Opinião

O inconstitucional capitalismo de vigilância

Autor

  • Plínio Saraiva Melgaré

    é advogado professor da Escola de Direito da PUC-RS e da Fundação Escola Superior do Ministério Público e autor entre outros do livro "Direito Constitucional – organização do Estado brasileiro" (Almedina 2018).

1 de março de 2021, 20h36

A "sociedade da vigilância", em que se fragiliza a privacidade, é identificada pela possibilidade de cada um controlar o uso das informações que lhe dizem respeito [1]. Mas o capitalismo se adaptou a essa sociedade. E nela encontra matéria-prima: dados comportamentais. Há um excedente de dados coletados utilizados como "inteligência de máquinas, com os quais fabricam-se produtos preditivos, que preveem o que qualquer um fará agora, em breve ou mais adiante" [2]. Essa ação transgride a compreensão do ser humano como sujeito autônomo.

O ser humano é (re)conhecido a partir de uma série desordenada de dados analisados por algoritmos, que o inventariam, classificam e constituem representações virtuais de si mesmo. O sujeito autônomo se perde em um mar de informações parcelares e variáveis que o definem, convertendo-se em um objeto dataficado. A paisagem existencial humana desmaterializa-se diante de sua digitalização. Noções de tempo e espaço se dissipam.

Nesse universo, as redes de comunicação não são simples ferramentas. Mas modulam as aptidões físicas, sensoriais e cognitivas. As fronteiras são reconfiguradas, assim como os modos de relação entre humanos e máquinas [3]. E assim se desenvolve o "capitalismo de vigilância". Expressão de Shoshana Zuboff que identifica um fenômeno transformador da própria natureza humana. Uma estrutura digital operada em função dos interesses do capital e das grandes corporações que atuam — ou controlam? — o mercado da tecnologia.

Em uma de suas definições, o capitalismo de vigilância "reclama para si a experiência humana como matéria prima gratuita utilizável para uma série de práticas comerciais ocultas de extração, predição e vendas" [4]. E tal ocorre pela exploração dos dados. Destaca-se que a tecnologia, por si, não exige a "captura dos dados". Esta é feita para conferir lucratividade às corporações e desenvolver um modelo de negócio que, de modo parasitário, explora os aspectos existenciais da vida humana. O capitalismo de vigilância não é a tecnologia: mas um modelo negocial que se vale das possibilidades ofertadas pela tecnologia e pelo ambiente digital. As potencialidades ofertadas pela tecnologia são inegáveis. Mas o seu uso carrega riscos. Desde a possibilidade de ingresso no âmbito privado até o desenvolver de um poder comunicacional e econômico que impõe seus interesses. Nessa nova dimensão de práxis econômica, própria de um mundo digital e despersonalizado, o capitalismo de vigilância se utiliza da experiência vivida pelas pessoas, de seus sentimentos, comportamentos, como matéria-prima obtida gratuitamente para ser traduzida em dados comportamentais monetizados. Tudo se sabe sobre as pessoas. Configura-se uma abusiva relação de vigilância e poder. De acordo com Clarissa Long: "A história ensina-nos que, uma vez estabelecidos, os poderes governamentais de vigilância e recolha de dados sobre os seus cidadãos e residentes, é pouco provável que retrocedam voluntariamente. E a história também nos ensinou que, uma vez recolhidos os dados para um fim, é difícil de impedir a sua utilização para outros fins não relacionados" [5].

O ponto, pois, é a violação de diretos fundamentais e a supressão das liberdades pessoais diante da vigilância e da modulação comportamental. A concepção do modelo negocial ancora-se em um déficit de transparência funcional — uma espécie de opacity by design… O mercado digital é animado por uma "opacidade", não intrínseca à tecnologia, mas intencionalmente encorajada por empresas. É uma construção socioeconômica, predisposta à dominação e à modelação comportamental.

E a pessoa se transforma em um dado objetificado, modelado e comercializado. Um dos tantos problemas que surge é o fato de cada movimento pessoal estar sob o escrutínio e ser inventariado por corporações, cujo os procedimentos colocam-se alheios a qualquer regulação, esvaziando a promessa da democracia e do livre mercado. Distancia-se o sujeito da organização política. O poder, de fato, é exercido por uma lógica de modulação comportamental, gerida por algoritmos a serviço de um projeto mercantil, cuja finalidade é fabricar precisas previsões comportamentais.

A economia da vigilância avança também sobre a esfera pública. E, nesse estado de vigilância, rastreia-se a participação política, o que se fala, o que se propõe e ao que se resiste. Os sistemas algorítmicos definem os conteúdos políticos a serem vistos. Dominado por processos automatizados, o espaço democrático é comprometido. As tecnologias da informação, instrumentalizadas pelo capitalismo de vigilância, presentes no mercado digital, incidem sobre a formação da opinião pública e comprometem a liberdade de decisão necessária para constituir o espaço pragmático da cidadania. É a "esfera pública automatizada" [6]: operada por algoritmos, aparenta oferecer um livre espaço comunicacional. Contudo, os algoritmos é que estabelecem quantas e quais pessoas poderão acessar os conteúdos publicados. O fluxo informacional é ditado por algoritmos. Há um monitoramento e controle sobre a discussão pública.

Os imperativos do capitalismo de vigilância promovem um novo processo de colonialismo. Distinto do colonialismo tradicional, tem a vida humana colonizada por dados. Um colonialismo que converte os seres humanos e sua condição existencial em fluxos de dados inseridos em um processo de valor econômico. Há uma frontal ofensa à autodeterminação informativa, pois, o cidadão não sabe quem sabe sobre ele, assim como tampouco sabe o que, quando e em que ocasião se sabe dele [7]. Na prática do capitalismo de vigilância, em afronta aos direitos fundamentais, impossibilita-se ao titular dos dados o pleno exercício de sua autodeterminação informativa.

Há uma contrariedade entre a atual arquitetura socioeconômica dataficada e os vetores valorativos do Estado constitucional. A livre iniciativa, nos parâmetros constitucionais, deve expressar o que é socialmente valioso. E não apenas pavimentar uma forma de capitalismo. Qualquer atividade econômica há de se amoldar às exigências da dignidade humana. Faz-se necessário proteger a própria democracia dos riscos oriundos do capitalismo de vigilância. Por intermédio de algoritmos, desafia-se a estrutura do Estado e se corrói a soberania popular. Acaso se subverterá a clássica fórmula "todo o poder emana do povo" para "todo o poder emana dos algoritmos"?

Os problemas aportados pela prática do capitalismo de vigilância e suas consequências políticas convocam a compreensão segundo a qual a proteção de dados pessoais não é um mero direito titularizado por indivíduos. É um direito fundamental, ancorado no livre desenvolvimento da personalidade, que, diante das repercussões coletivas, exige a regulação do mercado que opera.

A lógica do capitalismo de vigilância deve ser compatível com as exigências da dignidade da pessoa humana. Ou que seja extinto, como ocorreu com outras atividades econômicas, v.g. o tráfico de escravos: experiência puramente econômica, organizada e custeada pelo mercado de seres humanos, com ações vendidas na bolsa. Era um bom investimento… o mercado apreciava!

 


[1] Sobre o tema, Stefano Rodotà A vida na sociedade da vigilância – a privacidade hoje. Trad. Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.

[2] Shoshana Zuboff. La era del capitalismo de la vigilância – la lucha por un futuro humano frente a las nuevas fronteras del poder. Trad. Albino Santos. Paidós: 2020. Edição Kobo.

[3] Fátima Regis de Oliveira. Tecnologias informacionais de comunicação, espacialidade e ficção científica. Disponível em: v. 3, n. 2 (2005) (uerj.br) .

[4] Em livre tradução de Shoshana Zuboff. La era del capitalismo de la vigilância – la lucha por un futuro humano frente a las nuevas fronteras del poder. Trad. Albino Santos. Paidós: 2020. Edição Kobo.

[5] Em Law in the time of COVID-19. Katharina Pistor. Columbia Law School. 2020. Disponível em: https://scholarship.law.columbia.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1239&context=books .

[6] Frank Pasquale. A esfera pública automatizada. Trad. Marcelo Santos e Victor Varcelly. Disponível em: http://seer.casperlibero.edu.br/index.php/libero/article/view/866/832.

[7] Nesse sentido, ver Jurisprudencia del Tribunal Constitucional Federal Alemán – Extractos de las sentencias más relevantes compiladas por Jürgen Schwabe. Trad. Marcela Anzola Gil e Emilio Maus Rat. México: Fundación Konrad Adenauer, 2009, p.94 e seguintes.

Autores

  • Brave

    é advogado, professor da Escola de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e da Faculdade de Direito da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, palestrante da Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, palestrante da Escola Superior da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul e mestre em Ciências Jurídico-Filosóficas pela Universidade de Coimbra.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!