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Plínio Melgaré: O inconstitucional capitalismo de vigilância

1 de março de 2021, 20h36

Por Plínio Saraiva Melgaré

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A "sociedade da vigilância", em que se fragiliza a privacidade, é identificada pela possibilidade de cada um controlar o uso das informações que lhe dizem respeito [1]. Mas o capitalismo se adaptou a essa sociedade. E nela encontra matéria-prima: dados comportamentais. Há um excedente de dados coletados utilizados como "inteligência de máquinas, com os quais fabricam-se produtos preditivos, que preveem o que qualquer um fará agora, em breve ou mais adiante" [2]. Essa ação transgride a compreensão do ser humano como sujeito autônomo.

O ser humano é (re)conhecido a partir de uma série desordenada de dados analisados por algoritmos, que o inventariam, classificam e constituem representações virtuais de si mesmo. O sujeito autônomo se perde em um mar de informações parcelares e variáveis que o definem, convertendo-se em um objeto dataficado. A paisagem existencial humana desmaterializa-se diante de sua digitalização. Noções de tempo e espaço se dissipam.

Nesse universo, as redes de comunicação não são simples ferramentas. Mas modulam as aptidões físicas, sensoriais e cognitivas. As fronteiras são reconfiguradas, assim como os modos de relação entre humanos e máquinas [3]. E assim se desenvolve o "capitalismo de vigilância". Expressão de Shoshana Zuboff que identifica um fenômeno transformador da própria natureza humana. Uma estrutura digital operada em função dos interesses do capital e das grandes corporações que atuam — ou controlam? — o mercado da tecnologia.

Em uma de suas definições, o capitalismo de vigilância "reclama para si a experiência humana como matéria prima gratuita utilizável para uma série de práticas comerciais ocultas de extração, predição e vendas" [4]. E tal ocorre pela exploração dos dados. Destaca-se que a tecnologia, por si, não exige a "captura dos dados". Esta é feita para conferir lucratividade às corporações e desenvolver um modelo de negócio que, de modo parasitário, explora os aspectos existenciais da vida humana. O capitalismo de vigilância não é a tecnologia: mas um modelo negocial que se vale das possibilidades ofertadas pela tecnologia e pelo ambiente digital. As potencialidades ofertadas pela tecnologia são inegáveis. Mas o seu uso carrega riscos. Desde a possibilidade de ingresso no âmbito privado até o desenvolver de um poder comunicacional e econômico que impõe seus interesses. Nessa nova dimensão de práxis econômica, própria de um mundo digital e despersonalizado, o capitalismo de vigilância se utiliza da experiência vivida pelas pessoas, de seus sentimentos, comportamentos, como matéria-prima obtida gratuitamente para ser traduzida em dados comportamentais monetizados. Tudo se sabe sobre as pessoas. Configura-se uma abusiva relação de vigilância e poder. De acordo com Clarissa Long: "A história ensina-nos que, uma vez estabelecidos, os poderes governamentais de vigilância e recolha de dados sobre os seus cidadãos e residentes, é pouco provável que retrocedam voluntariamente. E a história também nos ensinou que, uma vez recolhidos os dados para um fim, é difícil de impedir a sua utilização para outros fins não relacionados" [5].

O ponto, pois, é a violação de diretos fundamentais e a supressão das liberdades pessoais diante da vigilância e da modulação comportamental. A concepção do modelo negocial ancora-se em um déficit de transparência funcional — uma espécie de opacity by design… O mercado digital é animado por uma "opacidade", não intrínseca à tecnologia, mas intencionalmente encorajada por empresas. É uma construção socioeconômica, predisposta à dominação e à modelação comportamental.

E a pessoa se transforma em um dado objetificado, modelado e comercializado. Um dos tantos problemas que surge é o fato de cada movimento pessoal estar sob o escrutínio e ser inventariado por corporações, cujo os procedimentos colocam-se alheios a qualquer regulação, esvaziando a promessa da democracia e do livre mercado. Distancia-se o sujeito da organização política. O poder, de fato, é exercido por uma lógica de modulação comportamental, gerida por algoritmos a serviço de um projeto mercantil, cuja finalidade é fabricar precisas previsões comportamentais.

A economia da vigilância avança também sobre a esfera pública. E, nesse estado de vigilância, rastreia-se a participação política, o que se fala, o que se propõe e ao que se resiste. Os sistemas algorítmicos definem os conteúdos políticos a serem vistos. Dominado por processos automatizados, o espaço democrático é comprometido. As tecnologias da informação, instrumentalizadas pelo capitalismo de vigilância, presentes no mercado digital, incidem sobre a formação da opinião pública e comprometem a liberdade de decisão necessária para constituir o espaço pragmático da cidadania. É a "esfera pública automatizada" [6]: operada por algoritmos, aparenta oferecer um livre espaço comunicacional. Contudo, os algoritmos é que estabelecem quantas e quais pessoas poderão acessar os conteúdos publicados. O fluxo informacional é ditado por algoritmos. Há um monitoramento e controle sobre a discussão pública.

Os imperativos do capitalismo de vigilância promovem um novo processo de colonialismo. Distinto do colonialismo tradicional, tem a vida humana colonizada por dados. Um colonialismo que converte os seres humanos e sua condição existencial em fluxos de dados inseridos em um processo de valor econômico. Há uma frontal ofensa à autodeterminação informativa, pois, o cidadão não sabe quem sabe sobre ele, assim como tampouco sabe o que, quando e em que ocasião se sabe dele [7]. Na prática do capitalismo de vigilância, em afronta aos direitos fundamentais, impossibilita-se ao titular dos dados o pleno exercício de sua autodeterminação informativa.

Há uma contrariedade entre a atual arquitetura socioeconômica dataficada e os vetores valorativos do Estado constitucional. A livre iniciativa, nos parâmetros constitucionais, deve expressar o que é socialmente valioso. E não apenas pavimentar uma forma de capitalismo. Qualquer atividade econômica há de se amoldar às exigências da dignidade humana. Faz-se necessário proteger a própria democracia dos riscos oriundos do capitalismo de vigilância. Por intermédio de algoritmos, desafia-se a estrutura do Estado e se corrói a soberania popular. Acaso se subverterá a clássica fórmula "todo o poder emana do povo" para "todo o poder emana dos algoritmos"?

Os problemas aportados pela prática do capitalismo de vigilância e suas consequências políticas convocam a compreensão segundo a qual a proteção de dados pessoais não é um mero direito titularizado por indivíduos. É um direito fundamental, ancorado no livre desenvolvimento da personalidade, que, diante das repercussões coletivas, exige a regulação do mercado que opera.

A lógica do capitalismo de vigilância deve ser compatível com as exigências da dignidade da pessoa humana. Ou que seja extinto, como ocorreu com outras atividades econômicas, v.g. o tráfico de escravos: experiência puramente econômica, organizada e custeada pelo mercado de seres humanos, com ações vendidas na bolsa. Era um bom investimento… o mercado apreciava!

 


[1] Sobre o tema, Stefano Rodotà A vida na sociedade da vigilância – a privacidade hoje. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[2] Shoshana Zuboff. La era del capitalismo de la vigilância – la lucha por un futuro humano frente a las nuevas fronteras del poder. Trad. Albino Santos. Paidós: 2020. Edição Kobo.

[3] Fátima Regis de Oliveira. Tecnologias informacionais de comunicação, espacialidade e ficção científica. Disponível em: v. 3, n. 2 (2005) (uerj.br) .

[4] Em livre tradução de Shoshana Zuboff. La era del capitalismo de la vigilância – la lucha por un futuro humano frente a las nuevas fronteras del poder. Trad. Albino Santos. Paidós: 2020. Edição Kobo.

[5] Em Law in the time of COVID-19. Katharina Pistor. Columbia Law School. 2020. Disponível em: https://scholarship.law.columbia.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1239&context=books .

[6] Frank Pasquale. A esfera pública automatizada. Trad. Marcelo Santos e Victor Varcelly. Disponível em: http://seer.casperlibero.edu.br/index.php/libero/article/view/866/832.

[7] Nesse sentido, ver Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal Alemán – Extractos de las sentencias más relevantes compiladas por Jürgen Schwabe. Trad. Marcela Anzola Gil e Emilio Maus Rat. México: Fundación Konrad Adenauer, 2009, p.94 e seguintes.