Opinião

A terceira 'onda' do antitruste no Brasil: marolinha ou tsunami?

Autores

  • Amanda Athayde

    é professora doutora adjunta de Direito Empresarial de Concorrência Comércio Internacional e Compliance na Universidade de Brasília (UnB) consultora no Pinheiro Neto Advogados nas práticas de Concorrencial Compliance e Comércio Internacional doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) ex-subsecretária de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM) da Secretaria de Comércio Exterior (Secex) do Ministério da Economia ex-chefe de Gabinete do Ofício do MPF junto ao Cade e do Gabinete da Superintendência-Geral do Cade coordenadora do Programa de Leniência Antitruste ex-analista de Comércio Exterior do Ministério de Desenvolvimento Indústria e Comércio (MDIC) cofundadora da rede Women in Antitrust (WIA) e idealizadora e entrevistadora do podcast Direito Empresarial Café com Leite.

  • Patrícia Jacobs

    é especialista em análise antitruste da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) mestranda em Políticas Públicas e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV MBA em Gestão Estratégica de Projetos e Project Management Professional (PMP).

1 de março de 2021, 6h05

Em 2017, Athayde publicou artigo intitulado "As três ondas do antitruste no Brasil" [1], em que argumentou que a terceira "onda" do antitruste, ainda a ser iniciada, deveria ser caracterizada por maior ênfase em investigações e julgamentos de condutas unilaterais. Isso seria possível graças ao desenvolvimento do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência que, estruturado pela Lei 12.529/ 2011, consolidou o método de análise prévia dos atos de concentração (primeira "onda") . Mais do que isso, o novo arcabouço legal permitiu que o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) se debruçasse também sobre os estoques de processos relacionados, sobretudo a cartéis em licitação, estabelecendo precedentes de condenação e arquivamento de casos envolvendo cartéis nacionais e internacionais (segunda "onda"). Assim, advogados, acadêmicos, empresas e o próprio Cade poderiam voltar suas atenções àquelas investigações mais dispendiosas de tempo de análise, que devem ser estudadas pelos efeitos, compreendidas sob a regra da razão, que são as condutas unilaterais.

Mais tarde, em 2019, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em seu relatório "OECD Peer Reviews of Competition Law and Policy: Brazil, 2019" [2], parece ter corroborado esse diagnóstico da autora. O órgão multilateral observou que "as atividades do Cade contra abuso de posição dominante têm sido escassas". A OCDE encontrou explicações para isso na ênfase dada pelo Cade, nos anos que se seguiram à nova Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/ 2011), à implementação do novo sistema de controle de concentração de análise ex-ante (similarmente ao argumentado por Athayde, como uma primeira "onda" do antitruste no Brasil). Em um segundo momento, a OCDE apontou que a partir de 2014 o Cade teria passado a dar atenção ao programa de combate a carteis (o que Athayde chamou de segunda "onda"). Logo depois, os casos resultantes da "lava jato" apresentaram grande demanda pela aplicação do mecanismo dos acordos de leniência. Em pouco tempo, a autarquia teve de se adaptar à legislação e a novas demandas, oferecendo resultados bem avaliados dentro e fora do Brasil.

No relatório, a OCDE observa, porém, que "o exercício abusivo de posição dominante não tem sido uma prioridade na apuração de condutas por parte do Cade desde a entrada em vigor da nova Lei de Defesa da Concorrência" (Lei 12.529/ 2011) [3]. O documento avaliativo da OCDE também entende que a quantidade de casos de conduta unilateral resolvida por meio de acordos é muito grande, o que leva à interrupção de investigações e a uma escassez de precedentes julgados sobre as infrações, prejudicando o estabelecimento de limites claros para a atuação das empresas em seus mercados. Tais fatores que se retroalimentam, combinados, atrasam a maturidade da instituição na avaliação desses casos, desestimulando ainda que agentes econômicos tragam denúncias à autoridade antitruste nacional.

A OCDE também observou que, diferentemente das práticas internacionais em outras jurisdições, grande parte dos termos de compromisso de cessação (TCCs) nesses casos de condutas unilaterais é firmada no âmbito do Cade tardiamente, já no último estágio do processo administrativo, quando o caso está em fase de análise no tribunal. Nesse estágio, esforços já foram empreendidos pela administração pública, desperdiçando, assim, o potencial de eficiência que um TCC pode representar ao poupar recursos e tempo empenhados na análise do caso específico. Afirma a OCDE, ainda, que se formam "poucos precedentes para servir de diretriz à comunidade empresarial nessa complexa área do direito" [4], recomendando ao Cade "aumentar o número de investigações envolvendo potencial abuso de posição dominante" [5]. Ao sinalizar para possíveis remédios para esse problema, a OCDE observou que, diferentemente do que acontece nas demais áreas de atuação do Cade, falta no Brasil uma equipe dedicada a casos de abuso de posição dominante.

Ciente da necessidade de pesquisas acadêmicas sobre a prática empírica do Cade no âmbito das condutas unilaterais, a pesquisa de Jacobs vem suprir essa lacuna [6] ao realizar levantamento de dados, exaustivo e inédito, sobre a prática do Cade com relação a acordos em casos de conduta unilateral entre 2012 e 2019. A autora, em pesquisa de fôlego, concluída em novembro de 2020, acaba por lançar nova e inexplorada luz sobre as observações feitas pela OCDE.

A autora inicialmente mapeou a existência de 318 investigações referentes a condutas unilaterais concluídas pelo Cade entre 2012 e 2019. Desse total, 180 processos foram arquivados na superintendência-geral (57%). As demais investigações, que totalizam 138, tiveram seu desfecho decidido pelo Tribunal do Cade: 17 foram objeto de condenações (12%), 45 foram arquivadas (33%) e 76 foram suspensas por homologação de TCCs (55%).

Em seguida, Jacobs calculou precisamente o prazo dispendido pelo órgão entre a abertura de um caso e a assinatura do respectivo TCC. Por meio desse dado, a autora buscou avaliar a eficiência da política de acordos do Cade e, assim, verificar se, como afirmou a OCDE, a celebração tardia de TCCs comprometeria a economicidade e a celeridade processual, reduzindo as vantagens oferecidas por acordos administrativos, segundo referências teóricas existentes sobre esses instrumentos.

Os dados consolidados por Jacobs apontam que o Cade leva, em média, 4,9 anos entre instaurar um processo e a assinatura de TCC em casos de conduta unilateral (76 investigações entre 2012 e 2019). Por outro lado, o prazo decorrido entre a abertura do procedimento administrativo (procedimento preparatório, inquérito administrativo ou processo administrativo) e a decisão da corte administrativa pela condenação foi sensivelmente maior: 7,3 anos para julgar casos de conduta unilateral. Ou seja, os poucos processos que levam a condenações em casos de conduta unilateral (17 entre 2012 e 2019) têm tramitação 50% mais longa que aqueles em que há acordo entre a instituição e agentes econômicos.

Jacobs também consolidou informações sobre o destino dessas 17 condenações do Cade em casos de conduta unilateral, e constatou que apenas em dois deles não houve recurso judicial. Ou seja, a inexistência de questionamento judicial é a exceção, já que a regra é o recurso: em 88% dos casos (15 processos administrativos) a Justiça foi acionada por agentes econômicos inconformados com a condenação pelo órgão.

Das 15 decisões condenatórias de condutas unilaterais do Tribunal do Cade em que houve recurso judicial, somente duas haviam transitado em julgado até a conclusão da pesquisa. Com os marcadores de tempo utilizados, Jacobs constatou que, se levada em conta a revisão das decisões do Cade no Poder Judiciário, os processos de conduta unilateral duram em média 11,3 anos. E esse prazo tende a ser mais longo, já que na maioria dos casos (13 entre 15 dos processos judicializados) ainda não havia sido proferida uma sentença final da Justiça.

Assim, Jacobs conclui, em seu estudo, que a "ampla vantagem da eficiência dos acordos, em vez de estar apoiada nas virtudes administrativas do Cade, infelizmente, só pode ser vista sob um ponto de vista relativo. Isso porque, dos dados sobre prazos e resultados de processos de conduta unilateral em que não se registra celebração de TCC, emergem informações que demonstram que a duração dos casos é muito superior à daqueles em que há acordos".

Outra realidade identificada pela autora tem impacto indesejado nas decisões do Cade: dos dois casos em que já houve sentença final do Judiciário, em apenas um a decisão do Cade foi confirmada. Isso demonstra, segundo a autora, que não há qualquer previsibilidade de que a tão desejada jurisprudência a ser formada em condenações a agentes econômicos será, ao final e ao cabo, formada, como sugere a OCDE. Assim, Jacobs pondera, com base também no que argumentam diversos outros estudiosos, que a falta de traquejo do Judiciário brasileiro em lidar com casos complexos e especializados derivados do Direito da Concorrência leva a distorções de prazo, eficiência e, também, eficácia da administração pública. Ainda que não seja esse um cenário ideal, afirma Jacobs, "os acordos administrativos são muito menos morosos que os casos judicializados e ainda permitem, pela via consensual, a cessação da possível infração anticoncorrencial. Mais que isso, por todos os prismas, os acordos e seus resultados são menos imprevisíveis que os que advêm dos litígios no Judiciário".

Diante desse sui generis contexto brasileiro, Athayde e Jacobs convergem em suas percepções sobre a necessidade de se aprofundar o enfoque do antitruste brasileiro em condutas unilaterais, de forma a se confirmar como uma terceira "onda" para o Direito da Concorrência no país. A forma exata dessa implementação, porém, ainda merece maior esforço da autoridade brasileira. A inércia é que não pode prevalecer.

Jacobs sugere, diferentemente do que aponta a OCDE, que o Cade dê ainda maior ênfase à sua política de acordos em casos de abuso de posição dominante. E elenca iniciativas que podem aperfeiçoar a resposta institucional e, assim, tornar mais efetivas, eficientes e eficazes as decisões do Cade. Entre as medidas citadas estão: a busca por acordos ainda na fase de investigação na superintendência-geral e a especialização do corpo técnico do órgão, que hoje se divide entre análises de atos de concentração e a apuração de infrações à ordem econômica. Assim, profissionais dedicados a casos de condutas anticompetitivas unilaterais também seriam capazes de monitorar os desdobramentos dos TCCs. Com iniciativas como essas, o Cade poderia ter à sua disposição formas mais eficientes para fazer cessar uma conduta potencialmente danosa ao mercado e sinalizar às empresas quais práticas são consideradas toleráveis em um ambiente econômico saudável.

Athayde, por sua vez, entende ser imprescindível a formação de jurisprudência sobre condutas unilaterais no Brasil. Ainda que haja posterior debate judicial, com eventual reversão da decisão, a autora reconhece que toda essa discussão, na seara administrativa e no Judiciário, servirá para a função mais ampla de difusão do Direito da Concorrência no Brasil. Caso haja uma anulação da decisão do Cade, a autoridade antitruste poderá reconhecer tal fato como parte natural da sua evolução institucional e, nos próximos casos, avaliar o que na argumentação deve ser aprimorado ou revisto, a fim de que nova anulação não aconteça. Caso haja a confirmação da decisão judicial, o posicionamento da autoridade antitruste ficará ainda mais forte, de modo que o precedente servirá como elemento de sinalização do mercado.

Ainda que a formação de jurisprudência seja evidentemente muito lenta (já que em apenas um caso a condenação pelo Tribunal do Cade foi confirmada pelo Judiciário no período de oito anos analisado por Jacobs), Athayde entende que é preciso reforçar o arranjo institucional que prevê recursos judiciais e os debates competentes nesse fórum, inclusive com possibilidade de eventual reversão da decisão da autarquia. Tanto a confirmação das decisões do Cade como as críticas e reformas que advierem do Judiciário são parte natural da evolução institucional do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Com essa experiência consolidada, o que se espera, desde a doutrina que lança as bases para a organização do Estado moderno, é que a autoridade antitruste aprimore e reveja seus próprios processos internos, inclusive os decisórios, para que possa travar os debates judiciais que se seguirem de forma mais madura, eficiente e eficaz. Esse arranjo institucional forte, que envolve a legislação vigente e sua interpretação tanto no Executivo quanto no Judiciário, é que poderá fornecer a sinalização ao mercado dos limites toleráveis à competição, conforme os ditames constitucionais que determinam o fomento de um ambiente econômico saudável. Aprendendo com acertos e erros, o Cade poderá ampliar sua autoridade ao lidar com condutas unilaterais, e, assim, consolidar o que Athayde chamou de terceira "onda" do sistema antitruste nacional.

Qualquer que venha a ser a posição a respeito dos próximos passos, Jacobs e Athayde convergem então que os dados sobre a realidade de como o Cade lida atualmente com casos de abuso de posição dominante, como os levantados por Jacobs, devem servir, então, para orientar a prática institucional e para ajudar a sopesar as vantagens de acordos vis a vis a necessária formação de jurisprudência do tribunal administrativo, tendo em vista ainda a possível revisão pelo Judiciário, sempre, como reza a lei, com a defesa do interesse público como princípio condutor de toda a atuação.

Ambas as autoras sugerem, assim, que o Cade se valha das análises disponíveis no trabalho de Jacobs para trilhar caminhos que levem o órgão a explorar plenamente o potencial oferecido pela legislação de 2011 na análise de condutas anticoncorrenciais unilaterais. Desse modo, a autoridade antitruste pode deflagrar a terceira "onda" do antitruste no Brasil, como identificado por Athayde, transformando-a em um tsunami — e evitando que se torne apenas uma marolinha.

 


[2] OCDE. OECD Peer Reviews of Competition Law and Policy: Brazil, 2019. Disponível em: www.oecd.org/daf/competition/oecd-peer-reviews-of-competition-law-and-policy-brazil-2019.htm.

[3] OCDE, 2019, op. cit., p. 186.

[4] OCDE, 2019, op. cit., p. 179.

[5] OCDE, 2019, op. cit., p. 186.

[6] JACOBS, Patrícia. Análise da eficiência do Cade na celebração de Termos de Compromisso de Cessação em Condutas Unilaterais entre 2012 e 2019. Trabalho apresentado ao curso de Pós-Graduação em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, lato sensu, da Fundação Getúlio Vargas como requisito parcial para a obtenção do Grau de Especialista.

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  • Brave

    é professora de Direito Empresarial na Universidade de Brasília (UnB) e de Direito Econômico e da Concorrência no Instituto de Direito Público Brasiliense (IDP) e subsecretária de Defesa Comercial e Interesse Público da Secretaria de Comércio Exterior do Ministério da Economia. Doutora em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em Administração de Empresas com habilitação em Comércio Exterior pelo Centro Universitário UNA.

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    é especialista em análise antitruste da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), mestranda em Políticas Públicas e Governo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico pela FGV, MBA em Gestão Estratégica de Projetos e Project Management Professional (PMP).

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