Opinião

No princípio era o verbo…

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31 de maio de 2021, 13h11

Há poucas semanas, e em meio à pandemia, a Corte Suprema de Justiça da Argentina (CSJ) decidiu sobre uma matéria trazida à sua competência que é claramente "política em sentido estrito" e, com isso, assumiu uma função política de cogovernabilidade [1] com o Poder Executivo e o Legislativo. Consequentemente, argumenta o professor doutor, titular de Direito Constitucional da Universidade de Buenos Aires (UBA), Raúl Gustavo Ferreyra que ela com isso também acabou assumindo a responsabilidade pela proteção, agora e no futuro, da saúde de todos os argentinos. Essa decisão da CSJ, em sentido relevante, leva para acervo da memória de toda a sua jurisprudência anterior a decisão a respeito de questões políticas extrajudiciais, para assumir essa responsabilidade plena.

A Constituição histórica, norma processual muito singular, definiu em 1853 os três poderes federais básicos da República: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. A partir da última mudança constituinte, produzida em 1994, foi acrescentado o Ministério Público, junto com outros órgãos que complementam a tríade original.

Todos os poderes constituídos e exercidos pelos órgãos do Estado nascem e devem ser exercidos a partir das competências constitucionais. As atribuições a cada um deles foram razoavelmente atribuídas e no seu exercício racional a área reservada deve ser respeitada com nitidez e exclusividade. Essa distinção, aliás, no "plano horizontal", abrange a distribuição de funções entre o Poder Executivo, o Congresso, o Poder Judiciário e o Ministério Público, o fundamento da casa republicana. E em um "plano vertical" a distinção dos poderes resulta entre as atribuições do Estado federal e os poderes de cada uma das 23 províncias e da Cidade Autônoma de Buenos Aires, que constituem o pacto da Argentina. No exercício regular dos poderes, não deve haver uma concorrência das competências nem o abuso de atribuições individualizadas, uma vez que o equilíbrio e o diálogo devem ser os marcos orientadores decididos pela Constituição Federal (CF).

Desde a fundação do Estado constitucional, a Corte Suprema de Justiça (CSJ) cumpriu, cumpre e deverá cumprir sua incessante tarefa voltada à efetivação da Constituição Federal. A CSJ é, ao mesmo tempo, tribunal e poder: um tribunal que cumpre uma função de poder; um poder que funciona como um tribunal [2]. Uma "Corte Suprema de Justiça" que no campo de suas atribuições só deveria compreender "determinados objetos de interesse de todo o Estado" [3] e no estrito âmbito da sua competência, segundo foi propiciado por Juan Bautista Alberdi, o arquiteto da constitucionalidade argentina, na primavera de 1852. A Corte Suprema é um tribunal cuja função definidora é jurisdicional, entendida como a aquela forma de realização do Direito que representa o máximo grau de irrevogabilidade decisória admitido em cada ordem jurídica.

A CSJ profere milhares de sentenças todos os anos. Às vezes, algumas dessas decisões adquirem propriedades relevantes e com identidade solvente, que deveriam servir para melhorar, e não piorar, a alma e a vida dos argentinos. Algumas semanas atrás, a CSJ emitiu uma dessas sentenças. Foi o que aconteceu no caso interposto pelo chefe do governo da cidade de Buenos Aires contra a decisão do presidente da República de suspender temporariamente a presença dos alunos nas aulas em todos os níveis de ensino, no âmbito da AMB [4]. ("governo da cidade de Buenos Aires vs Estado nacional (Poder Executivo Nacional) sem ação declaratória de inconstitucionalidade"[5]. A Amba é um território de cerca de 15 mil quilômetros quadrados, com uma densidade populacional de mais de mil pessoas por quilômetro quadrado. A densidade populacional da Argentina é inferior a 20 habitantes por quilômetro quadrado.

A Corte Suprema de Justiça produziu uma sentença de 91 páginas. Apenas quatro de seus cinco juízes enfrentaram o mérito da questão, já que o quinto juiz não participou da sessão de julgamento por motivos processuais [6]. Todavia, dois juízes pronunciaram lançaram seus votos com argumentos de base e os outros dois acompanharam com seus votos fundamentados individualmente [7]. O fato de os magistrados não terem esgotado todos os esforços para proporcionar fundamentos unificados à cidadania impede que se desenrede os "fundamentos" da sentença, no entendimento de que "dois" jamais poderia ser aritmeticamente a maioria absoluta dentro de "cinco" membros do tribunal, composição estabelecida por lei. Há uma sentença, em caso abstrato, sem maioria absoluta de fundamentação entre todos os juízes da corte, que deve ser cumprida [8].

A Corte Suprema de Justiça decidiu que o que foi deliberado pelo presidente da República quanto à presença de turmas em todos os níveis e em todas as suas modalidades, de 19 a 30/4/2021, no âmbito da cidade é incompatível, isto é, que não há "justificativa suficiente" com a Constituição Federal. Implicação direta da decisão: a Corte Suprema de Justiça assume a corresponsabilidade pelo risco da epidemia e pelos cuidados de saúde.

Uma doutrina jurídica muito autorizada no século 20 distinguia entre conflitos jurídicos e "conflitos políticos em sentido estrito". Nos primeiros, as partes fundamentam suas teses no Direito constitucional escrito; nos segundos, ao menos uma das partes embasa sua posição não no direito positivo, mas em outros princípios, ou em nenhum princípio. Cólofon: a Corte Suprema de Justiça não deveria ser o árbitro das "disputas políticas em sentido estrito", muito menos quando a própria atividade dos atores políticos não pode oferecer uma solução.

No entanto, a CSJ decidiu conhecer e pronunciar-se sobre uma matéria que é claramente "política em sentido estrito" e assumir uma função política de cogovernanabilidade com os Poderes Executivo e Legislativo. Consequentemente, também assume a responsabilidade pela proteção, agora e no futuro, da saúde de todos os argentinos. Essa decisão da CSJ, em sentido relevante, leva para o acervo jurisprudencial a respeito de questões políticas não processáveis, para assumir essa responsabilidade plena, gerando uma indagação: o tribunal seria mais "Supremo" do que "Corte"?

A CSJ deixou de lado o critério imaculado sobre questões políticas não sujeitas à análise judicial e não reconheceu a preeminência do Estado federal e seu conhecido e consabido direito e produzido em uma emergência sanitária como esta, o que não somente tem efeitos sobre a cidade de Buenos Aires, mas também em qualquer outro caso futuro com respeito a qualquer província argentina.

Os quatro juízes da Corte Suprema de Justiça apenas coincidiram sobre um parágrafo, na parte dispositiva da decisão: "Por esta razão, e ouvido o senhor Procurador-Geral interino da Nação, é cabida a demanda com relação à alegação de que, no caso concreto, a autonomia da cidade autônoma de Buenos Aires foi violada". Uma oração com menos de 40 palavras em uma sentença de 91 páginas! O campo semântico, com outro enunciado: o presidente da República violou o Direito federal da Argentina.

A Corte Suprema de Justiça declara inconstitucionalidades desde o século 19. Sobram dedos das mãos para contar as decisões pronunciadas a cada ano. Dito julgamento, quando ocorre, supõe a existência de norma inferior à Constituição Federal que com ela conflita, direta ou indiretamente. A existência da incompatibilidade deve ser manifesta, facilmente verificável em todo contexto. A incongruência, portanto, unicamente só pode ser vislumbrada no marco do escalonamento hierárquico da ordem jurídica: a norma inferior contradiz abertamente com a norma superior. Sem evidência clara e indubitável, não deveria haver inconstitucionalidade.

A linguagem que se utiliza no Direito, a linguagem da dogmática, seja dos doutrinadores ou judicial, é uma linguagem cujos elementos possuem significados ou que lhes podem ser atribuídos. Assim, as normas jurídicas, as normas da Constituição, possuem também tal afiliação, são acatadas e cumpridas ou violadas. Não existe uma terceira via.

A Corte Suprema de Justiça nunca antes utilizou, na linguagem das suas sentenças, o verbo "violar", na adjudicação de um poder presidencial. Ao examinar o âmbito da "concordância" de quatro dos juízes, a conjugação desse verbo é o ponto de consenso. Trata-se de uma novidade linguística, cumulativa à sua obra. Note-se, a propósito, que o mais alto tribunal de Justiça empregou como norma jurisprudencial, em sua história, os termos: inconstitucionalidade, inaplicabilidade, incongruência, desarrazoado, insustentável ou arbitrário. Quais os motivos apontados pela CSJ para provocar essa novidade em seu vocabulário jurídico?

Em meio à pandemia, os poderes políticos federais, tanto no âmbito do Executivo quanto no âmbito do Legislativo, são os que têm maior aptidões para discernir sobre os cuidados com a saúde e o bem-estar geral. Declarar que uma política pública dos poderes políticos republicanos "viola" o Direito federal não parece perfilar-se no interesse da paz, uma vez que as opiniões subjetivas são emitidas em lugar da norma estabelecida pela "autoridade competente". A garantia da paz comunitária que deve ser assegurada à cidadania só pode repousar na existência de uma ordem constitucional que minimize os confrontos e favoreça as transações entre ideias contraditórias.

A emergência provocada pelo vírus não pode produzir poderes diferentes ou extraordinários fora da Constituição política do Estado. O direito à educação, um direito social eminente, é um elemento básico que deve ser objeto de realização, até o nível máximo de suas possibilidades, para garantir o desenvolvimento da cidadania e da comunidade.

A decisão presidencial de restringir a presença de aulas, apoiada em fontes científicas, foi tomada no âmbito da sua discricionariedade prevista pela Constituição. Inclusive afirmada pelo Senado da República. Apesar disso, sua judicialização declarada, e impugnação como violação da ordem federal, mostraria a uma autoridade que sugeriria, talvez, o fato de se pensar em uma competência sujeita à complementação do versículo utilizado no início: "…E o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus" (Evangelho segundo João, 1).

* Tradução por Ben-Hur Rava, professor de Direito e advogado em Porto Alegre.

 


[1] Nota do Tradutor (NT) – No mês de abril, ante o aumento exponencial dos casos de Covid-19, o presidente argentino Alberto Fernández decretou, entre outras medidas, a suspensão das aulas presenciais por 15 dias e ordenou o retorno ao ensino remoto na capital argentina e em sua periferia, para reduzir a circulação de pessoas na região metropolitana de Buenos Aires (Decreto de Necessidade e Urgência – DNU 241/2021). O prefeito opositor Horacio Larreta, que defende a manutenção das aulas presenciais nos níveis de pré-escola e ensino básico, e uma modalidade mista no ensino fundamental, referente à Capital e periferia, que pertence à província de Buenos Aires, com base no art. 322 do Código Processual Civil e Comercial da Nação, apresentou uma ação declaratória contra o Governo Federal, a fim de obter a declaração de inconstitucionalidade do art. 2º, do referido Decreto. Em resumo, os argumentos do governo portenho são no sentido de que o Decreto baixado pelo Governo Federal causou uma lesão ao regime de autonomia da cidade de Buenos Aires, o que não é razoável e, ainda, foi editado em violação ao artigo 99, inciso 3, da Constituição Nacional Argentina que trata das limitações do Poder Executivo Federal em "emitir disposições de caráter legislativo", ressalvados os casos expressos, "sob pena de nulidade absoluta e insanável". Ademais, o referido Decreto seria inconstitucional porque o Congresso da Nação não se encontrava em recesso, não estava impedido de tratar da questão de forma imediata e urgente e, muito menos, existiriam circunstâncias excepcionais que tornassem impossíveis os trâmites legislativos ordinários previstos na Constituição Nacional para a sanção das leis. Assim, o caso foi submetido à Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina que, com o voto de quatro dos cinco juízes (um não participou do julgamento por motivos processuais), acatou a tese de retorno presencial às aulas apresentada pela prefeitura de Buenos Aires e considerou que o Decreto do presidente Fernández violava a autonomia da Capital Federal. O artigo analisa como uma decisão judicial pela mais Alta Corte de Justiça argentina interfere na decisão política e no princípio federativo.

[2] Bidart Campos, Germán, La Corte Suprema. El Tribunal de las Garantías constitucionales, Buenos Aires, Allende y Brea, 1982, pp. 15-20.

[3] Alberdi, Juan B., Bases y puntos de partida para la organización política de la República Arjentina, derivados de la lei que preside al desarrollo de la civilización en América del Sud y del Tratado Litoral del 4 de enero de 1831, Valparaíso, Chile, Imprenta del Mercurio, Santos Tornero y Cía., 2ª ed., corrigida, aumentada de muitos parágrafos e um projeto de Constituição, concebidos segundo as bases propostas pelo autor, p. 256.

[4] NT – A sigla Amba significa Área Metropolitana de Buenos Aires e é a zona urbana comum que conforma la cidade autônoma de Buenos Aires (Caba) e os 40 municípios da Província de Buenos Aires. Trata-se de uma megacidade que se estende de Campana a La Plata, com limite físico no Rio de la Plata e imaginário na Rota Provincial 6, e cobre uma área de 13.285 km2. Segundo o censo de 2010, possui 14.800.000 habitantes, o que representa 37% dos habitantes da Argentina. Como uma megalópole, ela está em constante crescimento, então seus limites são cada vez mais confusos de uma perspectiva territorial.

[5] NT – "AÇÃO MERAMENTE DECLARATÓRIA – Artigo 322. – Poderá deduzir-se a ação que tenda a obter uma uma sentença meramente declaratória, para fazer cessar um estado de incerteza sobre a existência, alcance ou modalidades de uma relação jurídica, sempre que essa falta de certeza possa produzir um prejuízo ou lesão atual ao autor e este não disponha de outro meio legal para cessar-lhe imediatamente."

[6] NT – "A CSJN, na atualidade, sendo composta por cinco juízes, gera este fato único: "três votos", a maioria absoluta, são suficientes para consolidar uma resolução final de cada caso ou controvérsia que se sustente em juízo. Note-se, ainda, que poderia ser "uma única estrutura argumentativa apoiada por um único juiz", pois bastaria que mais dois juízes aderissem a essa estrutura e, assim, obtivessem uma resolução sobre o mérito da causa constitucional na sala plenária do tribunal. Agora, certamente, o sucesso ou fracasso da decisão final não deve estar atrelado ao número de membros, pois, talvez, três juízes seriam suficientes para elaborar a solução da ação." (Raúl Gustavo Ferreyra. Corte Suprema de Justiça. Dictamen. Propuestas y Recomendaciones. Fundamentos. Consejo Cosultivo para el Fortalecimiento del Poder Judicial y del Ministerio Público creado por Decreto 635 del 29/7/2020 del presidente de la Argentina, Alberto Fernández. p. 14).

[7] NT – Os acórdãos da Corte Suprema de Justiça, desde outubro de 1863, têm "fundamento" e "resolução". Para que haja uma "resolução", basta que a maioria absoluta dos juízes "coincida com a resolução" do caso. Neste caso "Governo da Cidade de Buenos Aires" houve quatro juízes que conheceram do mérito da causa. O quinto juiz não participou por motivos processuais. Os juízes Maqueda e Rosatti lancaram as "bases" da decisão e os juízes Lorenzetti e Rosenkratz escreveram, cada um, seus votos com seus argumentos individuais. Logo, os juízes fizeram três blocos de fundamentos, mas como são cinco juízes no total e apenas dois compartilharam dos mesmos "fundamentos", tratou-se de uma decisão que teve maioria para a "resolução" do caso, carecendo de uma maioria para emitir "fundamento". Assim, os quatro juízes concordaram apenas com a "resolução" nos seguintes termos, verbis: "Por isso, e ouvido o Procurador Geral interino da Nação, tem lugar a reclamação a respeito da alegação de que no caso específico foi violada a autonomia da Cidade Autônoma de Buenos Aires. Com fixação de custas (art. 1º do Decreto 1204/2001). Notifique-se, comunique esta decisão à Procuradoria-Geral da República e, oportunamente, arquive-se ".

[8] NT – Em apertada síntese, os argumentos conclusivos da sentença em favor do Governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, podem ser assim elencados: 1. Existem precedentes claros da Corte Suprema de Justiça que afirmam a autonomia da Cidade Autônoma de Buenos Aires (CABA). O poder das Províncias é originário, o que significa uma interpretação favorável à competência autônoma e restritiva de suas limitações. As autonomias provinciais não significam independência, mas são competências exercidas no âmbito de um sistema federal, que admite competências concorrentes do Estado Nacional, necessárias à organização de um país; 2. O Governo Federal estabelece as bases gerais e deve respeitar as decisões locais; 3. A CABA e as províncias podem regular a abertura de escolas de acordo com o que preceitua a Lei nº 26.206 e a Resolução nº 387/21 do Conselho Federal de Educação, priorizando a abertura e retomada das aulas presenciais. 4. O Governo Federal só pode regular o exercício do direito à educação de modo concorrente com as províncias, estabelecendo as bases, mas não pode substituí-las, nem decidir de modo autônomo, afastando-se do regime vigente (Lei nº 26.206).

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