanos. Também perante o então recém-criado Conselho de Direitos Humanos (2006), o Brasil fez compromissos, dentre eles: atuação próxima à sociedade civil na promoção e proteção aos direitos humanos (2016). Nesse ponto, a política dos Programas Nacionais de Direitos Humanos se destaca.

O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3) é um documento complexo, que dá base à atuação do Estado orientada por direitos humanos e, para isso, que define um conjunto de diretrizes, em diferentes aspectos da atuação do poder público, chamados "eixos temáticos". Além disso, estabelece, em cada diretriz, "objetivos estratégicos" e, neles, "ações programáticas", com os respectivos órgãos responsáveis.

O primeiro Programa Nacional de Direitos Humanos foi concluído e publicado em 1996, via Decreto nº 1.904/1996 [2]. Nessa primeira edição, a segurança das pessoas foi ponto de destaque, colocando-se em debate a violência policial e a impunidade dos crimes cometidos no Brasil. Temas como trabalho forçado, refúgio e advocacy em direitos humanos tomaram espaço de destaque. De outro lado, o abuso na penalização também apareceu de forma a se evitar o "aprisionamento de esquecimento" das pessoas nos estabelecimentos prisionais. Do ponto de vista de grupos socialmente vulnerabilizados, mulheres, crianças e adolescentes, sociedades indígenas, terceira idade e pessoas com deficiência se destacaram.

Já o segundo Programa Nacional de Direitos Humanos foi concluído e publicado em 2002, através do Decreto nº 4.229/2002 [3]. Novamente a violência policial, tortura e execuções sumárias aparecem com destaque, seja a violência policial nos estabelecimentos prisionais, "caso Carandiru", seja a violência policial contra campesinos, pessoas sem terra, "caso Eldorado dos Carajás". Por conta disso, aparecem medidas propostas, tais como: o Plano Nacional de Segurança Pública e reforço na atuação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público. Por outro lado, inova-se ao tratar das pessoas desaparecidas por questão de opinião política com o reconhecimento civil de morte presumida. Aqui aparecem as bases do programa para o debate sobre Justiça de Transição. Temas como educação, saúde, trabalho e previdência social tomam espaço de destaque. Do ponto de vista de grupos socialmente vulnerabilizados, mulheres, crianças e adolescentes, povos indígenas (não mais sociedades indígenas), idosos (não mais terceira idade), gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais (GLTTB) e pessoas com deficiência se destacaram.

O atual Programa Nacional de Direitos Humanos 3 foi firmado no final de 2009 e início de 2010, com a edição do Decreto nº 7.037/2009 e do Decreto nº 7.177/2010, que o atualizou, e foi construído em um processo que é um exemplo no que se refere à participação social. Aproximadamente 14 mil pessoas estiveram envolvidas nos debates e na construção do texto final do PNDH III durante a 11ª Conferência Nacional em Direitos Humanos e todas as conferências estaduais e municipais associadas. Isso colocou o Brasil como exemplo de boa prática internacional em relação aos programas nacionais sobre direitos humanos.

O PNDH III tem seis eixos temáticos orientadores: Eixo Orientador 1: Interação democrática entre Estado e sociedade civil; Eixo Orientador 2: Desenvolvimento e Direitos Humanos; Eixo Orientador 3: Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdades; Eixo Orientador 4: Segurança Pública, Acesso à Justiça e Combate à Violência; Eixo Orientador 5: Educação e Cultura em Direitos Humanos; Eixo Orientador 6: Direito à Memória e à Verdade. Essa estrutura permitiu que temas como participação democrática, indivisibilidade dos direitos humanos, controle de ações da polícia, impunidade, acesso à Justiça, acesso à terra, formação e educação em direitos humanos fossem tratados a partir do olhar de grupos socialmente vulnerabilizados. Assuntos polêmicos, até então mal resolvidos na sociedade brasileira, tomaram corpo e mostraram a possibilidade de saírem do papel:, como a Comissão Nacional da Verdade sobre as atrocidades praticadas durante a ditadura militar.

Em 2019, o monitoramento de implementação do PNDH III [4] coletou diversas informações sobre os eixos temáticos e fez o Conselho Nacional de Direitos Humanos recomendar adequação urgente e imediata do governo federal aos ditames do PNDH III em vista dos desvios praticados pelas autoridades do Executivo federal. Entre as recomendações, destacam-se as seguinte: 1) adequar-se imediatamente ao PNDH 3 em suas atividades, práticas administravas e declarações públicas, que, eventualmente, sejam monitoradas e classificadas como violadoras do PNDH 3; 2) a recriação de Comitê de Acompanhamento e Monitoramento do PNDH 3 mediante revogação do Decreto nº 10.087/2019 na parte que extingue o comitê [5].

Há diversos riscos que decorrem de uma possível mudança unilateral do programa, pensada e executada nas entranhas da Administração, a partir do trabalho da comissão recém constituída.

A desestruturação do programa pode denotar, para a comunidade internacional, uma resistência do Brasil em se submeter aos compromissos internacionais já assumidos. O país precisa sinalizar em sentido oposto, já que, na atualidade, a sua imagem internacional sofre abalos decorrentes de um conjunto de declarações de agentes públicos e de medidas concretas em temas como segurança pública, respeito a liberdade de expressão e meio ambiente.

Mas as nossas preocupações vão além da necessidade de preservar nossa imagem perante a comunidade internacional. Preocupa-nos a possibilidade de que as possíveis mudanças sejam impregnadas de elementos ideológicos associados a posturas autoritárias.

Como demonstramos, não se trata de uma política pública cerebrina, gestada em gabinetes, por poucos, mas o resultado de um processo fortemente participativo, que incorporou agentes com as mais variadas orientações e experiências. Assistimos nos últimos anos, no país, o fechamento de importantes canais de participação social na Administração, o que ficou evidente com a edição do Decreto nº 10.087, de 5 de novembro de 2019

Trata-se, aqui, de proteger parâmetros que foram estabelecidos pela sociedade para forçar o Estado a respeitar um conjunto de limites e preservar direitos que estão na base do funcionamento de uma sociedade democrática. O Programa Nacional de Direitos Humanos 3 contempla, em seu conteúdo, um amplo espectro de preocupações, orientando os agentes públicos a manterem uma atuação inspirada nos vários compromissos internacionais assumidos pelo Brasil ao longo dos anos.

 


[1] Portaria nº457 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em 10 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/portaria-n-457-de-10-de-fevereiro-de-2021-303365015.

[5] Recomendação 27, de 11 de dezembro de 2019 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-de-direitos-humanos-cndh/Recomendaon27PNDH3.pdf.

Autores

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    é advogado, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), professor do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC) e pesquisador PQ 2-CNPq.

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    é advogado, professor de Direito e de Relações Internacionais e pesquisador do Moinho Jurídico.

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    é advogado, professor da Unicap, doutorando do PPGD/Unicap, coordenador da Cátedra Unesco/Unicap Dom Helder Camara de Direitos Humanos e membro do Grupo Recife de Estudos Constitucionais (REC).

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