Opinião

Aportes do STF para a regulação tributária da economia digital

Autor

  • Daniel Giotti de Paula

    é doutor em Finanças Públicas Tributação e Desenvolvimento pela UERJ procurador da Fazenda Nacional e bolsista do Grupo de Pesquisa de Regulação Tributária da Economia Digital da FGV Direito Rio.

30 de maio de 2021, 17h19

A OCDE tem se preocupado com a erosão das bases tributárias, em relação à tributação direta e à indireta, o que motivou em seu plano Beps uma ação específica, a de número 1, para se lidar com a economia digital.

Em estudos mais recentes, como no "Adressing the Tax Challenges of the Digital Economy", concluiu-se que a economia digital não está apartada do resto da economia, pois a economia como um todo estaria se tornando digital.

Ainda mais recentemente, desdobramentos da ação nº 1 levaram a se pensar na edificação de dois pilares (Pillar 1 e Pillar 2) como recomendações no plano de trabalho do Beps: 1) realocação de "direitos tributários"; e 2) a criação de um mecanismo global contra a erosão tributária.

No fundo, trata-se de conflito entre a Europa e os conglomerados digitais norte-americanos (Google, Facebook, Apple, Microsoft etc.), tendo em vista que o Direito Tributário internacional tradicional, baseado no instituto do estabelecimento permanente e em mecanismos para identificar erosão criados para uma economia "corpórea" ou "não volátil", não dá conta dos problemas.

Como soft law, é preciso consenso, ainda não obtido, mas a OCDE chegou a uma cifra de US$ 100 bilhões não tributados das receitas das bigh techs em 2020. A par de discussões em torno da tributação direta esboçadas no pilar 1 do Action 1 do Beps, que inclusive podem ser vistas como inúteis para o Brasil com sua tradição de tributação na fonte e suas normas de competência para cobrar PIS e Cofins sobre receita residual, discute-se a tributação sobre o consumo no contexto da digitalização da economia.

A OCDE apontou, em seu relatório "International VAT/GST Guidelines", que o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) não se presta à economia digital sem reparos regulatórios, mas o Brasil sai atrás na discussão, pois sua intricada tributação sobre o consumo não segue esse modelo de tributação.

Os reparos se justificam porque o princípio do destino, usual para o IVA, não é facilmente concretizável para o comércio internacional de serviços e intangíveis, eis que a natureza destes e daqueles é tal que eles não podem se sujeitar a controles de fronteira da mesma forma que as mercadorias.

Por outro lado, o sistema constitucional tributário foi pensado para a economia "corpórea" com transações baseadas em bens tangíveis e em que o ciclo de produção começava por meio da aquisição de insumos enviados para uma unidade fabril [1], modelo econômico anterior à economia digital.

O resultado para parte da doutrina é que as materialidades integrantes das normas de competências tributárias do ICMS e do ISS não podem abarcar serviços digitais e bens intangíveis. A rigidez constitucional passou à prisão, para trancafiar os conceitos das normas de competência tributária, em contradição  ao que Lourival Vilanova, pontuava: "A estática dos textos normativos não condiciona a estática dos conceitos normativos" [2].

Nessa "jaula conceitual", o STF se viu refém da doutrina tributária que considerou serviço como obrigação de fazer, desconsiderando que sequer no Direito Privado o tema era consensual, como notou o ministro Gilmar Mendes, invocando lição de Arnaldo Wald, no Recurso Extraordinário nº 603.136, que definiu a incidência de ISS sobre o contrato de franquia.

De uma concepção "privatista" de serviço, porém, recentes decisões do STF em 2020 demostram uma mudança para uma concepção pragmática. Para o ministro Luiz Fux, relator do RE nº 651.703, as operadoras de planos de saúde e de seguro-saúde realizam prestação de serviço sujeita ao Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), de modo que os conceitos tecnológicos demandariam assimilações econômicas para se tomar serviços como utilidades.

Isso era prenúncio do que viria a decidir o STF na ADI nº 5.659, quando se definiu que a elaboração de um software, por encomenda ou customizado, disponibilizado via download ou via computação em nuvem, é serviço que resulta de esforço humano e atrai o ISS, nos termos do voto do ministro Dias Toffoli.

Para ele, o legislador complementar, com base na competência do artigo 146, III, da Constituição, definiu que o licenciamento ou cessão de direito de uso do software, independentemente de ser via download ou por acesso a nuvem, na forma do item 1.05 da lista de serviço anexa à Lei Complementar nº 116/03 atrairia o ISS, "sem prejuízo de que, no caso do modelo Software-as-a-Service (SaaS), outras utilidades disponibilizadas ao usuário possam ser desmembradas do licenciamento e submetidas à tributação nos subitens 1.03 e 1.07".

O relator ainda ponderou o caso à luz da neutralidade fiscal: "As consequências em termos de fiscalidade deve[m] ser as mesmas para as transações de mercadorias e de serviços independentemente do meio de comercialização utilizado ou de a entrega ser feita ou não em linha". Além disso, a simplicidade, entendida como não trazer obrigações acessórias, sobretudo que sejam excessivas para pequenas empresas, foi mencionada.

As duas preocupações caras à OCDE justificariam uma tributação no destino, inclusive nas transações internacionais, de modo que considerar a elaboração de software como serviço e o tributar via ISSQN seria o mais viável.

A pergunta que fica é se a regra de que os serviços devem ser tributados no local do estabelecimento prestador (artigo 3º, LC 116) apresenta-se como um problema na regulação tributária da economia digital, sabendo-se que cinco cidades brasileiras concentraram a arrecadação de 5 bilhões de ISS sobre softwares nos últimos anos.

Como se entende que a neutralidade fiscal visa a preservar "a não cumulatividade dos tributos sobre a formação dos preços finais ao consumidor" [3], a definição da incidência de ISS sobre o software preserva o mercado de possíveis distorções econômicas no contexto de um setor com um ciclo produtivo concentrado nas grandes empresas, quando se pensa nos produtos mais vendidos (Microsoft 365, citado como exemplo pelo ministro Dias Toffoli em seu voto) ou que vem abraçando a customização por inteligência artificial pelas linguagens de programação de quarta geração (4GL, Java, SQL etc.).

Acrescente-se ainda que se está lidando com tributo com alíquotas pequenas (de 2% a 5%) e com obrigações tributárias acessórias reduzidas, para compreender como a regulação tributária de licenciamento ou uso de software atende às diretrizes de neutralidade e simplicidade.

Não é de se desconsiderar possíveis impactos federativos e a maior proximidade do IVA com ICMS do que com ISS [4] e os problemas da importação de um serviço digital de uma empresa "localizada" em site com existência apenas no exterior (artigo 1º, parágrafo primeiro, LC 116), esse sim um problema a demandar consenso global.

Como a solução da tributação pelo ISS, com baixas alíquotas, em um setor sem cumulação por natureza, em que a tributação pelo destino, a partir do comprador/tomador do serviço, traria inviabilidade ou dificuldade na gestão do tributo em confronto com as diretrizes da neutralidade e simplicidade, ofendendo a praticabilidade tributária [5], o esboço de regulação tributária da economia digital à brasileira, se não resolve tudo, é um bom primeiro passo dado pelo STF.

Legitima-se o legislador complementar brasileiro a exercer sua competência, inclusive, sem ficar preso ao dogma de que a OCDE tem a resposta para todos os problemas brasileiros. Às vezes ela sequer sabe quais são.

 


[1] Usando concebido em vez de pensado, conferir o trecho em LUZ, Victor Lyra Guimarães. Impressão 3D: entre IPI, ICMS e ISS. Revista Direito Tributário Atual, n. 45. p. 473-498. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2020, p. 475.

[2] VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 322.

[3] CALIENDO, Paulo. Direito Tributário e Análise Econômica do Direito. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2009, p. 119.

[4] PISCITELLI, Tathiane. Tributação Indireta da Economia Digital: o Brasil está Pronto para aderir às Orientações da OCDE?. Revista Direito Tributário Atual, n.43. ano 37. p. 527-547. São Paulo: IBDT, 2º semestre 2019, p. 541.

[5] PAULA, Daniel Giotti de. A Praticabilidade no Direito Tributário: controle jurídico da complexidade. Rio de Janeiro: Editora Multifoco, 2018.

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    é doutor em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ, procurador da Fazenda Nacional e bolsista do Grupo de Pesquisa de Regulação Tributária da Economia Digital da FGV Direito Rio.

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