Opinião

Considerações sobre o bem de família do fiador em contratos de locação

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2 de março de 2021, 6h03

Recentemente voltaram às manchetes notícias envolvendo o polêmico tema da penhorabilidade ou não do bem de família do fiador no âmbito de contratos de locação.

O debate sobre o assunto envolve os entendimentos diversos, refletidos principalmente nos julgamentos do Tema de Repercussão Geral nº 295 (Tema 295), originado a partir do Recurso Extraordinário nº 612.350 (RE 612.360), publicado em 3/9/2010, e do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 605.709 (RE 605.709), julgado em 12/7/2018, bem como o previsto na Lei nº 8.009/1990 (Lei 8.009).

Contextualização dos julgados
No Tema 295 [1], resultante do julgamento do RE 612.360, de relatoria da ministra Ellen Gracie, o colegiado entendeu pela penhorabilidade do bem de família do fiador. À época, a ministra repetiu um entendimento já consolidado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em momento anterior quando, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 407.688-8, o ministro Cezar Peluso defendeu que "a expropriabilidade do bem do fiador tende, posto que por via oblíqua, também a proteger o direito social de moradia, protegendo direito inerente à condição de locador, não um qualquer direito de crédito".

Por sua vez, no julgamento do RE 605.709, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu pela impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação comercial quando a ministra Rosa Weber abriu divergência e foi seguida pela maioria dos colegas. A ministra optou por privilegiar a dignidade da pessoa humana e a proteção à família, em detrimento da satisfação de crédito do locador de imóvel comercial e do estímulo à livre iniciativa. Para Rosa Weber, o bem de família do fiador "não pode ser exigido a pretexto de satisfazer o crédito do locador ou de estimular a livre iniciativa".

De toda forma, apesar da contrariedade envolvendo tal decisão e o exposto no RE 612.360, tal fato não impediu a ministra Rosa Weber de mencionar o próprio Tema 295 no julgamento do RE 605.709, conforme relatado abaixo.

Tal menção foi trazida pela ministra especialmente ao justificar que, na hipótese em que se entendesse pela penhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação comercial, não se privilegiaria o direito fundamental à moradia, "ao contrário do que se verifica na locação residencial". Para Rosa Weber, ainda, "eventual desestímulo à livre iniciativa que decorra da afirmação da impenhorabilidade do bem de família em contrato de locação comercial não se reveste de envergadura suficiente para suplantar a necessidade de observar o direito constitucionalmente assegurado à moradia".

Lei 8.009: excludentes de impenhorabilidade
Todo o debate gira em torno das hipóteses excludentes de impenhorabilidade, cuja previsão taxativa está contida no artigo 3º da Lei 8.009, especialmente no inciso VII [2], introduzido pela Lei nº 8.245/1991 (Lei de Locações Urbanas).

A Lei 8.009/1990, além de definir o bem de família [3] e ditar sua impenhorabilidade, estabeleceu que, entre outras excludentes, tal impenhorabilidade pode ser afastada na hipótese em que o locador busca satisfazer seu crédito por meio da penhora do bem do fiador, diante do inadimplemento do locatário.

Aqui, cabe ressaltar que o dispositivo da Lei 8.009 não fez distinção quanto à natureza do contrato de locação (isto é, se residencial ou comercial). Mesmo assim, sem observarem o texto legal, os intérpretes e julgadores estabeleceram diferenciações de tratamento no tocante à destinação do imóvel locado, conforme pode-se depreender da dualidade de entendimentos exposta acima.

Além disso, a exceção prevista na Lei 8.009 fez surgir outro debate, quando da contraposição do disposto no inciso VII do artigo 3º com o objeto da Emenda Constitucional nº 26/2000 (EC 26/2000), promulgada em momento posterior à inclusão da norma excludente da impenhorabilidade, que acabou por incluir o direito à moradia como direito fundamental, inserindo-o no artigo 6º da Constituição Federal [4].

Movimentações recentes no Poder Judiciário
No ano passado, no dia 31 de julho, teve ocasião o julgamento do Recurso Extraordinário nº 1.278.427 (RE 1.278.427), de relatoria da ministra Carmen Lúcia, cuja decisão confirmou o entendimento pautado pela impenhorabilidade do bem de família do fiador, garantidor de contrato de locação comercial, em concordância com o entendimento do RE 605.709, resultando na anulação da penhora então existente.

Como era de se esperar, a contrariedade entre os entendimentos já aqui exposta motivou a oposição de embargos de divergência, ainda no âmbito do RE 605.709, com o objetivo de obter a reforma integral do acórdão embargado, apresentando como uma de suas justificativas a violação ao precedente constitucional objeto do Tema 295.

Além disso, os embargos de divergência trouxeram à tona o entendimento do ministro Dias Toffoli, vencido na ocasião do julgamento do RE 605.709, quando o ministro entendeu que a lei "não fez qualquer diferenciação quanto à natureza do contrato de locação, razão pela qual não há como se acatar a interpretação pretendida pelos recorrentes". Àquela altura, os recorrentes buscavam justamente a diferenciação entre o fiador em locação comercial e o fiador em locação residencial, com vistas a evitar as consequências advindas pela penhora.

De acordo com os entes embargos, o entendimento exposto no RE 605.709 estava em manifesta contrariedade com outras decisões proferidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal, algumas já expostas no presente artigo. Para os recorridos, o RE 612.360, leading case do Tema 295, tratava especificamente da locação de imóvel comercial, exatamente como ocorreu no RE 605.709. Além disso, os recorridos aproveitaram para contrapor o entendimento proferido pelas ministras Rosa Weber e Carmen Lúcia com o entendimento de outras decisões democráticas e acórdãos anteriores, incluindo o RE 612.360 e o RE 407.688-0.

Em 1º/10/2020, no julgamento dos embargos de divergência, a suposta controvérsia entre as decisões proferidas pelo próprio Supremo não foi acatada, já que: 1) decisões de caráter monocrático não se revelam hábeis à demonstração de dissídio jurisprudencial; e 2) os acórdãos invocados apresentam por objeto controvérsia em contexto diverso. Para reforçar referido entendimento, Celso de Mello repetiu o voto da ministra Rosa Weber no âmbito do RE 605.709. Aqui, entretanto, cabe ressaltar que se encontra pendente o julgamento de embargos de declaração, opostos em 19/10/2020, por ocasião do julgamento dos embargos de sivergência.

Considerações finais
Conforme exposto, tais interpretações resultam em dois entendimentos diversos: 1) o primeiro, já consolidado pelo Tema 295, que entende pela penhorabilidade do bem de família do fiador, em razão da compatibilidade da exceção prevista na Lei 8.009, em seu artigo 3º, inciso VII, com a EC 26/2000; e 2) o segundo, sem previsão legal na Lei 8.009, cujo entendimento pauta-se pela impenhorabilidade do bem de família do fiador em locação comercial, em razão da não recepção da exceção prevista na Lei 8.009 pela EC 26/2000.

Cabe ressaltar que, ao contrário do Tema 295, revestido de repercussão geral da matéria (o que implica dizer que os tribunais de origem e as turmas recursais podem, desde então, aplicar a orientação firmada pelo Tema 295), o julgamento dos RE 1.278.427 e RE 605.709 não possui caráter vinculante em relação aos demais juízos e tribunais e, nesse sentido, pela natureza das decisões, não deveria ser admitido como um novo entendimento predominante.

Diante disso, ainda que as recentes decisões não disponham de caráter vinculante, há uma preocupação de que possamos estar diante de uma nova direção de entendimento, por parte do Supremo Tribunal Federal, no tocante à constitucionalidade do artigo 3º, VII, da Lei 8.009 e, especialmente, à impenhorabilidade do bem de família do fiador em locações comerciais.

Em última análise, a decisão mais recente do Supremo certamente gerará no mercado imobiliário insegurança jurídica e desconforto em transações envolvendo a locação de imóveis comerciais, tendo em vista que a fiança é a garantia amplamente adotada no mercado, especialmente pela inexistência de custo imediato para sua outorga.

 


[1] “É constitucional a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação, em virtude da compatibilidade da exceção prevista no art. 3º, VII, da Lei n. 8.009/1990 com o direito à moradia consagrado no art. 6º da Constituição Federal, com redação da EC 26/2000.”

[2] Lei 8.009/1990: Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

[3] Lei 8.009/1990: Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei.

[4] Constituição Federal (grifo dos autores): "Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

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