Opinião

PNPSA altera com atraso o instituto da propriedade rural produtiva

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2 de março de 2021, 17h38

Foi promulgada recentemente a Lei nº 14.119/2021, que institui a Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais (PNPSA). Entre suas disposições finais, essa lei alterou parte da definição legal de propriedade rural produtiva.

Essa definição é central à reforma agrária, tal qual prevista no artigo 184 e seguintes da Constituição brasileira, posto que o artigo 185, II, imuniza a propriedade rural assim considerada da desapropriação-sanção, paga em parte mediante títulos de dívida agrária.

É o artigo 6º da Lei nº 8.629/1993 que regulamenta esse conceito constitucional, definindo dois índices mínimos de produtividade, que devem ser alcançados simultaneamente, sob pena de a propriedade ser considerada improdutiva.

Segundo o dispositivo, além de ser explorada econômica e racionalmente, a propriedade produtiva deve cumprir o grau de eficiência na exploração (GEE) e o grau de utilização da terra (GUT) [1] . Este último deve ser calculado pela relação entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel, devendo ser de no mínimo 80%. Isso significa que 80% da área aproveitável do imóvel deve ser efetivamente utilizada.

A área efetivamente utilizada é aquela plantada com produtos vegetais, de pastagens (desde que com um índice mínimo de lotação animal), de extrativismo vegetal ou florestal (desde que observados índices mínimos de rendimento e a legislação ambiental), de exploração de florestas nativas (com plano de exploração devidamente aprovado) e aquela em processo de formação ou recuperação de pastagens ou culturas permanentes, tecnicamente conduzida e devidamente documentada.

A área aproveitável total, por seu turno, é a área total do imóvel, excluídas as seguintes: aquelas ocupadas por construções ou instalações não produtivas; as imprestáveis a qualquer tipo de exploração agrícola, pecuária, florestal ou extrativa vegetal; as sob a efetiva exploração mineral; as de preservação permanente (APP) e demais áreas protegidas pela legislação ambiental (artigo 10, da Lei n° 8.629/1993).

Essa definição de área aproveitável significa que, por exclusão, há partes do imóvel que não precisam ser "efetivamente utilizadas", para os fins de fiscalização da produtividade do imóvel rural, ou seja, não precisam estar afetadas a algum tipo de atividade agrícola (agricultura, pecuária, extrativismo etc.). É compreensível, então, que não se exija a exploração de áreas com construções não produtivas, daquelas imprestáveis a essas explorações (por exemplo, um solo muito pedregoso ou de relevo irregular), aquelas com exploração mineral, as chamadas APPs do Código Florestal (artigo 4º, da Lei nº 12.651/2012) e demais áreas ambientalmente protegidas.

Apesar de não constar expressamente, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) considera que a reserva legal é área não aproveitável [2], havendo discussão jurisprudencial e doutrinária sobre a necessidade de as áreas de preservação e reserva legal terem sido averbadas na matrícula para serem consideradas como áreas não aproveitáveis [3], tema que vem sendo revisitado à luz da previsão de um cadastro ambiental rural (artigo 29 da Lei n° 12.651/2012), cuja inscrição, para alguns, seria suficiente para a oficialização da reserva legal na área [4].

A novel Lei de Pagamento por Serviços Ambientais incluiu uma nova hipótese de área não aproveitável: "As áreas com remanescentes de vegetação nativa efetivamente conservada não protegidas pela legislação ambiental e não submetidas a exploração nos termos do inciso IV do §3º do artigo 6º desta lei".

Com isso, o texto legal estabeleceu que também não é exigível a efetiva utilização (produtiva) das áreas remanescentes de vegetação nativa efetivamente conservada, desde que esta não seja protegida pela legislação ambiental (ou seja, o proprietário a mantém conservada por sua voluntariedade e não por uma obrigação legal) e que a área de floresta nativa não seja submetida a exploração planejada, permitida como efetiva utilização pela Lei nº 8.629/1993.

Essa alteração ameniza uma contradição existente entre o GUT (que exige efetiva exploração de 80% do imóvel rural) e a função social da propriedade rural, que, entre outros requisitos, preza pela preservação do meio ambiente e a utilização adequada dos recursos naturais (artigo 186, II, da Constituição).

Agora, a lei valoriza a vegetação nativa efetivamente conservada, reforçando a conservação ambiental também sob o aspecto econômico e jurídico, posto que tal conservação não implicará repercussão negativa na fiscalização da produtividade do imóvel rural.

Essa alteração, em tese, coaduna-se com os objetivos da nova Política de Pagamentos por Serviços Ambientais de estimular a conservação dos ecossistemas, dos recursos hídricos, do solo, da biodiversidade, do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado; e de evitar a perda de vegetação nativa, a fragmentação de habitats, a desertificação e outros processos de degradação dos ecossistemas nativos e fomentar a conservação sistêmica da paisagem (artigo 4º, II e IV, da Lei nº 14.119/2021).

Também há uma remodelagem parcial do conceito de propriedade produtiva, incluindo o pagamento por serviços ambientais na noção de produção agrária.

Todavia, a alteração na Lei nº 8.629/1993 mostra-se inócua na presente conjuntura, posto que são virtualmente inexistentes as fiscalizações de produtividade e a promoção da reforma agrária no país [5]. Esse incentivo à voluntária manutenção de vegetação nativa mostra-se pouco relevante, já que, mantida ou não a vegetação, não haverá qualquer fiscalização da produtividade do imóvel.

A alteração aqui comentada demonstra que a Política de Pagamento por Serviços Ambientais está relacionada à Política de Reforma Agrária, seja por seus benefícios sociais [6], seja pelo potencial de incentivo ao cumprimento da função socioambiental da propriedade.

As políticas de pagamentos por serviços ambientais não são novidade na América Latina [7], com destaque para o pioneirismo do Programa de Pagamento por Serviços Ambientais de Costa Rica, implantado em 1996 [8].

A relação conjunta entre essa política e a de reforma agrária também não é novidade, como se percebe pela legislação paraguaia, em que, no seu atual Estatuto Agrario (lei de 2002 daquele país), define o que se entende por um imóvel eficiente e racionalmente utilizado como aquele que tem um aproveitamento produtivo sustentável econômico e ambiental de pelo menos 30% de sua superfície agrológicamente útil.

Em sentido bastante semelhante à lei brasileira, aquela "superfície útil" é a área resultante do desconto dos solos não aptos ao uso produtivo, áreas de reserva florestal obrigatórias, áreas protegidas de domínio privado, outras formas de aproveitamento de florestas naturais e aquelas destinadas a serviços ambientais (artigo 5º). A lei paraguaia, já em 2002, era expressa quanto à exclusão de áreas com finalidades de preservação ambiental e assemelhadas do cálculo da área que deve ser aproveitada pelo proprietário, além de mencionar expressamente as áreas destinadas a serviços ambientais.

Em conclusão, a novidade legislativa ora comentada chega algumas décadas atrasada e, no ponto específico da modificação da noção de propriedade rural produtiva, mostra-se inócua ante a falta de complementariedade com uma política efetiva de reforma agrária.

 


[1] O GEE, por não ter sofrido alterações pela Lei n° 14.119/2021, não será comentado neste restrito espaço. Para maiores aprofundamentos, cf. BASSO, Joaquim. Propriedade rural produtiva: contexto, atualidade e perspectivas sob a ótica jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 162-84.

[2] Segundo o Manual de Obtenção de Terras e Perícia Judicial, aprovado pela Norma de Execução/INCRA/DT/nº 52/2006, entre as áreas protegidas pela legislação ambiental, está a reserva legal. Para maiores detalhes, v. BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra. Lei 8629/93 comentada por procuradores federais: uma contribuição da PFE/Incra para o fortalecimento da reforma agrária e do direito agrário autônomo. Brasília: INCRA, 2011. p. 113-23.

[3] NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de reforma agrária. 3. ed. rev. atl. Curitiba: Juruá, 2006. p. 141.

[4] O tema foi discutido no seguinte julgamento do Superior Tribunal de Justiça: STJ – REsp 1676467/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/03/2018, DJe 09/09/2020.

[5] Essa paralisação é objeto de Arguição de Descumprimento Preceito Fundamental n° 769, que tramita no Supremo Tribunal Federal, em que dados detalhados foram levantados, dando conta da paralisação de mais de 500 processos administrativos e judiciais sobre reforma agrária e o declínio vertiginoso no orçamento destinado a essa política.

[6] NUSDEO, Ana Maria de Oliveira. Pagamento por serviços ambientais: do debate de política ambiental à implementação jurídica. In: LAVRATTI, Paula; TEJEIRO, Guillermo [Orgs.]. Direito e mudanças climáticas: Pagamento por Serviços Ambientais, fundamentos e principais aspectos jurídicos. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2013. Direito e Mudanças Climáticas v. 6. p. 12; 24.

[7] Em estudo da FAO, são mencionadas iniciativas em países como Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai, Venezuela (nesse estudo apenas uma iniciativa do estado do Paraná é mencionada sobre o Brasil) (FIGUEROA, Eugenio B. et al. Pago por Servicios Ambientales en Áreas Protegidas en América Latina. Roma: FAO, 2009).

[8] PERALTA, Carlos E. O pagamento por serviços ambientais como instrumento para orientar a sustentabilidade ambiental: a experiência da Costa Rica. In: LAVRATTI, Paula; TEJEIRO, Guillermo [Orgs.]. Direito e mudanças climáticas: Pagamento por Serviços Ambientais: experiências locais e latino-americanas. São Paulo: Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2014. Direito e Mudanças Climáticas v. 7. p. 8-53.

Autores

  • é mestre em Direito Agroambiental pela UFMT, especialista em Direito Ambiental pela UCDB, bacharel em Agronomia e advogado no escritório Cestari & Basso Advocacia.

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