Opinião

Ética tributária dos contribuintes e do Fisco

Autor

  • Rodrigo Caramori Petry

    é advogado consultor jurídico professor de Direito Tributário doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Econômico e Social e membro do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).

30 de maio de 2021, 13h12

Neste mês de maio, no dia 25, comemorou-se o Dia Nacional do Respeito ao Contribuinte, institucionalizado pela Lei nº 12.325/2010, com o objetivo de "mobilizar a sociedade e os poderes públicos para a conscientização e a reflexão sobre a importância do respeito ao contribuinte", e a mesma lei atribui aos órgãos fiscais a tarefa de promover a conscientização para os direitos e também para os deveres dos pagadores de tributos.

Spacca
Nos Estados Unidos e outros países a data comemorativa é chamada de Tax Freedom Day (Dia da Liberdade Tributária), para fazer alusão à "libertação do contribuinte" do dever de pagar tributos, já que é uma data móvel, anualmente, que representa um percentual do tempo decorrido do ano, para coincidir com o percentual da carga tributária estimada para o mesmo ano. A ideia é conscientizar sobre a proporção de tempo de um ano em que o contribuinte trabalha só para pagar os tributos.

Coincidentemente, também neste mês de maio outro acontecimento, agora infeliz, impactou os estudiosos do direito tributário: a morte do renomado professor Klaus Tipke, que foi titular e emérito de Direito Tributário da Universidade de Colônia, na Alemanha, e que tanto trabalhou pelo progresso dos estudos sobre justiça fiscal, inclusive publicando a obra "Moral tributária do Estado e dos Contribuintes" [1] ("Besteuerungsmoral und Steuermoral"), na qual expôs reflexões acerca da ética como expressão da justiça a ser seguida pelo legislador, pelos agentes fiscais e pelos contribuintes.

Inspirado por tais acontecimentos, o presente artigo se propõe a refletir sobre a evolução positiva da relação entre Fisco e contribuintes como propulsora do desenvolvimento civilizatório.

A morte e os impostos
O tributo é uma obrigação muito presente na vida das pessoas e sempre acompanhou a organização do Estado a ponto de ser vista como tão certa quanto à morte, como escreveu uma vez Benjamin Franklin, no século XVIII: "In this world nothing can be said to be certain, except death and taxes" [2] ("Neste mundo nada pode ser dito como certo, exceto morte e impostos").

Se há na vida a certeza de que teremos de pagar impostos, é importante que o cidadão compreenda essa realidade de uma forma construtiva, reconhecendo a função dos tributos e sua importância como instrumento de financiamento da atuação estatal, que impacta na promoção do desenvolvimento econômico e social do país. Aos juristas e professores cabe então a tarefa de apresentar aos estudantes o direito tributário em uma perspectiva ética, orientando os futuros operadores do Direito a promover condutas tributárias moralmente adequadas e justas.

Entretanto, para progredir nessa tarefa de conscientização, é preciso pensar nas razões históricas pelas quais as relações entre Fisco e contribuintes se tornaram tão conflituosas.

Raízes históricas da rejeição social do tributo
Mesmo sendo uma parte essencial da atividade financeira do Estado, a arrecadação de tributos sempre foi motivo de controvérsias, desde os tempos mais remotos. A relação tributária é histórica e universalmente marcada pela rejeição daquele sujeito que se encontra no polo passivo da obrigação, conhecido em geral pelo termo "contribuinte".

A história nos mostra o tributo como exercício do poder opressor. A palavra "tributo" se origina do Latim "tributum", cujo verbo "tributere" significava dar ou conceder algo, designando as exigências que tribos ou povos vencedores faziam sobre povos vencidos.

A cobrança de tributos já era questionada acerca da sua justiça na Antiguidade, embora recusar-se ao pagamento representasse um risco sério. Essa opressão tributária foi retratada inclusive na Bíblia, na qual cobradores de impostos ("publicanos") eram mal vistos pela população, e até mesmo Jesus foi questionado sobre se seria lícito dar tributo a César ou não [3].

Essa preocupação filosófica com os fundamentos da tributação correu os séculos. Até mesmo o filósofo francês Montesquieu, em 1748, período em que reinava na França a monarquia absolutista, já refletia sobre a tributação, e afirmava que para estabelecer corretamente a receita tributária era necessário considerar tanto as necessidades do Estado quanto as necessidades dos cidadãos [4].

Tributação no Brasil Colônia: o quinto dos infernos, o santo do pau oco e o descaminho
No território brasileiro, durante o período colonial (de 1500 até 1822), o sistema arrecadatório tributário favorecia a truculência e os abusos na cobrança: os chamados "contratadores", particulares contratados pelo rei, deviam arrecadar uma determinada soma de tributos, e eram autorizados a cobrar uma quantia a mais, o quanto quisessem, para se remunerar pelo serviço. Quem realizasse denúncia de sonegação era premiado com participações nas multas, favorecendo mais abusos [5].

A primeira exploração econômica portuguesa no território brasileiro, a madeira de pau-brasil, passou logo a ser tributada: o primeiro tributo cobrado pela Coroa Portuguesa foi o quinto do pau-brasil, equivalente a 20% da madeira explorada pelos contribuintes [6].

Com o passar do tempo essa cobrança de um quinto passou a ser realizada sobre outros produtos extraídos na colônia, como o ouro das minas no século 18. Entretanto, as formas abusivas de cobrança passaram a causar reações negativas nos pagadores de impostos, e surgiu a expressão "vai para o quinto dos infernos", que ainda hoje é usada por alguns para expressar um violento desagrado com alguém.

Os contribuintes, por sua vez, reagiam contra os abusos e a violência criando artifícios para despistar os cobradores de impostos, e assim a animosidade entre Fisco e contribuintes só crescia. Para evitar ter de pagar imposto sobre o ouro transportado nos caminhos das minas no século 18, por exemplo, um artifício comum dos contribuintes sonegadores era esconder o ouro dentro de santos de madeira ocos (com espaços internos, funcionando como esconderijos). Disso surgiu a expressão popular "santo do pau oco", que até hoje é usada para se referir a alguém que parece honesto ou "santo" por fora, mas que por dentro esconde sua desonestidade.

Outro exemplo de reação negativa derivada do conflito entre Fisco e contribuintes nessa época colonial estava no chamado "descaminho": para evitar os caminhos obrigatórios, onde havia postos de fiscalização e cobrança de impostos, os contribuintes comerciantes usavam "caminhos alternativos" para o transporte das mercadorias, transitando assim por estradas não fiscalizadas. A expressão "descaminho" é usada até hoje, no Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), para definir o crime de sonegação fiscal em relação aos tributos sobre o comércio exterior (artigo 334) [7].

A relação entre tributação abusiva e instabilidade institucional
Além da ética no comportamento de contribuintes e de fiscais, é fundamental a existência de um controle jurídico da justiça da tributação. Esse controle não só protege direitos dos contribuintes, mas, também a estabilidade das instituições públicas, dando condições de governabilidade à nação. Isso porque a cobrança arbitrária e abusiva de tributos foi causa direta ou indireta de diversas revoluções políticas pelo Mundo, com imensas repercussões sociais e econômicas. A história política da Inglaterra, dos EUA, da França e do Brasil, por exemplo, têm fortes raízes tributárias [8].

Na Inglaterra, o mais conhecido documento constitucional, a Magna Carta de 1215, possui sua origem ligada à revolta contra a cobrança abusiva de tributos por parte do rei João Sem-Terra. Esses abusos levaram os nobres contribuintes da época a exigir que o rei outorgasse a Carta para que a nobreza tivesse uma garantia de maior controle e moderação na cobrança dos impostos [9].

De outro lado, uma das principais causas da declaração de independência dos Estados Unidos da América (EUA) foi a luta contra o excesso e o arbítrio na cobrança de tributos, no caso, pela Inglaterra, país colonizador do território norte-americano. Como a tributação era decidida pelo parlamento inglês e não havia participação dos colonos, entenderam eles que não estavam representados como ingleses, e que, portanto, a tributação sobre as colônias era inconstitucional frente à Carta de Direitos (Bill of Rights) de 1689 da Inglaterra, na qual se previa que a tributação só podia existir quando os contribuintes estivessem representados no parlamento.

Consequentemente, entre os anos de 1750 e 1770 os colonos revoltaram-se e passaram a divulgar em protesto a expressão "no taxation without representation" ("nenhuma tributação sem representação"). A expressão acabou por se tornar um símbolo clássico da reinvindicação de limites ao poder de tributar e inspirou parte do texto da declaração de independência, em 1776.

A luta contra o abuso na cobrança de tributos também foi uma das motivações da Revolução Francesa de 1789, que iniciou a queda do regime absolutista. Essa revolta contra a cobrança de impostos abusivos foi a razão pela qual a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) e a primeira Constituição da França (1791) estabeleceram o direito dos cidadãos a participar no controle da instituição e da cobrança de tributos.

No Brasil Colônia, uma série de movimentos em favor da independência do Brasil foi fruto de revoltas contra a cobrança abusiva de tributos, destacando-se o movimento da Inconfidência Mineira de 1789, alimentado pelo temor da "derrama tributária" (cobrança arbitrária e truculenta) criada pela coroa portuguesa na Capitania de Minas Gerais.

Evolução no controle do poder do Estado
A evolução da organização político-social, fixando o primado do Direito, fez com que a tributação passasse de mera relação de poder para uma relação jurídica, pautada necessariamente na lei, e, antes, limitada pela Constituição como reguladora do poder do Estado.

A tributação, limitadora da liberdade e da propriedade, é ainda hoje fértil criadora de disputas, no Brasil e afora, necessitando, portanto, de uma atenção especial por parte dos estudiosos do Direito Público. Esse aspecto delicado da tributação é derivado em boa parte da tríplice função do Estado, que cria a lei tributária (Poder Legislativo), executa a norma cobrando a obrigação (Executivo), e julga os conflitos advindos da cobrança de tributos (Judiciário).

Em vista desses aspectos, a atividade tributária deve ser constantemente questionada e colocada em contraste com limites constitucionais e legais, que fixam direitos aos contribuintes. Essa atitude de questionamento dos contribuintes tende a criar uma mentalidade mais consciente aos governantes, no sentido de que é mais fácil e politicamente vantajoso trabalhar sempre primeiro pela diminuição dos gastos desnecessários e fiscalizar melhor a utilização do dinheiro público.

Porém, não é fácil governar um Brasil continental, que exige gigantescos serviços públicos, melhorias na distribuição de renda, e promoção do desenvolvimento por meio de investimentos públicos e apoio à iniciativa privada, em uma sociedade muito desigual. E os tributos podem ser, ao mesmo tempo, ferramentas ou obstáculos para a superação desses desafios.

O dever de pagar tributos como preço da civilização
A ética tributária precisa ser fomentada. Os comportamentos dos contribuintes e dos agentes fiscais devem ser objeto de reflexões construtivas por parte de cada um dos envolvidos. Além disso, estudos sociológicos empíricos exercem papel importante no auxílio às políticas fiscais dos países, identificando e reduzindo as resistências e os conflitos que prejudicam a arrecadação justa [10].

Em um Estado democrático e social de Direito, como é o brasileiro, o tributo não deve ser visto como algo em si negativo, pelo contrário: desde que respeitados os direitos dos cidadãos-contribuintes e havendo condições econômicas, o pagamento de tributos é um dever moral além de legal, porque são as receitas arrecadadas que financiam as atividades estatais, benefícios e serviços públicos. Por meio de tributos justos podem ser garantidos direitos fundamentais, redistribuídas riquezas, e criadas condições para o desenvolvimento econômico e social.

Essa percepção da relevância da arrecadação dos tributos para a sustentação do Estado e da civilização é expressa em uma frase que se tornou famosa quando proferida em um julgamento da Suprema Corte dos EUA, pelo juiz Oliver Wendell Holmes Jr., em 1927: "Taxes are what we pay for civilized society" [11] ("Os impostos são o que nós pagamos por uma sociedade civilizada").

Com o tributo nós compramos civilização. Essa conscientização precisa ser disseminada nos cursos de Direito, nas escolas, e nos meios de comunicação. Sempre que verificado como justo e adequado, conforme a Constituição e as leis, o tributo deve ser entendido pelo cidadão como uma prestação cívica. Essa postura equilibrada e colaborativa deve estar na consciência dos advogados tributaristas, e também deve inspirar as condutas dos agentes públicos fiscais, que em suas atividades de tributação deverão estar atentos para uma atuação justa, legal e moral.

Assim estimuladas sob uma perspectiva de ética tributária, com respeito e equilíbrio, ambas as partes da relação tributária (contribuintes e Fisco) podem contribuir para um debate eficiente sobre a melhoria do sistema tributário e para a construção de um ambiente econômico e social oportuno aos negócios, harmônico e justo, que fomentará o desenvolvimento do Brasil.

 


[1] TIPKE, Klaus. Moral tributária do Estado e dos contribuintes. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2012.

[2] PIRIE, Madsen. Death and taxes. In Adam Smith Institute Blog, postagem de 13/11/2019. Disponível em: <https://www.adamsmith.org/blog/death-and-taxes>. Acesso: 25/05/2021.

[3] Novo Testamento, no Livro de Lucas, Capítulo 20. 

[4] MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. Trad. Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 221.

[5] COSTA, Alcides Jorge. História da tributação: do Brasil-Colônia ao Imperial. In Curso de direito tributário e finanças públicas (Coordenação Eurico Marcos Diniz de Santi). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 55.

[6] AMED, Fernando José; NEGREIROS, Plínio José Labriola de Campos. Op. Cit., p. 37.

[7] Não confundir com o contrabando, que é o crime de importar ou exportar mercadoria proibida (artigo 334-A do CP).

[8] PETRY, Rodrigo Caramori. Direito constitucional tributário comparado: a tributação na Constituição do Brasil e de outros países. Direito Tributário Atual nº 30 (Coord. Ricardo Mariz de Oliveira, Luís Eduardo Schoueri e Fernando Aurélio Zilveti). São Paulo: Dialética/IBDT, 2014, p. 365-401.

[9] UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário. 2ª ed. Tradução e notas de Marco Aurélio Greco. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 24.

[10] SOARES, Domitília Diogo. Percepção da fiscalidade em Portugal. Coimbra: Almedina, 2004.

[11] EUA. Supreme Court. Compañia General de Tabacos de Filipinas v. Collector of Internal Revenue nº 42. Decisão de 21/11/1927. Disponível em: < http://www.worldlii.org/us/cases/federal/USSC/1927/178.html>. Acesso: 25/05/2021.

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    é doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Econômico e Social pela PUCPR, membro associado do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), advogado, consultor e professor de Direito Tributário.

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