Opinião

Normas internas são ferramenta empresarial para enfrentar recusa à vacina

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2 de março de 2021, 21h19

Desde quando anunciados os primeiros planos de vacinação contra a Covid-19, seguidamente com a aprovação do uso emergencial de algumas vacinas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), começou grande debate jurídico sobre a obrigatoriedade ou não de as pessoas tomarem a vacina.

Em resumo, o debate coloca em cotejo direitos individuas contra direitos coletivos 
A discussão foi de tal tamanho que alcançou o Supremo Tribunal Federal, especificamente por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) nºs 6.586 e 6.587, ambas com julgamento concluído em dezembro do ano passado, em que restou adotado o entendimento de que é possível determinar a obrigatoriedade da vacinação, com adoção de medidas indiretas para conduzir a pessoa à vacinação, mas que é vedada a vacinação forçada, aqui no sentido de uso da força para coação [1].

Também não demorou muito e a discussão foi levada para o âmbito das relações empregatícias, passando a se discutir a possibilidade de demissão por justa causa do colaborador que se negar a tomar a vacina.

Parcela considerável dos especialistas adotou o posicionamento no sentido de ser possível a demissão por justa causa, desde que respeitados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, entre outros, pilares da construção decisória do empregador na hora da adoção de medidas punitivas em face do trabalhador, tentando alinhar a recomendação ao posicionamento do STF.

Até aí, tudo bem. De fato, parece ser essa a conclusão mais adequada para o debate. Entretanto, há ainda uma visão rasa sobre a questão, permissa vênia, sendo este artigo uma pequena tentativa de levantar um ponto ainda não tratado ou pouco tratado, sem o intuito de esgotar o debate, claro, que é o estabelecimento objetivo de um limite que precisa ser rompido pelo colaborador para então ser demitido por justa causa, o que certamente vai além da narrativa da observância da proporcionalidade e da razoabilidade.

Esse ponto merece atenção, exatamente porque nenhuma das hipóteses do artigo 482 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por si só (e aqui se frise), comporta cabimento direto contra a negativa de vacinação pelo colaborador.

Diante disso, a cultura preventiva que deve sempre nortear as decisões pertinentes à conflitos de interesses, faz com que se enxergue como necessária, para não dizer obrigatória, a previsão da possibilidade de demissão motivada por negativa à vacinação em norma interna empresarial com o prévio conhecimento do colaborador.

Inclusive, isso é corroborado com o recente trabalho do Ministério Público do Trabalho, que elaborou um guia, mesmo que interno, sobre medidas preventivas contra a Covid-19 [2], prevendo a possibilidade de demissão por justa causa do colaborador, como última ratio, após a adoção de medidas punitivas prévias e, antes de tudo, com a previsão da doença em instrumentos internos empresariais, como o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO) e o Programa de Prevenção de Riscos Ambientais (PPRA).

Importante dizer que não é por meio desses instrumentos internos que a empresa vai criar a previsão da possibilidade da demissão do colaborador. Até porque tais mecanismos não servem para esse fim.

No entanto, a ação adotada pelo Ministério Público do Trabalho demonstra a preocupação quanto ao tema, trazendo nas entrelinhas a reflexão sobre a necessidade de incorporação e enfrentamento interno da questão principal pela própria empresa, face a inexistência de qualquer previsão legal específica para a negativa de vacinação contra a Covid-19.

E é exatamente aí que reside a possibilidade de precaução e criação de um costume de boas práticas pelas empresas, com o estabelecimento de normas internas e com o trabalho de comunicação prévia ao colaborador.

A Justiça do Trabalho tem visto com bons olhos a criação de normas internas, conforme se denota da decisão do Tribunal Regional do Trabalho da 14ª Região, nos autos da Reclamação Trabalhista nº 0000985-40.2017.5.14.0007 [3]:

"Justa causa, improbidade, indisciplina e mau procedimento configuradas. Reversão improcedente. Em um contrato de trabalho existem deveres que, embora não estejam expressamente previstos, devem ser observados por ambas as partes da relação, tais como um modelo de conduta social que sempre respeite a confiança e os interesses depositados pela outra parte. Todavia, caracterizado ato de indisciplina incompatível com a conduta da atividade exercida, vindo o trabalhador a desconsiderar sua responsabilidade funcional, 'agindo de forma delibera em desconformidade com as instruções normativas, Código de Ética e Normas de Conduta', capazes de abalar irremediavelmente a fidúcia necessária à manutenção do vínculo empregatício, tem-se por correto o enquadramento da demissão por justa causa no artigo 482, a e b, da CLT" (Grifo do autor).

Apesar dos avanços com o decorrer do tempo, o Brasil ainda tem muito espaço para crescer quando o assunto diz respeito ao costume das empresas sobre a criação de políticas e procedimentos internos, mecanismos internos de comunicação entre os cargos de chefia e os colaboradores, e vice-versa, treinamentos com o objetivo de integração do corpo profissional aos códigos internos, entre outros.

Para fins de informação, segundo a pesquisa "Maturidade do Compliance no Brasil", elaborada pela KPMG no Brasil, referente ao ano de 2019, 29% dos executivos não revisam ou aprovam o programa de ética anualmente, enquanto que em 2017 essa negativa era de 45% [4].

Em que pese a melhora nos dados, significa dizer que ainda existem muitas empresas com a necessidade de aprovação/revisão das regras de ética e conduta, boas práticas, valores e procedimentos decorrentes de incompatibilidade de conduta que, obviamente, devem ter uma análise periódica firme.

Tal necessidade ganha contornos ainda mais importantes quando observada a nova realidade imposta pela pandemia da Covid-19, como por exemplo: a necessidade de implantação de práticas preventivas contra a Covid-19; a posição empresarial sobre a obrigatoriedade da vacinação; e, eventualmente, os parâmetros para um escalonamento proporcional e razoável das medidas punitivas até chegar numa rescisão motivada.

Com esses passos as empresas começarão a encontrar melhores contornos para a situação da demissão ou não do colaborador em caso de negativa à vacinação, face a inexistência de norma legal específica: criando mecanismos internos que visem a proteção individual e coletiva de seus colaboradores, bem como a do próprio business, observados os parâmetros constitucionais da dignidade da pessoa humana, proporcionalidade e razoabilidade, sem deixar de lado a sua obrigação quanto ao ambiente de trabalho seguro e saudável.

 

[1] 1) a vacinação compulsória não significa vacinação forçada, por exigir sempre o consentimento do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência; 2) tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes; 3) venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes; 4) respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; 5) atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, e 6) sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente; […].

[2] Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/02/08/mpt-diz-que-recusa-de-vacina-contra-covid-19-por-funcionrio-pode-gerar-justa-causa.ghtml. Acessado em 10/02/2021, às 11h13.

[3] TRT-14 – RO: 00009854020175140007 TO-AC 0000985-40.2017.5.14.0007, Relator: VANIA MARIA DA ROCHA ABENSUR, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: 11/06/2019.

[4] Disponível em: https://home.kpmg/br/pt/home/insights/2019/10/pesquisa-maturidade-compliance.html. Acessado em 10/02/2021, às 10h44.

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